Folha de S. Paulo


Elegante e "cool", Obama se despede da Casa Branca

RESUMO Em que pesem erros e promessas nem sempre cumpridas, Barack Obama deixa boa impressão mesmo entre conservadores, como o articulista David Brooks, que diz já sentir saudade do "ethos de integridade, humanidade, boas maneiras e elegância" que o primeiro presidente negro dos Estados Unidos irradia.

foto Eduardo Knapp/Folhapress

O que será da Casa Branca a partir de 20 de janeiro de 2017, quando Barack Hussein Obama 2º, 54, 44º presidente do país, deixar "cair o microfone" e sair da residência oficial após oito anos, levando a mulher, Michelle, e as filhas adolescentes, Malia e Sasha?

O articulista David Brooks, do jornal "The New York Times", respondeu em fevereiro deste ano. Integrante da "reserva ecológica" conservadora do jornal americano –tradicionalmente alinhado aos democratas, o "NYT" apoia a pré-candidatura de Hillary Clinton–, Brooks publicou um texto cujo título, sozinho, bastou para irritar parte do seu leitorado: "Saudades de Barack Obama".

"É óbvio que discordo de uma série de decisões de Obama e espero que haja uma mudança de filosofia na próxima Presidência", explica o articulista. "Mas, ao longo desta campanha, temos sentido um declínio nos padrões gerais de comportamento. Muitos dos traços de caráter e liderança de Obama, que nós talvez tenhamos dado de barato, de repente parecem ter desaparecido ou começado a escassear." Brooks segue adiante e alude a um "ethos de integridade, humanidade, boas maneiras e elegância" que o presidente "irradia".

Embora façam uma série de reparos à gestão do primeiro presidente americano negro, os especialistas ouvidos pela Folha, em sua maioria, tendem a concordar com o sentimento do articulista –mais próximo do líder que ganhou o Nobel da Paz em 2009, antes do primeiro ano de mandato, que do presidente que decuplicou o uso de drones em relação à gestão anterior, do republicano George W. Bush (2001-2009), com uma estimativa de 400 civis mortos.

"Os candidatos republicanos inspiram ansiedade e medo num grau que jamais experimentei em minha vida adulta", diz Julia Sweig, do "think tank" Council on Foreign Relations, em entrevista por e-mail antes da desistência de Ted Cruz. A saída do senador ultraconservador, em 3 de maio (seguida pela de John Kasich) abriu caminho para que o bilionário e celebridade de TV Donald Trump seja o candidato republicano, possibilidade que apenas um ano atrás era motivo de chacota (o site "Huffington Post" chegou a noticiar a campanha de Trump na seção de entretenimento).

Sweig diz que, se as pesquisas divulgadas até o momento estiverem certas e Hillary se eleger em novembro, o estilo "cool" de Obama e sua habilidade em "não soar como um político calculista" farão falta. A especialista, porém, ressalta as diferenças entre a ex-secretária de Estado e Donald Trump: a favorita democrata é mais "bélica" do que ela gostaria, mas é "séria e experiente", argumenta.

"O estilo de liderança que Obama exerce –que fala aos pobres desempregados, ao establishment econômico e às elites culturais– é muito raro no panorama político americano. Nenhum dos pré-candidatos tem a envergadura que ele tem. Nesse sentido, sim, fará falta", secunda o colunista da Folha Alexandre Vidal Porto, diplomata que serviu na Embaixada do Brasil nos Estados Unidos por dois períodos (2003-07 e 2008-11).

"A comparação entre Obama e os atuais candidatos à Presidência dos EUA, inclusive Bernie Sanders [senador e rival de Hillary na disputa democrata], é muito ilustrativa dessa sua condição tristemente excepcional –pelos dons de oratória, pela ambição das propostas políticas generosas, pelo engajamento em causas humanitárias", afirma Carlos Eduardo Lins da Silva, editor da revista "Política Externa" e ex-correspondente da Folha em Washington.

Embaixador do Brasil na capital americana de 1999 a 2004 e editor da revista "Interesse Nacional", Rubens Barbosa também destaca o aspecto "presidente-celebridade" do atual ocupante da Casa Branca. "Acho que o sentimento expressado vai muito além da política. Brooks poderia estar pensando também no estilo de governo, na elegância das apresentações de Obama, na discrição de Michelle. Se forem comparadas não só as políticas defendidas, mas o gestual de Trump, por exemplo, ressalta-se ainda mais a diferença."

Matias Spektor, professor de relações internacionais da FGV-SP e colunista da Folha, alerta, porém, para as diferenças entre retórica eleitoral e "realpolitik" –a condução do processo político depois que o vitorioso toma posse. "Obama surpreendeu, pois se elegeu com plataforma anti-Bush, mas, quando empossado, abraçou boa parte da agenda de Bush. É cedo para saber como Hillary ou Trump virão a se comportar."

PATO MANCO

A maioria dos entrevistados elogia a reforma na saúde (apelidada de Obamacare) e a agenda pró minorias do presidente, citando como exemplo seu apoio à decisão da Suprema Corte que legalizou o casamento gay. Na política externa, os especialistas são unânimes em apontar o acordo nuclear com o arqui-inimigo Irã e a reaproximação de Cuba, após 53 anos de ruptura, como pontos altos –ambos concluídos já perto do fim de seu segundo mandato, num momento em que geralmente presidentes perdem poder, fazendo por merecer a alcunha de "lame ducks" (patos mancos).

