Folha de S. Paulo


Leia trecho do livro 'Minha Terra Prometida', sobre criação dos kibutzim

RESUMO Neste texto, um trecho do livro "Minha Terra Prometida: o Triunfo e a Tragédia de Israel" [R$ 79,90, 496 págs.], jornalista israelense narra as dificuldades dos fundadores dos vilarejos Ein Jaloud e Ein Harod no início da década de 1920. A obra será lançada na segunda quinzena deste mês pela Três Estrelas, selo editorial do Grupo Folha.

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Quando o sol se levanta, a vista é impressionante. Fileiras e mais fileiras de tendas brancas pontilham a estupenda serrania. Ao despertar, um dos pioneiros as descreve como uma revoada de pássaros de uma terra distante que pousaram para descansar e recobrar suas forças nas ladeiras rochosas de uma ilha remota.

Os próprios pioneiros mal podem acreditar na audácia daquilo que estão fazendo. É como se um novo Antigo Testamento estivesse sendo escrito. Mas não há tempo algum para contemplação. Chegam três tratores norte-americanos obsoletos, enviados de Tel Aviv pelo Movimento Trabalhista sionista. Chegam doze cavalos húngaros fortes e de raça pura, comprados em algum lugar da Galileia. Assim, os rapazes já podem começar seu trabalho.

Primeiramente removem pedregulhos e rochas dos campos. Em seguida plantam os primeiros bosques (de eucalipto e pinheiro). Depois estendem uma trilha de cascalho que liga o kibutz à estação de trem local. As moças plantam uma pequena horta. Nas edificações de pedras abandonadas de Ein Jaloud, os rapazes montam uma carpintaria, uma sapataria, uma oficina de soldagem e um curtume. Estabelece-se uma clínica para as primeiras vítimas da malária. Constrói-se um refeitório que servirá a todos, bem como uma padaria e uma biblioteca provisória. De algum lugar, de algum jeito, aparece um piano.

Dali a algumas semanas chega o dia que todo mundo estava esperando. Ao amanhecer, há uma comoção no novo refeitório. Reunidos ali, os madrugadores tomam chocolate quente e comem grossas fatias de pão com azeite ou geleia. Terminado o desjejum, os homens vão em marcha para os campos. Marcham em cadência militar, em fila única, cantando.

Os campos já foram desobstruídos de pedras, matos e plantas nativas cheias de espinhos, e então começa o grandioso espetáculo. Dois pares de cavalos húngaros atrelados a um moderno arado de ferro encabeçam a fila. Atrás deles seguem quatro pares de mulas árabes atreladas a arados locais. À medida que o comboio avança lentamente nos campos, as lâminas de ferro perfuram o terreno e geram sulco após sulco.

As lâminas do sol atingem as lâminas dos arados enquanto elas revolvem o solo do vale, penetrando a crosta da terra profunda do antigo vale. E, quando os arados começam a fazer seu trabalho, os judeus retornam à história e readquirem sua masculinidade: ao assumirem a lida física de cultivar a terra, eles se transformam de objetos em sujeitos, de passivos em ativos, de vítimas em soberanos.

Dali a alguns dias é hora de semear. Há uma grande empolgação em meio aos jovens. Sacos cheios de sementes são içados sobre os ombros de meia dúzia de semeadores que se espalham pelo campo. Eles dão um passo, enfiam uma mãozorra no saco, pegam um punhado de sementes e em um amplo arco espalham as sementes pelo campo sulcado. Passo a passo semeiam trigo e cevada, e quando voltam para o acampamento no fim do dia todo mundo se junta em torno deles em exultação. Após 1.800 anos os judeus voltaram a semear o vale. No refeitório, cantam alegremente. Dançam na madrugada até o alvorecer.

AVANÇO

O progresso é rápido. No decorrer de uns poucos meses os pioneiros de Ein Harod aram 1.900 "dunams" [unidade correspondente a cerca de um quarto de acre] e semeiam 900 "dunams" das terras. Desobstruem cada vez mais campos. Abrem uma pedreira de montanha com cargas explosivas. Há vacas leiteiras na leiteria e galinhas que botam ovos nas capoeiras.

