Folha de S. Paulo


Leia trecho de manuscrito inédito de Hannah Arendt sobre antissemitismo

RESUMO Este é um trecho de "Antissemitismo", manuscrito sem data encontrado por Jerome Kohn e inédito até a publicação, nos EUA, de "Escritos Judaicos", que sai aqui pela Amarilys em junho. O pesquisador estima que tenha sido escrito no fim dos anos 1930, em Paris, antes de a autora ser mandada para o campo de Gurs, em 1940.

Fred Stein/Album/Picture Alliance
A filósofa alemã Hannah Arendt em foto de 1944
A filósofa alemã Hannah Arendt em foto de 1944

Em 1781 o conselheiro de corte prussiano Christian Wilhelm Dohm publicou suas sugestões "Sobre o Melhoramento Cívico dos Judeus". Dez anos depois a Convenção Nacional da Revolução Francesa referiu-se à sua Declaração de Direitos Humanos ao proclamar a emancipação dos judeus. Oitenta e oito anos mais tarde, em 1869, o conselho federal alemão (Bundesrat) rescindiu "todas as restrições de direitos civis e legais anteriores baseadas em diferenças de confissão religiosa"1. Passaram-se meramente duas gerações, e as únicas pessoas na Alemanha que gozam de direitos civis e legais são aquelas que podem provar que nenhum de seus avós era judeu.

Em 1701 Eisenmenger publicou seu "Entdecktes Judenthum" (Judaísmo desnudo), o compêndio definitivo de todas as alegações levantadas contra os judeus na Antiguidade e na Idade Média e uma fonte generosa mesmo hoje para todo tipo de atrocidade inventada, desde acusações de assassinato ritual até contos sobre poços envenenados.

Cem anos depois de Eisenmenger, apenas 20 anos depois das primeiras propostas de reforma de Dohm, de 10 a 15 anos após as primeiras tênues propostas de assimilação, o livro "Wider die Juden" (Contra os judeus), de Grattenauer, coloca na agenda pública –e não apenas entre plebeus semieducados mas também em meio à elite intelectual da capital prussiana: Friedrich Gentz, Clemens von Brentano, Achim von Arnim, Adam Müller, Heinrich von Kleist– algo que soa como uma versão muito moderna do antissemitismo. Todo o círculo de patriotas que se formava em torno da Sociedade da Mesa Germânica Cristã (Tischgesellschaft) torna-se antissemita.

Em 1869, o mesmo ano em que a plena emancipação civil entrou em vigor na Alemanha, é publicada a primeira edição de "Sieg des Judenthums über das Germanenthum" (Vitória do judaísmo sobre o germanismo), de Wilhelm Marr. Nos anos 1870 a questão judaica não é mais um tópico de discussão, mas antes um ponto ao redor do qual se cristaliza um movimento político cuja palavra de ordem é "anti-semitismo"2. Em 1933 todas as propostas –poderíamos dizer todas as quimeras– de um movimento de 130 anos são realizadas, com a exceção, diga-se, da perene sugestão para resolver a questão judaica abatendo todos os judeus.

ASILO

A capitulação de todos os judeus alemães seria rapidamente seguida pela da comunidade judaica mundial, com todas as esperadas e momentosas consequências –pois de fato todos os protestos, resoluções e congressos simplesmente lançam areia em seus próprios olhos, não nos olhos de seus inimigos. O fardo dessa capitulação foi suportado principalmente pelos círculos sionistas e utilizado pelo movimento sionista, embora este certamente não possa ser culpado por isso. O sionismo de má consciência era mais ou menos um asilo acidental preexistente para o qual pessoas desesperadas podiam fugir em nome de um pouco de esperança e algum resquício de dignidade.

O fracasso político dos judeus alemães e da comunidade judaica mundial face à catástrofe alemã é inteiramente apropriado ao decurso dos 150 anos de história da qual ele é a culminação infame; ele deve ser esclarecido da maneira mais profunda, deve-se desnudar o verdadeiro valor da emancipação, deve-se expor seu verdadeiro significado histórico. Na medida em que o desenvolvimento que outrora nos trouxe para as histórias alemã e europeia e agora nos expulsa delas não era judaico, mas estrangeiro, ele inevitavelmente se apresenta na mesma medida –e certamente de maneira mais imperativa para nós hoje– como a história do antissemitismo.

