Folha de S. Paulo


A crise eleitoral e o poder do 1% mais rico nos Estados Unidos

RESUMO O autor considera que decisão da Suprema Corte de 2010 mudou o tabuleiro das finanças eleitorais nos EUA. Aumentou desde então o fluxo de dinheiro para os chamados Super PACs (Comitês de Ação Política), que não podem entregar os recursos aos candidatos, mas podem gastá-los de maneira independente.

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Talvez, enquanto lê estas linhas, você esteja na padaria, comendo um pão na chapa. Ou pode ser que esteja na cozinha, tomando um mate. Ou num banco do parque, na hora do almoço, ou fumando um cigarro na sua varanda. Seja você quem for e onde quer que esteja, não me sinto propriamente honrado de saber que uma parte minúscula de sua mente –uma fração de fração, um cisco que seja, invisível a olho nu– tem noção da bizarrice da eleição que estamos vivendo nos Estados Unidos.

É claro que as eleições americanas sempre tiveram mais importância fora do país que dentro dele, e os EUA fazem muitas coisas no exterior valendo-se da pouca consciência de seus eleitores. O fato de que o Brasil esteja no meio de sua própria crise e que essa parte mínima de seu cérebro tenha dedicado atenção ao nosso circo me faz pedir desculpas. Trata-se de um processo tão inquietante e incompreensível para nós quanto, suponho, para vocês.

CÂNCER

O que está se desenhando nas eleições presidenciais americanas de 2016 nasce da mesma doença que vocês combatem agora em seu país. O dinheiro virou um câncer no sistema político norte-americano, como no Brasil. Não sou ingênuo a ponto de pensar que ele não estivesse presente antes, nas sombras da política oficial, ou que a corrupção já não existisse.

Todos temos células cancerosas latentes dentro de nós. Basta ler umas biografias –até os Kennedy compraram votos. Literalmente. Mas, se um câncer cresce descontroladamente, ele mata o hospedeiro. Isso é o que está acontecendo nos Estados Unidos.

Bem que eu gostaria de poder dizer que a fonte do câncer hoje é Donald Trump –adiei, mas fui obrigado a dizer seu nome. Hoje há pouquíssimas chances de qualquer outra pessoa ser o candidato republicano em seu lugar. Bem que eu queria, também, poder dizer que a fonte é Hillary Clinton. Ela não venceu a última etapa, mas a esta altura é quase impossível que Bernie Sanders, o socialista de Vermont, a ultrapasse.

Nossos candidatos são sintomas de dois fatos simultâneos: o colapso do Partido Republicano e a presença cada vez maior do dinheiro na política norte-americana. Fatos, que, sob muitos aspectos, se unem numa mesma força, pois o primeiro não se realizaria tão completamente sem o segundo.

TRIBUNAIS

Foi numa eleição passada que essa história nasceu, indo da privacidade dos escritórios de advocacia para os tribunais, e deles à Suprema Corte. Em momento algum do processo as decisões foram tomadas por representantes eleitos. Juízes são nomeados. Advogados são contratados. Mas as consequências para os eleitores são enormes e, como estamos descobrindo, catastróficas. Hoje a política americana recebe livres injeções de dinheiro. Nestas eleições, estamos tendo o primeiro vislumbre do que isso significa para as feições que a corrida presidencial assumirá.

Em 2007, uma firma chamada Citizens United concebeu e realizou um filme sobre a vida de Hillary Clinton, com a intenção de exibi-lo durante a campanha para a eleição de 2008, quando ela disputou a indicação democrata com Barack Obama. Até então uma empresa, tivesse ou não fins lucrativos, era proibida de colocar no ar qualquer coisa que pudesse ser considerada propaganda eleitoral, dentro de um determinado prazo que antecedesse uma eleição.

A Citizens United moveu uma ação judicial dizendo que tal proibição violava seus direitos sob a Primeira Emenda constitucional ""valendo-se do fato de que, sim, nos Estados Unidos pessoas jurídicas podem ser tratadas como pessoas físicas. Em 2009, levou o caso até a Suprema Corte, que, em janeiro do ano seguinte, decidiu a seu favor por cinco votos a quatro.

