SOBRE O TEXTO O trecho aqui reproduzido é a primeira seção de "Briggflatts". Publicado há 50 anos, este longo poema narrativo de fundo autobiográfico terá sua primeira tradução para o português pela Topbooks, no fim de maio.
Foto Marcus Leoni/Folhapress | ||
Gaba-te, doce touro tenor,
acompanha o madrigal do Rawthey,
cada pedra seu tom
na primavera tardia dos cerros.
Dança na ponta dos cascos, touro,
preto contra as flores alvas.
Ridículo e adorável
caça sombras saltitantes
de manhã ao meio-dia.
Flores alvas no couro do touro
e por todo o vale
flores alvas ladrilham as valas,
por onde a cobra-de-vidro resvala.
Um pedreiro bate seu malho
justo ao piar da calandra,
escutando enquanto o mármore descansa,
impõe sua lei
no talho de uma letra,
os dedos checando,
até que a pedra soletra um nome
nomeando ninguém,
um homem abolido.
Dolorosa calandra, lutando para voar!
O solene malho diz:
Na tumba, defunto,
ele jaz. Nós juntos.
A ferrugem fura a lâmina,
o trigo fica no excremento
tremendo. O Rawthey treme.
A língua tropeça, orelhas erram
temendo a primavera.
Raspa a pedra com areia,
arenito molhado limando
toda a aspereza. Os dedos
doem na pedra raspada.
O pedreiro diz: Rochas
por acaso surgem.
Ninguém aqui tranca a porta,
o amor rasga e corta.
Pedra branda como a pele,
fria como os mortos que vão
numa carroça noturna.
A lua pousa no cerro
mas logo choverá.
Sob sacas na pedra
duas crianças deitam,
ouvem o cavalo mijar,
o pedreiro silvar,
arreio chiar na trave,
aro no eixo ranger,
roda sulcar o chão,
esmagado grão.
Meia com meia, jérsei com jérsei,
cabeça sobre um braço duro,
eles se beijam sob a chuva,
marcados pela cama de mármore.
Em Garsdale, alvorada;
em Hawes, chá da lata.
A chuva para, as sacas
fumegam ao sol, eles sentam.
Bigode de fio de cobre,
olhos de mar refletido
e cantochão suave do Báltico
declaram: Perto dessas rochas
homens mataram Bloodaxe.
Sangue feroz pulsa em sua língua,
magras palavras.
Crânios ceifados para capacetes de aço
amontoam-se em Stainmore.
Seus riachos bordejam a rocha,
assobiam rente ao musgo.
A carroça atolada empurra o cavalo para baixo.
Nesse ar suave
eles andam e cantam,
lançando a canção livremente no ar.
Todos os sons se calam,
balido na encosta,
se esconde a tarambola.
O pulso dela seus passos,
palma contra palma,
até encher um fosso,
pedra branca como queijo
zomba no vale.
Madeira nodosa, dura de rachar,
arde até cinzas virar;
odor das maçãs de outubro.
A estrada de novo,
num trote.
Mais úmidos, mornos, veem
o pedreiro a meditar
e a nomear e datar.
A chuva lava o caminho,
o touro escorre e lamenta.
Azedo mingau de centeio sai do forno
com creme e chá preto,
carne, crosta e casca.
Os pais dela na cama
as crianças secam as roupas.
Ele desatou o laço
das calças de lã listada dela
frente ao fogão. Nu
sobre o tapete de trapo
seus dedos somem
na palha de sua casa de homem.
Vozes gentis generosas tecem
sobre a noite nua
palavras que confirmam e deleitam
até a alvorada da ave.
Água de chuva do tonel
ela traz e espalha
para limpá-lo palmo a palmo
beijando os seixos.
Brilhante cobra-de-vidro parte da maravilha.
O pedreiro se agita:
Palavras!
Penas são muito leves.
Pega um cinzel e escreve.
Cada nascer um crime,
cada sentença a vida.
Limpa de mofo de traças
a bola rolaria direito?
Nenhuma esperança em voltar.
Cães vacilam e se perdem,
a vergonha dobra a pena.
O amor morto não sangra nem sufoca
mas sacode o ombro do artesão.
O que ele pode, mudado, dizer
a ela, mudada, talvez morta?
O deleite definha. A culpa
ainda preocupa.
Palavras breves são duras de achar,
formas gravadas e descartadas;
Bloodaxe, rei de York,
rei de Dublin, rei de Orkney.
Não note as lágrimas;
estampa a pedra erguida
sobre o amor deixado, a menos
que um êxtase insofrível impeça
fugir para Stainmore,
para seguir
calandra, malho,
riachos, manadas
e do machado pancadas.
A bosta não estragará o mosaico
da cobra-de-vidro. A calandra sufocada
cai no ninho cheio de lixo;
o Rawthey truculento, sujo.
Esmagadas no malho, as flores alvas caíram,
névoa nos cerros. Réu da primavera
e ao fim da primavera
os anos amputados logo doem
pois o touro vira bife, o amor uma conveniência.
É mais fácil morrer do que lembrar.
Nome e data martelados
na mole ardósia rachados
em poucos meses apagados.
BASIL BUNTING (1900-85) poeta inglês.
FELIPE FORTUNA, 53, é poeta, ensaísta e diplomata. Publicou recentemente "A Mesma Coisa" e "O Mundo à Solta", ambos de poemas, pela Topbooks.
DEBORAH PAIVA, 65, é artista plástica.