Também não foi por acaso, evidentemente, que essa catástrofe tenha acontecido na Alemanha, ou que o fascismo alemão tenha concentrado sua visão de mundo e seu programa essencialmente no antissemitismo, ou que sua liderança tenha vindo de fragmentos de velhos partidos e grupos antissemitas. Tampouco ela tem qualquer coisa a ver com a velha teoria da válvula de escape –segundo a qual um bode expiatório deve ser encontrado para a insatisfação do povo– ou com a teoria da notória "judaização" da imprensa, do teatro e dos profissionais liberais.

Ambas as teorias procuram não levar o fascismo e o antissemitismo a sério. A primeira, a teoria da válvula de escape, está no mesmo nível da velha anedota que faz a pergunta sobre quem deve ser culpado por tudo, para a qual a resposta é "os judeus e os ciclistas", seguida pela pergunta indignada, "Por que os ciclistas?" –para a qual a resposta é "Por que os judeus?". Por outro lado, a judaização como a base para o antissemitismo deixa todas as perguntas em aberto, quer como uma explicação que parte dos próprios judeus que demandam mais "discrição", quer como uma frase antissemita que considera os judeus uma praga sobre a Terra contra a qual seus hospedeiros muito mais fortes não podem –por alguma razão extraordinária– se defender.

HECATOMBES

Que os judeus sejam a fonte do antissemitismo é a maliciosa e estúpida sabedoria dos antissemitas, que, com esta simples crença diabólica, pensam poder explicar hecatombes de sacrifícios humanos e montanhas de papel requerendo assassinato, pilhagem e incêndio. Mas os judeus fizeram desta a sua própria sabedoria e com ela provaram, como necessário, a atemporalidade do antissemitismo ou a atemporalidade da missão judaica no mundo.

Por mais politicamente insignificantes que sejam as teorias desse tipo, nossos inimigos atribuem a elas um significado eminentemente político assim que, miseravelmente irrefletidas, elas aparecem entre nós –como trapos tirados do baú empoeirado do século 19 para vestir um povo que foi perseguido, que passou por "pogroms", e converter isso tudo em um conto de fadas de príncipes e princesas.

A história judaica, que por dois milênios foi feita não por judeus, mas por aqueles povos que os cercam, parece à primeira vista ser uma crônica monótona de perseguição e infortúnio, da brilhante ascensão e queda de alguns indivíduos, expiados por "pogroms" e expulsão das massas. Em consequência, quando a história judaica é contada por judeus, ela geralmente tem sido uma tentativa tácita –raramente "expressis verbis"– consciente ou inconsciente de chegar a um acordo com seus inimigos, ou melhor, com a história de seus inimigos. Mas deve-se também diferenciar claramente entre a história escrita a partir de uma perspectiva nacional, que busca defender a honra do povo judeu ao provar que eles certamente têm uma história própria, e a apologética de uma história escrita por assimilacionistas.

Nas mãos dos assimilacionistas, a história judaica converteu-se em uma história da injustiça infligida sobre nós que durou até o fim do século 18, quando –sem nenhuma transição e pela graça de Deus e/ou da Revolução Francesa– fundiu-se na história mundial, a cujo "andamento rastejante", como Hermann Cohen colocou, alegremente confiamos nós mesmos. Em contrapartida, judeus esclarecidos do Leste tentaram escrever uma história nacional judaica no espírito do século 19, o que, no nosso caso, significava seguir os rastros da história judaica contra o pano de fundo da história europeia com o propósito de minuciosamente remendar os contornos do desenvolvimento nacional unificado de um povo disperso.

Aparentemente protegidos por direitos civis iguais, os judeus do Ocidente escamotearam a história do povo judaico em proveito de uma história da religião judaica –cuja expressão mais pura e mais sublime era sem dúvida a Reforma da sinagoga– a fim de se livrar teoricamente de suas incômodas origens e de se precipitar com um único salto em uma história mundial cujo "andamento rastejante" abriu caminho para uma exposição paradoxal tanto de patriotismo ardente quanto de "gratidão" bastante servil3.

Essa objetividade elevada dos judeus no Ocidente, para os quais ser judeu não era nada além de uma religião em que eles não mais acreditavam e que, por isso, tentaram fazer da totalidade do passado histórico europeu o seu próprio –sem se interessar pelo fato de que essa história fora de "pogroms" e perseguições–, essa indiferença dos assimilacionistas foi contrariada pela escrita de uma história nacional, cujo principal mérito é a tomada de partido.

