Folha de S. Paulo


O sentimento da catástrofe

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gravura no livro
Gravura reproduzida em "O Sentimento da Catástrofe" registra efeitos do terremoto de Lisboa

Imaginada ou real, a catástrofe possui a força prodigiosa de surgir como a objetivação daquilo que nos excede. É justamente por se desdobrar em arcobotante entre o real e o imaginário que ela continua nos atraindo como uma das mais belas linhas de fuga do espírito humano.

Aliás, não conheço infância digna desse nome que não tenha escalado massivos de trens descarrilhados, que não tenha navegado por rios de lava, que não tenha constituído um reino sobre cidades libertadas... O sentimento da catástrofe é, sem dúvida, a primeira figuração da fenda do imaginário no mais profundo de nós. Fenda constante, cujo desenho é uma forma de interrogar nosso destino, tanto quanto de responder a ele. Mas também um expediente paradoxal para enfrentar, tentando representá-las, as situações da mais extrema desordem ética. No mais, ainda que vista como punição divina que serve para confortar a ordem cristã, não há fim do mundo que não remeta a essa necessidade de figurar um caos, cuja emergência é, para nós, sempre esperada e temida.

Precisamente por essa razão, o terremoto de Lisboa constitui um acontecimento capital que, marcando o fim da concepção religiosa da catástrofe, abre para a liberdade de um imaginário catastrófico pululante que se revelará o único meio de apreender um mundo em vias de escapar a toda compreensão. Pois esse desastre é, antes de tudo, a catástrofe que rompe o acordo extraordinário - jamais realizado antes dos anos 1740-1750 - entre filósofos, moralistas, religiosos e poetas em defesa do otimismo, reunindo todos em torno de uma visão de mundo tão moderadora quanto racionalizante.

De Leibniz a Pope, passando por Madame du Châtelet, von Haller e mesmo Kant, não há, realmente, doutrina nem sistema que esteja à altura sequer de evocar a amplitude do que se produziu com o aniquilamento de Lisboa. Essa cidade rica, acolhedora, pitoresca, mas ainda muito devota, repleta de igrejas e de conventos, de repente foi devastada pelo terremoto, ao qual se seguiu imediatamente uma inundação, e, por fim, ainda foi pilhada por seus próprios habitantes. A verdadeira catástrofe é que o impensável aconteceu, dado que Deus, a natureza e os homens revelaram-se de um só golpe totalmente diferentes do que se havia pensado que eram até então. Impressionante também, mas não do mesmo modo que as casas em escombros, os monumentos destruídos ou as igrejas ao chão, é esse amontoado de teorias fracassadas, de ideias em ruínas e de crenças esfaceladas que fazem com que o desastre de Lisboa deixe o século desamparado.

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gravura no livro
Outra imagem que ilustra a catástrofe no livro de Annie Le Brun.

Estou convencida de que o sentimento da catástrofe nasce aí, nesse horizonte transtornado, a partir do momento em que tal sismo sem precedentes, despedaçando repentinamente balizas religiosas e filosóficas, faz surgir, catastrófica, a questão do sentido, cujas infinitas repercussões evocam, em reação, o excesso de imaginário. Questão verdadeiramente catastrófica: basta que ela se coloque para que, súbito, desabem as construções éticas e os sistemas de representação.

Assim, em menos de vinte anos a sensibilidade europeia é invadida pela figuração de desastres imaginários que têm por característica essencial fazer emergir a catástrofe em estado puro, livrando-a de toda referência religiosa, como se o recurso ao imaginário servisse, antes, para liberar o espírito de suas travas, a fim de tornar possível pensar de outro modo. Eis que às clássicas representações do Dilúvio ou às tradicionais figurações do Apocalipse substituem-se, depois do impressionante "Recueil des plus Belles Ruines de Lisbonne", de Jacques-Philippe Le Bas (1757), inúmeros quadros de tempestades (Vernet), de naufrágios (Pillement), de ventanias (Lautherbourg), de vulcões (Voltaire), de enchentes (Valenciennes), cada um menos realista que o outro, como se para figurar, por sua desmedida imaginária, o impossível enfrentamento com um sentido que jamais cessará de se esquivar.

Não é por acaso que a Europa, no mesmo momento, se veja tomada por um repentino fascínio por Herculano e Pompéia, aos quais se começa a prestar atenção depois de uma espera de dezoito séculos. Com efeito, em 1754 são empreendidas escavações que, descoberta após descoberta, resgatam a cidade sepultada, e as imagens e perspectivas revolvidas são tantas que organizam um verdadeiro teatro da catástrofe. Como se uns e outros fossem aos poucos reconhecendo ali o cenário que os liga de novo a um mundo cuja compreensão lhes havia escapado. Um gosto contemporâneo por livros sombrios, por tempestades e ventanias - que à época são chamados de romances negros ou góticos - também carregam, nas profundezas do imaginário, o pressentimento da imensa mudança de sensibilidade que vai corroendo a época das Luzes.

Cabe, portanto, perguntar o que pretende nossa época ao deixar de levar em conta uma catástrofe que lhe serviu para imaginar, desde a Segunda Guerra Mundial, as mais diversas formas de interrogar um universo privado de sentido. Será esse o meio de dissimular, mas igualmente de evocar, uma dificuldade análoga àquela que o fim do século 18 experimentava para conceber o mal num mundo em que a referência divina se esvanecia? Dificuldade para a qual a filosofia das Luzes, vale lembrar, logo se revelou incapaz de dar uma resposta, mas que Kant, Schelling e Hegel, cada qual a seu modo, decidiram enfrentar indiretamente por meio da noção de negatividade, que parece ter sido concebível apenas depois do imaginário catastrófico ter logrado livrar a consciência europeia da impregnação ética de um princípio do mal.

