Folha de S. Paulo


Leia trecho de "Corações Cicatrizados", do autor romeno Max Blecher

SOBRE O TEXTO Como o personagem deste romance, o autor romeno Max Blecher sofreu de uma enfermidade, a tuberculose vertebral, que limitaria muito sua vida. Isso porém não o impediu de colaborar com o grupo surrealista de André Breton e de produzir uma obra consistente, em prosa e poesia, antes de sua precoce morte, aos 28 anos. "Corações Cicatrizados" sai pela editora Carambaia no fim deste mês.

Mario de Alencara

Emanuel subiu a escadaria escura. Havia no ar um cheiro de produtos farmacêuticos e de borracha queimada. No fim do corredor estreito, reconheceu a porta branca que lhe fora indicada. Entrou sem bater.

O aposento em que se viu parecia ainda mais velho e mais embolorado que o corredor. A luz entrava pela única janela, espalhando uma claridade azul e hesitante por sobre a bagunça da salinha, com revistas desarrumadas por toda parte, cobrindo a mesa de mármore e as solenes cadeiras, envoltas em capas brancas como se envergassem confortáveis trajes de viagem, antes da mudança.

Mais que sentar, Emanuel se deixou cair na poltrona. Observou, surpreso, sombras que percorriam a sala e logo descobriu que a janela do fundo era, na verdade, um aquário em que flutuavam lentos peixes negros, gordos e de olhos esbugalhados. Por alguns segundos permaneceu de olhos bem abertos, acompanhando seu preguiçoso deslizar, quase esquecendo o motivo pelo qual viera.

Na verdade, para que viera até ali? Aha!, lembrou e tossiu de leve para anunciar sua presença, mas ninguém respondeu.

Suas têmporas ainda latejavam, mais por ter corrido do consultório do doutor Bertrand até ali do que por qualquer emoção genuína. Naquela sala velha e séria ele se sentiu um pouco mais calmo.

Uma porta se abriu e uma mulher cruzou a salinha a passos rápidos, sumindo pela porta que dava para o corredor. Emanuel se arrependeu por não tê-la abordado para pedir que anunciasse sua presença.

Os peixes continuavam deslizando tristes debaixo da luz mortiça. Havia na sala tanto silêncio, tanta escuridão e tanta solidão, que, se aquela situação tivesse durado uma eternidade, Emanuel não teria tido mais nada a dizer. Pelo contrário, ele a teria aceitado com resignação, permanecendo assim ainda muito tempo do lado de cá da verdade brutal que, talvez, ele haveria de descobrir dentro de poucos minutos.

Do lado de trás de uma porta, alguém deu uma tossidela como resposta atrasada à sua tosse de poucos instantes antes.

Apareceu na soleira uma criatura diminuta, escurecida, como um animal assustado saindo da toca.

– O senhor foi enviado pelo doutor Bertrand? Bom! Já sei, ele me telefonou... dores violentas no lombo, não é isso?... Uma radiografia da coluna vertebral.

O homúnculo esfregava nervoso as mãos, como se quisesse se livrar dos restos de terra que tinham ficado presos aos dedos enquanto cavara seu buraco.

Tinha olhinhos de toupeira, tumefatos, brilhando como ouro à luz tênue.

– Logo veremos o que é... Por favor, me siga.

Emanuel o seguiu, atravessou o corredor e se viu diante de uma sala absolutamente escura. Dali vinha aquele cheiro pesado de borracha queimada.

Acendeu-se uma lâmpada fraca que revelou uma sala cheia de aparelhagem médica com estruturas niqueladas de canos e barras de circo.

Havia tantos cabos elétricos por toda parte que Emanuel ficou perplexo na soleira, com medo de entrar e tocar em algo que desencadeasse uma formidável corrente cheia de raios e faíscas.

– Por favor!... por favor... – disse-lhe o médico quase pegando-o pela mão. – O senhor pode se despir aqui...

E o médico lhe apontou um baú de parafusos, uma máquina enigmática que às vezes servia, pelo visto, como sofá. Emanuel, pela primeira vez na vida, cometeu o gesto, tão simples e tão íntimo, de tirar as roupas numa circunstância tão solene.

O médico continuou fumando, jogando indolente as cinzas no assoalho, no assoalho daquela terrível sala científica em que cada centímetro quadrado parecia estar carregado de mistérios e eletricidade.

– Tire só a camisa...

Emanuel estava pronto. Começou a tremer.

– Está com frio? – perguntou o médico. – Só vai durar um minutinho.

O contato gélido e cortante com a mesa de lata sobre a qual se deitara o permeou com um calafrio ainda mais intenso.

– E agora, atenção... quando eu disser, segure a respiração... quero que a radiografia saia bem.

O médico abriu e fechou uma caixa metálica. A lâmpada apagou. Um tinido produziu um clique preciso. Uma alavanca caiu categórica, com um corte linear na escuridão. A corrente elétrica começou a vibrar, surda como um animal irritado. Tudo se desenrolava metálica e precisamente, como naqueles jogos em que uma bola niquelada exige nossa atenção, caindo com exatidão de compartimento em compartimento...

– Agora! – disse o médico.

Emanuel segurou a respiração. O coração se pôs a bater forte, como se ressoasse na placa sobre a qual estava deitado. Toda a escuridão retumbava em seus ouvidos.

Escutou-se mais um sussurro, que se intensificou e que se estendeu depois, bruscamente, como um carvão atirado na água.

– Já pode respirar – disse de novo o médico.

Fez-se de novo luz. Emanuel teve de repente um instante de extrema lucidez. Para que estava ali deitado em cima da mesa? Para quê?

Teve absoluta convicção de estar muito doente. Tudo ao seu redor o indicava de maneira evidente. O que significavam todos aqueles aparelhos? Certamente não eram feitos para gente sadia.

E já que ele se encontrava ali, em meio a eles, encurralado por eles...

O médico retirou a chapa da mesa de lata.

– Por favor não se vista ainda... deixe-me ver se ficou boa... permaneça assim... deitado.

O médico pegou o paletó de Emanuel e o colocou sobre o peito, dobrando-o com ternura; só sua mãe, durante a infância, cobria-o assim com o cobertor antes de dormir.

O que haveria de dizer o doutor? O que revelaria a chapa? A pavorosa chapa...

MAX BLECHER (1909-38) escritor romeno, autor de "Acontecimentos na Irrealidade Imediata" (Cosac Naify).

FERNANDO KLABIN, tradutor, é formado em ciência política na Universidade de Bucareste e desenvolve mestrado sobre a obra de Max Blecher na USP.

MÁRIO DE ALENCAR, 37, é artista plástico.


Endereço da página: