Folha de S. Paulo


Leia trecho de 'Cidade em Chamas', romance de Garth Risk Hallberg

SOBRE O TEXTO Este trecho foi extraído do primeiro capítulo do romance de estreia do autor. A obra foi contratada pela editora Alfred A. Knopf por US$ 2 milhões em 2013, valor sem precedentes para um estreante, e sai no Brasil pela Companhia das Letras no fim do mês. No livro, a trajetória de ambições e fracassos dos irmãos Regan e William, herdeiros de uma família tradicional, se desenrola contra o pano de fundo da Nova York caótica e violenta dos anos 1970.

*

Um árvore de Natal subia a 11th Avenue. Ou, melhor, tentava; depois de ter se enroscado num carrinho de supermercado que alguém tinha deixado no meio da faixa de pedestres, ela estremecia e se arrepiava e arfava, prestes a irromper em chamas. Ou era o que parecia para Mercer Goodman enquanto ele se esforçava para salvar o topo da árvore da sucata torta do carrinho. Tudo naqueles dias estava prestes. Do outro lado da rua, marcas de fuligem conspurcavam a doca de carga em que os malucos locais faziam fogueiras à noite. As putas que ficavam ali tomando sol de dia agora assistiam através das lentes dos óculos de sol baratinhos, e por um segundo Mercer ficou extremamente preocupado com a sua própria aparência: um negro quatro olhos com roupa de veludo cotelê fazendo o que podia para andar de ré, enquanto lá na outra ponta da árvore um branquelo de cabelo desgrenhado com uma jaqueta de motociclista tentava dar puxões no tronco sem nem ligar para o carrinho. Aí o sinal mudou de não ande para ande e, miraculosamente, por alguma combinação de puxa-e-empurra, eles estavam livres de novo.

João Pinheiro

"Eu sei que você está de saco cheio", Mercer disse, "mas será que dava pra não exagerar?".

"Eu estava exagerando?" William perguntou.

"As pessoas estão olhando."

Como amigos, e até como vizinhos, eles eram uma dupla improvável, o que pode ter sido o motivo que levou o cara que vendia as árvores dos Escoteiros ali no terreno perto do acesso do Lincoln Tunnel a hesitar tanto para pôr a mão no dinheiro deles. Era por isso também que Mercer nunca ia poder convidar William para conhecer a sua família –e por isso que eles tinham, agora, que comemorar o Natal por conta própria. Dava para ver só de olhar para eles, o burguês de pele escura e troncudo, o moleque claro e mirrado: o que é que podia ter atado esses dois um ao outro, além do poder oculto do sexo?

Foi William quem escolheu a maior árvore que ainda restava no terreno. Mercer tinha insistido para ele considerar o quanto o apartamento já estava entupido, isso para nem falar da meia dúzia de quadras que os separavam de lá, mas era assim que William ia castigá-lo por querer uma árvore, para começo de conversa. Ele tinha puxado duas notas de dez do rolo que guardava no bolso e anunciado de forma sardônica, e alto o suficiente para o cara das árvores poder ouvir, "Eu pego no pau, então". Agora, entre o vapor que lançava a cada respiração, ele acrescentou, "Você sabe... Jesus ia ter mandado nós dois pro lago de fogo. Está lá no... em algum lugar do Levítico, eu acho. Eu não entendo qual é a de ter um Messias que te manda pro inferno". Testamento errado, Mercer podia ter objetado, além do fato de eles não pecarem juntos há semanas, mas era imprescindível não morder a isca. O Chefe Escoteiro estava só uns cem metros atrás deles, no fim de uma trilha de espinhos.

Gradualmente as quadras iam ficando vazias. Hell's Kitchen naquela hora se reduzia basicamente a terrenos baldios e chassis de carros queimados e um ou outro pedinte de semáforo. Era como se uma bomba tivesse explodido, deixando só os párias, o que deve ter sido o principal fator que atraiu William Hamilton-Sweeney para a região, perto do fim dos anos 60. A bem da verdade uma bomba tinha explodido, poucos anos antes de Mercer se mudar para lá. Um grupo com uma daquelas siglas violentas que ele nunca conseguia lembrar tinha explodido um caminhão na frente da última fábrica ativa, abrindo caminho para mais lofts vagabundos. O prédio deles, numa outra encarnação, fora uma fábrica de balinhas da marca Knickerbocker. De certa maneira, pouco havia mudado: a passagem de comercial a residencial tinha sido improvisada, talvez ilegalmente, e deixou um resíduo industrial pulverizado, como que cravado entre as tábuas dos pisos. Por mais que você esfregasse, restava um enjoativo aroma de hortelã.

O elevador de carga estava quebrado de novo, ou ainda, e custou meia hora levar a árvore cinco lances de escada acima. A seiva sujou toda a jaqueta de William. As telas dele tinham migrado para o estúdio no Bronx, mas de algum modo o único espaço para a árvore era em frente à janela da área de estar, onde seus galhos tapavam o sol. Mercer, antecipando isso, tinha arrumado provisões para dar uma animada nas coisas: luzes de prender na parede, um enfeite para o pé da árvore, um litro de batida não alcóolica de gemada. Ele deixou tudo no balcão, mas William desabou no futon, comendo as balinhas que ficavam na tigela, com a gata dele, Eartha K., empoleirada, toda cheia de si, no seu peito. "Pelo menos você não comprou um presépio", ele disse. Doeu, em parte porque Mercer estava bem naquele momento fuçando embaixo da pia para ver se achava os bonequinhos dos reis magos que Mamãe tinha enviado na última caixa de lembranças.

Cidade em Chamas
Garth Risk Hallberg
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Mas o que ele encontrou ali foi a pilha de cartas, pilha que podia jurar que tinha deixado largada bem à vista em cima do aquecedor de manhã. Normalmente Mercer não teria aguentado uma coisa dessas –ele não conseguia passar por uma das bolas de pelo de Eartha sem ir pegar a pazinha de lixo–, mas um certo envelope ainda fechado estava ali apodrecendo havia uma semana entre o segundo e o terceiro avisos de cobrança da Companhia de Cartões Americard Cartões, redundância sic mesmo, e ele esperava que hoje pudesse ser o dia em que William finalmente prestaria atenção na sua presença ali. Ele reembaralhou a pilha mais uma vez para o envelope ficar por cima. Largou tudo de novo em cima do aquecedor. Mas seu namorado já estava levantando para jogar gemada em cima da maçaroca das balinhas verdes, como algum cereal matinal futurista. "Café da manhã dos campeões", ele disse.

GARTH RISK HALLBERG, 37, americano, é escritor. "Cidade em Chamas" é seu primeiro romance.

CAETANO W. GALINDO, 42, é tradutor e professor no departamento de literatura e linguística da UFPR.

JOÃO PINHEIRO, 34, é artista plástico e autor de HQs como "Burroughs" (Veneta).


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