Conseguiu-se assim ao menos escrever uma "Weltgeschichte des jüdischen Volkes" (História universal do povo judeu), de Simon Dubnow, que, além de seu valor como uma coleção planejada e coesa de materiais, provou uma coisa: que existe um povo judeu. É contra isso –e não contra uma inabilidade óbvia de compreender certas conexões históricas– que os historiadores assimilacionistas dirigiram sua indignada polêmica contra o precursor de Dubnow, nomeadamente, contra Graetz. A preocupação deles era provar que os judeus são todos os tipos de coisa –uma religião, o sal da terra, cidadãos do mundo "par excellence"– mas não um povo.

Ambos os tipos de historiografia judaica são caracterizados por sua inabilidade para entrar em acordo com o antissemitismo: ambos tentaram reduzi-lo a uma opinião individual acerca dos judeus.

A escrita nacional da história contenta-se com simplesmente examinar a história procurando por tendências amigáveis ou hostis aos judeus e, tendo avaliado essas visões, as reúne em uma miscelânea. Os historiadores assimilacionistas, que, contudo, têm a vantagem de ao menos levar o antissemitismo a sério, embora somente em suas formas mais inócuas, refutam opiniões individuais –os equívocos de grandes homens, as mentiras de homens menores– na crença de que essa é a melhor forma de contribuir para o progresso da época.

Para as acusações antissemitas de que os judeus são improdutivos, eles chamam Moisés e os Profetas, Maimônides, Espinosa, Heine e Marx como testemunhas do contrário. Uma citação errônea do Talmud é contrariada com uma precisa. Por sua própria natureza, a lista de tais argumentos é infinita e limitada apenas pela habilidade de invenção dos inimigos. Visto que é acrítica no sentido literal da palavra, tal abordagem nunca pergunta a respeito da condição de possibilidade do antissemitismo e das acusações nas quais, afinal, se acredita. Nunca pergunta sobre as reais condições que são a base para tais "calúnias e equívocos."

EMANCIPAÇÃO

Isso é especialmente verdade para a Idade Moderna. Para a época anterior à primeira proclamação de emancipação, há um verdadeiro reconhecimento e acerto de contas com as forças que determinaram nossa história –mas apenas porque, e na medida em que, o passado distante já foi condenado pelo próprio meio no qual os judeus por acaso viviam. Com a emancipação, cessa imediatamente toda crítica ao meio não judaico feita de um ponto de vista judaico.

Para os assimilacionistas a história dos judeus coincide com a história daquelas nações em meio às quais eles vivem. A história judaica degenera em uma crônica de diversas comunidades urbanas de judeus –e mesmo isso é escrito como uma apologia, como prova da antiguidade da comunidade judaica respectiva, enquanto o antissemitismo, como uma opinião ou um movimento político, é excluído dessa história positiva e doravante categorizado como "barbarismo medieval" e "preconceito antiquado".

Enquanto a escrita nacional da história é baseada na suposição acrítica de uma distância por princípio entre os judeus e sua nação anfitriã, os historiadores assimilacionistas optam por uma suposição igualmente acrítica de uma correspondência de 100% entre os judeus e toda sua nação anfitriã.

A vantagem da hipótese nacionalista em relação à dos assimilacionistas é puramente prática: ela não conduz a ilusões que sejam tão absurdas. Por exemplo, na Alemanha havia operários e burgueses, havia pequenos burgueses e agricultores alemães, bávaros, prussianos, suábios e assim por diante; e também havia os simplesmente alemães: nomeadamente, os judeus. Muito antes de Hitler inventar seu Volksgenosse (compatriota), essa mesma abstração rastejou para dentro das mentes de meio milhão de pessoas. Os judeus eram alemães e nada mais. E uma vez que eles eram simplesmente alemães, não poderia haver diferenças de interesse entre eles e qualquer segmento do povo alemão.

A crítica sionista deve levar o crédito por acabar com esse absurdo demonstrando que esses "nada mais que alemães" só eram capazes de se apresentar sob uma luz tão excessivamente positiva porque não pertenciam de fato plenamente a nenhuma sociedade, porque não eram verdadeiramente assimilados em lugar nenhum. Além disso, ninguém além deles mesmos pode se enganar a respeito de seu próprio patriotismo exagerado.

JOGO DE FORÇAS

Mas, tanto para o sionismo como para a escrita nacional da história, o estatuto de uma "nação de estrangeiros" é tão indiferenciado quanto 100% de correspondência o é para os assimilacionistas. Em vez de uma abstração –o povo alemão– temos agora algo como duas abstrações opostas: o povo alemão e os judeus. Isso também despoja de sua historicidade o relacionamento entre judeus e sua nação anfitriã e o reduz a um jogo de forças (como os de atração e repulsão) entre duas substâncias naturais, uma interação que vai se repetir onde quer que os judeus vivam.

