Folha de S. Paulo


O poema dos gêneros e a verdade estética de "Boi Neon"

RESUMO Neste texto, Caetano Veloso analisa o segundo longa de ficção de Gabriel Mascaro, que sai em DVD no mês que vem. Para o músico, o filme, que questiona a normatividade de gênero, não parece fruto da concepção do cineasta pernambucano; antes é como se os personagens e a vida do Nordeste se impusessem ao autor.

Ilustrissima
Cena do filme Boi Neon
Cacá (Alyne Santana), filha de Galega (Maeve Jinkings), brinca com seu cavalinho voador no filme

"Boi Neon" é um belo filme feito no Brasil. Principalmente por ele e por "O Som ao Redor" (mas não só), o cinema de Pernambuco é uma das forças profundas que mantêm o país de pé. Todas as imagens do filme de Gabriel Mascaro são de uma beleza extraordinária e se sucedem num ritmo que lhes dá sempre maior sentido compositivo e emocional. A fotografia de Diego García é fundamental para que essa beleza se materialize. Mas o entrosamento da concepção e direção do filme com sua expressão plástica revela o essencial do que seja a feitura de uma grande obra.

O modo como o gado é filmado já mostra intensidade de poesia desde o plano de abertura. A intimidade com que as cenas são captadas, os diálogos, as caracterizações trazem para o espectador a verdade do ambiente em que a quase não história se passa. É um Nordeste brasileiro rural em que a cultura urbana que domina o mundo tem modos especiais de penetrar. A tinta fosforescente sobre a pele do animal que dá título ao filme é a síntese da estranha naturalidade com que se dá esse encontro de mundos.

O ambiente das vaquejadas, com sua mescla de crueldade e arcaísmo inocente, é o lugar perfeito para captar a densidade dessas misturas de perspectivas. Tem-se mesmo a impressão de que quem escreveu e dirigiu o filme tem familiaridade com aquele universo –ou o estudou tão meticulosamente que acabou por abrir-lhe sua alma.

CONCENTRAÇÃO

O lento poema sobre o masculino e o feminino que o filme vai revelando ser ampara-se na miraculosa concentração dos atores profissionais e amadores que foram escolhidos ou encontrados.

A firme masculinidade de Juliano Cazarré, todo o erotismo que emana de seu corpo, de sua voz, de cada mínimo movimento seu, nunca parece uma característica exibida: é sempre o meio incontornável de a pureza d'alma do personagem manifestar-se.

Maeve Jinkings, que em "O Som ao Redor" é uma exuberantemente sexuada mãe de família, aqui apresenta uma sobriedade interpretativa que, apesar do aparente contraste com os cabelos oxigenados que exibe e com as cenas de dança e de sexo que protagoniza, não sugere contenção deliberada, mas expressão de um temperamento sóbrio.

Pelo modo como esses dois atores são aproveitados, pode-se medir a inspiração do autor e diretor, que estende sua sensibilidade por toda a paisagem física e humana que retrata. A verdade estética das imagens, dos sons e das personalidades que se apresentam é tão intensa que o espectador não é levado a pensar que as situações insólitas que presencia foram concebidas de antemão e só no set de filmagem ganharam credibilidade surpreendente. Não. O espectador, ao contrário, sente como se aquelas coisas todas tivessem acontecido, e o cineasta tivesse sido irresistivelmente arrebatado por elas –e tivesse de registrá-las.

NUDEZ

Um vaqueiro másculo e rude que viaja com uma trupe de rodeios precários e cruéis é atraído por tudo o que se liga ao mundo da moda, da criação de roupas femininas: ele desenha, sobre fotos de mulheres nuas na "Playboy" (a cuja nudez ele não dá nenhuma importância, zombando dos colegas que se masturbam olhando para elas), modelos que serão usados pela moça loura, feminina e singela, que dirige o caminhão no qual ele segue junto a colegas de trabalho.

Essa loura atua num espetáculo paralelo às vaquejadas, usando modelos desenhados pelo vaqueiro, e também trata da parte mecânica do veículo com naturalidade. Tem uma filha de cerca de dez anos que gosta de cavalos e quer usar botas. Por causa de uma tentativa de tirar proveito de um leilão de éguas, vê-se o vaqueiro, com a ajuda de um dos companheiros, masturbar um cavalo até que este ejacule.

Finalmente, uma jovem grávida que vem divulgar a venda de um perfume (em pleno momento da vaquejada) termina por levar o vaqueiro a uma fábrica de tecidos, onde ela à noite trabalha, armada, como segurança.

Tudo poderia parecer uma fábula artificiosa sobre troca de papéis de gênero. Mas são os atores e os personagens, a geografia e a vida real do Nordeste brasileiro que levam o autor às situações que descreve –e que não tem como não descrever. É como na criação de um poema: algo se impõe a quem o compõe.

Num dado momento, pelo meio do filme, os viajantes topam com um artista que pinta sobre as grandes pedras do semiárido. Numa delas, uma onda que não é de todo diferente das ondas de Kanagawa. Ao lado dessa, uma outra, em que se lê TROPICAOS. A referência pode ser ao coletivo de pernambucanos em São Paulo, Calefação Tropicaos, que promove eventos. Mas não se pode deixar de pensar em Rogério Duarte (1939-2016) e em seu livro que tem "Tropicaos" como título.

Nele se reúne o que restou de sua obra literária (ele queimou o essencial durante a ditadura militar) e observações sobre sua participação no tropicalismo. Toda uma crítica da vida brasileira –e da redução do movimento a seu aspecto de indústria cultural– condensa-se nessa palavra que reaparece pintada na pedra à beira da estrada por que passa a trupe de "Boi Neon".

Para mim, crítico bissexto (e bissexual), que vi o filme no Cine Glauber Rocha em Salvador, essa visão da pedra crítica dá a dimensão do sentido amplo dessa obra cinematográfica peculiar.

Há uma sociologia minuciosa, expressa em tom de ficção naturalista, que serve de véu através do qual se vê o poema dos gêneros e da proximidade entre a vida animal e os humanos que, entre fezes bovinas e esperma equino, buscam a ascensão social mas também o sublime. Mostrando isso, o filme é que o alcança.

Nota:
Este texto foi originalmente escrito para publicação na imprensa americana durante o período em que o filme esteve em exibição nos EUA, mas permanecia inédito. O DVD de "Boi Neon" deve estar à venda no Brasil a partir de 16 de junho (Imovision, R$ 39,90).

CAETANO VELOSO, 73, é músico, compositor e autor de, entre outros, "O Mundo Não É Chato" (Companhia das Letras).


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