Com isso, abriram-se as comportas para que o dinheiro jorrasse de organizações sem fins lucrativos e, mais tarde, de entidades com fins lucrativos para os Super PACs (PAC é o acrônimo em inglês para Comitê de Ação Política).

Super PACs não podem entregar o dinheiro que arrecadam a um candidato, mas podem gastá-lo de forma independente e sem restrições em uma eleição. Também podem aceitar doações irrestritas de sindicatos, empresas, organizações sem fins lucrativos e indivíduos. Se uma empresa do setor de defesa, por exemplo, quiser doar US$ 100 milhões ao fundo eleitoral de um candidato, ela não entrega o dinheiro ao candidato, mas a um Super PAC, que gasta –de modo independente– o dinheiro na campanha do candidato.

À primeira vista, essa novidade parecia possibilitar a chegada de um tsunami de dinheiro corporativo para o governo. Na realidade –e isso revela muito sobre a disparidade escancarada em quase todas as cidades americanas, especialmente em Nova York–, a maior parte do dinheiro canalizado para os Super PACs vem de um número reduzido de bilionários.

Num artigo de 2015 na revista alemã "Der Spiegel", Markus Feldkirchen observou que, em agosto daquele ano, os Super PACs já tinham recebido mais de US$ 400 milhões, muito mais que em qualquer campanha anterior. Isso foi o que possibilitou a aparição de tantos pré-candidatos republicanos. Todos tinham seus próprios Super PACs; alguns deles, mais de um.

Um pouco depois, o jornal "The New York Times" chamaria a atenção para o fato de que mais da metade do dinheiro levantado até então para a campanha de 2016 viera de apenas 158 famílias.

Neste ano, os Super PACs já angariaram mais de US$ 700 milhões. Candidatar-se à Presidência passou a custar muito dinheiro. E a maior parte dele vem do 1% mais rico da população, que lucrou tremendamente enquanto a disparidade de renda só fazia aumentar.

Para explicar sem mais rodeios, no quadro desse sistema bem viciado e diante da gastança dos Super PACs para manter na disputa seus candidatos, comprados de acordo com finalidades específicas, o campo ficou livre para que um candidato não comprado viesse conquistar a adesão de parcelas muito grandes do eleitorado republicano e dos eleitores independentes que se sentem traídos pelas pessoas que elegeram no passado.

A ironia máxima é que esse candidato não comprado é um bilionário –embora parte do segredo de Trump para atrair eleitores resida em não parecer um bilionário.

Sim, ele tem seu próprio avião e vive dizendo que é "muito rico, rico de verdade" e que "cobiça nunca é demais". Mas, apesar do QI elevado que ele também gosta de alardear, Trump é um dos candidatos mais toscos e despreparados que já se viu. Ele pode ser bilionário, mas soa como o assim chamado "homem do povo".

Ou, dito de outra forma, ele não soa como se alguém tivesse pago para ele dizer as coisas que fala. Mesmo seus correligionários são obrigados a reconhecer que certas coisas que ele diz são estapafúrdias (como afirmar que, se Ivanka não fosse sua filha, ele provavelmente namoraria com ela), ofensivas (chamou imigrantes mexicanos de estupradores e ladrões) ou pura e simplesmente vulgares (ele não economiza as alusões a sua mulher, "a supermodelo").

CULPA

O Partido Republicano tem uma culpa enorme no cartório. Durante anos os republicanos investiram no acirramento de polêmicas sociais –o casamento gay, o aborto– a fim de atrair eleitores conservadores às urnas, eleitores cujos interesses financeiros e materiais eles não tinham plano algum de proteger.

Enquanto isso, assinavam-se acordos que transferiram empregos para fora do país, fecharam fábricas americanas e dizimaram a classe média. Quando a bolha criada por essas e outras decisões estourou, vieram a falência de bancos e a crise das hipotecas. Muitas pessoas perderam suas casas, e nenhum desses republicanos eleitos –e vários dos democratas tampouco– fez coisa alguma para proteger seus eleitores.