Assim, o sionismo permanece fincado em sua ideia sobre a absurdidade da assimilação e chega até mesmo a afirmações puramente dogmáticas formuladas apenas para seus oponentes. Para o sionismo, a assimilação efetiva –isto é, uma completa transformação dos judeus da Europa ocidental– é estranha à essência judaica, que é sempre a mesma, oposta à qual está a igualmente eterna essência do povo anfitrião. Os relacionamentos entre as duas são governados por um respeito alcançado à medida que cada uma mantém a distância apropriada.

Claro que é muito lamentável que ultimamente esse respeito seja de fato mais unilateral –ou seja, oferecido apenas por sionistas, que, a título de compensação, não deixam de demonstrar o devido respeito à outra essência mesmo quando ela toma a forma do antissemitismo4. Para o sionismo a história da emancipação é o prelúdio de uma catástrofe que tinha de fazer parte do desenvolvimento da consciência nacional. De acordo com essa visão, as coisas só estiveram bem por tanto tempo por conta de ilusões liberais e das tendências individualistas do Iluminismo.

NOTAS
1. Texto da lei, conforme assinada por Wilhelm 1º e Bismarck, citado em Dubnow, "Weltgeschichte des jüdischen Volkes" (História universal do povo judeu), vol. 9, p. 340.

2. Na virada do século 19, "semita" e "indo-germânico", como usados por Schlegel e Eichhorn, eram termos puramente linguísticos. Eles foram primeiro usados como termos antropológicos e étnicos por Christian Lassen em seu "Indische Altertumskunde" (Índia antiga, 1847). Lassen caracteriza povos indo-germânicos como os mais dotados e produtivos, isto é, como "bons", e povos semitas como egoístas, gananciosos e improdutivos –em suma, como "maus". Cf. W. Ten Boom, "Entstehung des modernen Rassenantisemitismus" (Formação do antissemitismo racial moderno, 1928), p. 11 ff. Boom cita Lassen extensamente e devidamente observa: "Não é decerto um acaso que essa declaração venha de um homem que representa uma ciência que de fato nasceu do espírito do romantismo". A transformação política da palavra "semita" na palavra de ordem "antissemita" bem como sua aplicação exclusiva aos judeus vem de Wilhelm Maar, por volta de 1870.

3. Hermann Cohen, "Jüdische Schriften" (Escritos judaicos), vol. 2, "Emanzipation" (1912), p. 223. "Sentimos que nos tornamos pessoas de cultura (seguindo o Decreto Emancipatório de 1812). Qual sentimento de gratidão pode ter raízes mais profundas do que aquele que nos eleva para nos tornarmos uma personalidade moral [...] Toda a injustiça que devemos suportar não deveria nos levar a duvidar do progresso com o tempo [...]" (p. 224). "Permita-nos fazer uso seguro aqui também da história mundial e seu passo rastejante[...] Uma consequência que surge para nós [...] desse decreto é que nosso patriotismo é mais profundo do que antes e ainda não exaurido." Verdadeiramente, "A história mundial segue caminhos sinuosos" (p. 227). [Itálico no original]

4. O "Jüdische Rundschau" (Panorama judaico) tem oferecido prova constante disso desde 1933. Especialmente nos primeiros anos, foi preparado para ir a toda e qualquer distância. É claro que há sionistas que pensam de forma diferente sobre o assunto e demonstram de alguma forma mais dignidade nacional. Mas eles não são típicos, porque "respeito" é uma consequência direta da teoria sionista da "essência" –ligado à lealdade herdada. Caso contrário, não poderia ter sido colocada em prática tão rapidamente com uma questão de consenso geral.

HANNAH ARENDT (1906-75), filósofa alemã de origem judaica conhecida por seus estudos acerca do autoritarismo.

LAURA D. M. MASCARO, 30, doutoranda em literatura francesa (FFLCH-USP), é coordenadora e pesquisadora no Centro de Estudos Hannah Arendt e, com LUCIANA GARCIA DE OLIVEIRA, 33, mestranda em estudos árabes e judaicos (FFLCH-USP), e THIAGO DIAS DA SILVA, 32, doutorando em filosofia (FFLCH-USP), participa do grupo de estudos da mesma instituição, atualmente dedicado ao tema da responsabilidade e do julgamento na obra da autora alemã.


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