Não há dúvida de que as atuais variações sobre o tema da devastação procedem do desejo de imaginar, juntamente com a insensata esperança de conjura-los, os resultados ainda imprevisíveis de uma situação cuja complexidade nosso pensamento não consegue alcançar: entre os campos de extermínio nazistas ou soviéticos e as calamidades nucleares do mundo dito livre, sem mencionar a poluição planetária, haverá ainda sentido para a noção de escolha? Porém, ainda que se trate de uma dispersão de pontos de apoio essenciais – comparável à que resultou da crescente incredulidade no fim do século 18 –, seu esclarecimento é completamente distinto. Há devastação e devastação: a que hoje nos ocupa não resulta, como no século 18, de catástrofes naturais, mas de catástrofes provocadas devido ao menosprezo pelo equilíbrio da natureza. Com ou sem razão, desmesura ou excesso parecem já não mais nos amedrontar, ao passo que receamos os efeitos mais ou menos previsíveis de uma natureza ultrajada. A grande novidade agora é que, dia após dia, os fatos vêm confirmar e amplificar esse medo.

FICÇÕES

Não sei se a ilustração disso tudo pode ser encontrada nas inúmeras ficções cinematográficas ou literárias, frutos de uma mesma sideração face à bomba nuclear, em que o fim no mundo deixou de ser representado, precisamente quando, pela primeira vez, dispomos dos meios de provoca-lo. E igualmente quando nos lançamos na mais frenética especulação a respeito dos múltiplos desastres que se prefiguram com a modernidade. Continua sendo verdade que o fato de se poder prefigura-los não suscita mais que imagens previsíveis, para não dizer realistas, dando provas de uma retração do imaginário catastrófico.

Nesse sentido, também se poderia dizer que as atuais catástrofes - epifenômenos de uma relação com o mundo cuja natureza essencialmente catastrófica desejamos ocultar -, não só deterioram a paisagem real como atentam contra nossa paisagem imaginária, fazendo o sonho de aniquilamento passar do infinito para a finitude. E a pobreza do que chamamos de filme de catástrofe o mostra com toda brutalidade dos produtos de grande consumo: incêndios de arranha-céus gigantescos, rupturas de barragens colossais ou inundações de arquiteturas subterrâneas são apresentados como casos particulares para evidenciar, de modo mais pontual, o preço que o homem deve pagar por não ter querido prestar atenção ao mundo no qual vive. Mas, ao mesmo tempo, para esconder que a evocação dessas catástrofes, apesar de parciais, serve para nos divertir com a catástrofe nuclear que, doravante, ameaça o planeta inteiro.

PERSPECTIVA

Inversão de perspectiva sem precedentes: pela primeira vez, ao invés de levar ao mais longínquo limite, o imaginário traz para o limite mais próximo; também pela primeira vez, ao invés a abrir o horizonte, ele o fecha valendo-se essencialmente do que pode ser verossímil, de modo que as atuais encenações da catástrofe a simulam para negar-lhe, antes de tudo, seu caráter improvável. Assim, reduzindo-se à extrapolação de uma situação-limite, tais encenações acabam por privar a catástrofe do alcance imaginário que ela sempre teve, bastando para isso suprimir aquela parte de desconhecido implícito de que ela era a portadora. (...)

E é aqui que o imaginário remete catastroficamente ao real, uma vez que, tanto num como noutro, trata-se tão somente de administrar os estragos. Sim, administrar estragos, pois infelizmente esta me parece ser a expressão que dá conta tanto do que vivemos como do que pensamos. Assim, por ocasião das recentes catástrofes como a de Tchernobyl, a do desaparecimento do mar de Aral ou a da deterioração das florestas da Polônia ou da Tchecoslováquia, não foram poucos os que se resignaram a um biscate técnico mais ou menos confiável para não remontar às verdadeiras causas desses desastres. Do mesmo modo, ao invés de aplicar todos os meios para encontrar uma maneira de escapar a tal situação, a maior parte de nossos pensadores parece ter como principal preocupação salvar a ficção de uma relação com o mundo cada vez mais mentirosa. Aliás, não é o mesmo antropocentrismo arrebatado que encontramos tanto por detrás de todos estes mundos separados do pós-catástrofe quanto de todos os projetos de desconstrução tão na moda, cujo famoso "desaparecimento do sujeito" supõe a formulação arbitrária de interpretações implantadas que deveriam desmantelar toda rede de sentido?

Como então ser diferente quando o imaginário catastrófico deste tempo vem reiterar o real ao invés de nos incitar a muda-lo?

Da resposta a essas questões depende tanto o nosso futuro quanto o da poesia, se for verdade que esta, como a catástrofe, está na origem do sentido. A meu ver, como a poesia nos faz sistematicamente "ver as coisas onde elas não estão", ela é a catástrofe que cria sentido. Foi o que me coube lembrar aqui e agora, quando a própria noção de catástrofe vem servindo de modelo à falência do sentido para, assim, bloquear todas as saídas.

Mas, afinal, onde estão os nossos vigias?

ANNIE LE BRUN, poeta e ensaísta francesa, participou do grupo surrealista de Paris no início dos anos 1960.


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