Em vez disso, eles ajudaram a socorrer as instituições financeiras que tinham explorado seus eleitores ou apostado o dinheiro deles. É por isso que, agora, as pessoas estão furiosas, e não sem razão.

Donald Trump pareceu ser a resposta a essa indignação porque, durante as primárias, não estava sendo pago por ninguém para dizer o que diz sobre cuidar dos Estados Unidos e das pessoas comuns em primeiro lugar: ele pode pagar o preço de sua honestidade.

Agora, porém, que obteve delegados em número suficiente para sair candidato, Trump pôs fim ao seu autofinanciamento e se dirigiu ao comitê nacional do Partido Republicano para levantar o US$ 1,5 bilhão que ele estima que sua campanha vá custar. Como não tem uma base de financiadores, é provável que ele tenha de procurar doadores que injetaram dinheiro em outras pré-candidaturas que defendiam seus interesses.

Trump é considerado "comedido". Foi este o eufemismo que o comentarista político David Gergen aplicou a ele, querendo dizer, na verdade, que Trump não vai gastar seu próprio dinheiro se puder usar o de outra pessoa –exatamente como faz nos seus negócios.

Ele empresta seu nome a empreendimentos que ele próprio não controla, como se fosse uma marca –de fato, ao declarar seu patrimônio, ele avaliou que a marca e licenças associadas a ela valeriam US$ 3,8 bilhões. Na expansão dessa marca, ele importou roupas da China e do México, adquiriu propriedades na Turquia e construiu resorts na Indonésia –repetindo um comportamento que, em seus discursos, ele ataca.

Se tomarmos sua atitude comercial como parâmetro, o que ele fez, até agora, foi vender aos eleitores a marca "Trump, o outsider", e fará tudo o que for preciso para ser eleito. Em resumo, vai começar a se comportar como um político.

Mas um sistema viciado, que fomenta críticas populares, muito provavelmente favorece mais um político de carreira. Por isso, a despeito dos esforços árduos de Trump, é bem possível que haja um novo membro da família Clinton na Presidência em 2016.

Hillary Clinton faz por merecer o cargo nessa contenda. Ela é mais experiente, mais bem preparada, muito mais tolerante para com a mistura cultural que fez e faz o país, além de ter a rede política necessária para governar. Ela tem redes ainda maiores –de amigos, companheiros, doadores e empresas, onde ela e seu marido deram muito bem pagas palestras– às quais recorrer para criar uma reserva financeira com a qual pode derrotar Donald Trump.

Infelizmente, quem vai ficar de fora dessa disputa é o povo. Muitos milhões de pessoas votaram nas primárias, mas um número enorme de pessoas não votou. A Suprema Corte derrubou aspectos cruciais da Lei de Direitos dos Eleitores, promulgada nos anos 1960, que impedia governos locais de impor restrições ilegais ou barreiras diretas ao voto.

São notáveis os esforços que determinados Estados, como a Carolina do Norte, promovem para reduzir o comparecimento de eleitores às urnas. Em outros casos, como o do meu Estado, Nova York, as regras não ajudam. É preciso se cadastrar para votar (seja num partido ou no outro) 190 dias antes da primária presidencial.

Assim, na primária do Estado de Nova York, apenas 19,7% do eleitorado votou. Não é assim que se governa um país, e Bernie Sanders já o disse. Ele levantou US$ 200 milhões para sua campanha, quantia obtida somente com doações de indivíduos, e chegou perto de tornar-se candidato a presidente.

É do povo que vamos precisar para dar jeito na enorme bagunça em que nos metemos. Desse povo que, quando é consultado e se engaja, faz uma grande diferença.

À medida que se aproxima um ciclo eleitoral no qual sem dúvida prevalecerão baixarias e lances dignos de tabloides –com mais menções ao cabelo de Trump do que ao grande número de doentes mentais sem-teto nas ruas de nossas cidades ou ao fato de que seis instituições financeiras possuem riqueza conjunta equivalente a 65% do PIB dos Estados Unidos–, eu tentarei me lembrar disso.

JOHN FREEMAN, 41, jornalista e poeta, organizou o livro "Histórias de Duas Cidades" (Bertrand Brasil).

CLARA ALLAIN é tradutora.


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