Para Celso Amorim, ministro das Relações Exteriores nos governos Itamar Franco (1993-95) e Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2011), a diplomacia americana foi ficando "cada vez mais parecida com a política externa do presidente Lula". "Primeiro Cuba, depois Irã; diálogo em vez de confrontação", diz Amorim, que vê o legado de Obama como "misto".

"Até a eleição de meio de mandato de 2014, Obama custou a entrar realmente com todas as forças no esforço para cumprir suas inúmeras promessas de campanha", afirma Carlos Eduardo Lins da Silva. Na opinião do jornalista, a derrota naquele ano –em que o presidente perdeu a maioria para a oposição republicana nas duas casas do Congresso– "parece ter liberado Obama de todos os constrangimentos". "Esse fenômeno de revigoramento pela adversidade lembra o do personagem principal do filme 'Django Livre', de Quentin Tarantino."

Privado da maioria parlamentar, "Django Obama" lançou mão de instrumentos legais exclusivos da Presidência, semelhantes a decretos, para diversos objetivos –por exemplo, para o reatamento com Cuba (o presidente não pode, contudo, revogar o embargo à ditadura da ilha, decisão que cabe ao Congresso). Lins da Silva lembra, no entanto, que um presidente de oposição pode desfazer essas ações valendo-se dos mesmos instrumentos. De todo modo, parece pouco provável que isso ocorra no caso de Cuba. "A decisão estava madura, tanto que não houve reação significativa do lobby cubano nos EUA", aponta Rubens Barbosa.

Quanto ao fechamento da prisão dos EUA em Guantánamo, símbolo da Guerra ao Terror de Bush –promessa feita por Obama ainda em seu primeiro mandato e não cumprida–, o ex-correspondente em Washington argumenta: "Ele não conseguiu fechar, mas praticamente já a esvaziou por meio de uma microadministração de diversos casos e em negociações com vários países". "Ainda podemos ter surpresas [em Guantánamo] até o fim do ano", avalia Spektor.

Outros analistas chamam a atenção para o início do governo do democrata –principalmente as medidas para debelar a crise econômica de 2008-2009, herdada do antecessor. "Ele adotou políticas keynesianas que funcionaram", diz Alexander Keyssar, historiador da Universidade Harvard. "É difícil a imprensa dar destaque ao que não aconteceu. Mas uma gravíssima crise não aconteceu graças à intervenção pessoal de Obama", acrescenta Matias Spektor.

"Creio que, em uma perspectiva histórica, Obama vai ser visto como um dos grandes presidentes norte-americanos", aposta Barbosa. O ex-embaixador nos EUA cita a procura por soluções bipartidárias em uma sociedade cada vez mais polarizada –pesquisa recente do instituto Pew mostra alta no total de eleitores que se identificam com os extremos do espectro político, à direita e à esquerda– e lembra, como sucesso do presidente, a assinatura da Parceria Transpacífica, acordo comercial com o Japão e mais dez países do Pacífico.

ASCENSÃO DO EI

Os pontos fracos da administração do democrata também são, em geral, objeto de concordância. As ações erráticas dos EUA em países como o Egito e a Líbia durante a Primavera Árabe, que eclodiu em 2011, são um deles. Além disso, foi durante o governo de Obama que o Estado Islâmico cresceu, decretou um califado na Síria e no Iraque e passou a ser uma das principais ameaças aos americanos e a seus aliados no Ocidente.

Em 13 de novembro de 2015, numa entrevista à rede de TV ABC, o presidente chegou a dizer que os ataques aéreos da coalizão liderada pelos EUA haviam "contido" o EI –horas antes dos atentados que mataram ao menos 130 em Paris, reivindicados pela rede terrorista. Em dezembro, um ataque que teria sido inspirado pelo EI deixou 14 mortos na Califórnia.

Celso Amorim é incisivo: "Obama errou redondamente na Líbia (repetindo o erro do Iraque), destruindo a estrutura estatal e facilitando o surgimento e/ou expansão do EI. No plano comercial, errou ao abandonar as negociações multilaterais da Rodada Doha em favor dos mega-acordos regionais. Além das consequências nefastas para os países pobres, que geram pobreza e aumento dos fluxos migratórios, essa fragmentação debilita a arquitetura criada depois da Segunda Guerra para promover o progresso econômico e, sobretudo, garantir a paz".

Para um diplomata brasileiro ouvido pela Folha sob a condição de anonimato, a lógica dos EUA durante o governo Obama foi passar de interventor direto no Oriente Médio, muitas vezes amparado pelo uso da força, a observador interessado com resultados razoáveis, entre erros e acertos. "As políticas dele [para a região] foram evidentemente malsucedidas, mas não dá para saber se outras opções disponíveis teriam tido sucesso", pondera Alexander Keyssar.

O historiador vê outro problema na gestão Obama, relacionada ao sistema financeiro –cuja crítica é uma das principais plataformas de Bernie Sanders, pré-candidato que surpreendeu nas primárias democratas, embora deva perder a indicação para Hillary Clinton.

Para Keyssar, Barack Obama "deveria ter agido com mais firmeza sobre bancos e instituições financeiras entre 2009 e 2011, quando tinha o capital político para isso". "As leis aprovadas parecem fracas demais para impedir que aquela crise se repita."

ROGÉRIO ORTEGA, 45, jornalista, é colaborador da Folha e escreve o blog Coxinha com Mortadela no site do jornal.

PAULO MONTEIRO, 54, é artista plástico.


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