O contingente de camaradas do kibutz com seis meses de existência segue aumentando: 180, 200, 220. Mas o que é ainda mais impressionante é que esses camaradas já calçam sapatos confeccionados no kibutz e desfrutam de pão saído do forno do kibutz e tomam o substancioso leite do kibutz e comem ovos botados no kibutz. Comemoram os primeiríssimos tomates do kibutz.

Ao olhar em torno de si, um dos líderes fica espantado com o que vem sendo alcançado. Acha que seus camaradas se assemelham a Robinson Crusoé, que foi lançado em uma costa depois que sua embarcação naufragou. Acha que assim como Crusoé ele e seus camaradas jamais choramingaram, jamais lamentaram sua desventurada sina. Assim como Crusoé, olharam ao redor na ilha desolada e se perguntaram o que poderia ser feito. Assim como Crusoé, faziam o máximo com o que quer que achassem. Eram práticos, criativos e inovadores. Eram valentes. E assim como Crusoé engendraram um milagre surreal, de autoria humana.

O inverno de 1921 é cruel. Rajadas de vento do vale fustigam o acampamento e semeiam destruição. A chuva de montanha despenca em cascatas pelas vertentes. As tendas brancas são jogadas ao chão seguidas vezes. Não há nenhum refúgio nesse improvisado campo de refugiados, nenhuma sensação de lar para os sem-lar.

Também se abatem tragédias. Decorridos apenas cinco meses desde a fundação de Ein Harod, um de seus fundadores não aguenta mais. Está com 24 anos quando tira a própria vida com uma espingarda. Um mês depois a quietude matinal é uma vez mais rompida pelo ruído surdo de três tiros. Uma beldade loira com 20 anos é encontrada morta em uma poça de sangue. Ao lado dela está estirado, sem vida, seu bonito amante de 25 anos. Luxúria, desespero e ciúme estão à solta no campo. As condições são extremas, e também o são as emoções.

Um dos pioneiros mais introspectivos tenta definir o problema. "Ficamos nus no universo", escreve ele: "Estamos totalmente vulneráveis. E em meio a essa situação explosiva procuramos moldar um novo modo de vida. Mas nossa vida também é vulnerável e rude. Não temos o refinamento das gerações prévias. Não temos a misericordiosa ambiguidade do crepúsculo. Aqui ou é dia ou noite. Labuta durante o dia e debates ideológicos noite adentro. Uma família amorosa, o meigo afago da mão de uma mãe, o olhar austero porém alentador de um pai amoroso –todas as coisas que tornam a vida suportável– não existem aqui. Até o contato íntimo entre um rapaz e uma moça está ali para todo mundo ver, corriqueiro, óbvio, quase grosseiro. E assim precisamos nos encarar descobertos e vulneráveis. Nus. Totalmente nus. Precisamos instilar cada centelha de luz em nosso coração. Precisamos sorver cada gota do manancial de nossa própria alma. E onde haveremos de encontrar as forças? Como conseguiremos prosseguir, conquistar cada dia? Onde haveremos de encontrar poder? Onde?".

Entretanto o kibutz não se desintegra. Mesmo quando chove e se abatem tempestades, o acampamento fica animado. O suicídio e o assassinato projetam sua sombra por um tempo, mas são superados, negados e quase esquecidos. O isolamento machuca com força, mas só compele a comunidade fronteiriça a cerrar fileiras e a agarrar-se à sua frágil solidariedade.

Minha Terra Prometida
Ari Shavit
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Nas longas noites de inverno há mais canto do que dança –canções folclóricas, canções revolucionárias, canções hassídicas. Há malícia: trotes, piadas, esquetes satíricos. Uma primeira peça é montada, cada vez mais livros são lidos na biblioteca (Marx, Dostoiévski, Kropótkin, Hamsun).

Florescem casos amorosos, nascem bebês. E, enquanto avaliam seu futuro e fazem amor nas tendas, os jovens pioneiros de Ein Harod ouvem o violino solitário de um violinista alto e magro que toca em sua tenda após cada longo dia na pedreira. À luz de um lampião de querosene, ele faz soar as cordas de uma solidão sufocante.

ARI SHAVIT, 58, israelense, é jornalista do "Haaretz".

ALEXANDRE MORALES, 52, é tradutor.


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