Folha de S. Paulo


Foi taioba, hoje é VLT: o vaivém dos bondes, nas ruas e na cultura

Os notívagos do centro já viram o bichão deslizar macio. Macio e vazio, pois ainda está em fase de testes operacionais durante as madrugadas. É o VLT (Veículo Leve sobre Trilhos), a grande novidade implantada no transporte urbano do Rio, que tem a promessa de começar a funcionar neste mês. Pelo andar da carruagem, será difícil de cumprir. Só de olhar, falta muita coisa.

O trajeto é curto: da rodoviária Novo Rio ao aeroporto Santos Dumont, passando pela avenida Rio Branco. As obras causaram transtorno no trânsito de veículos, mas sobretudo afetaram pedestres e comerciantes da região. Daí a expectativa: vai funcionar? A prefeitura garante que sim, e já tem planos para estender o bonde moderno até a zona sul.

Marcelo Sayão - 17.dez.2015/Efe
VLT em frente ao Museu do Amanhã, na zona portuária do Rio
VLT em frente ao Museu do Amanhã, na zona portuária do Rio

Alguns especialistas divergem: a melhor solução para o transporte de massa na cidade é e nunca deixou de ser o metrô. A expansão do chamado trecho olímpico, de Ipanema à Barra da Tijuca, anda consumindo trilhos de dinheiro –em torno de R$ 8 bilhões– e não se tem a garantia de que ficará pronta até os jogos. Para complicar, as obras da linha 4 entraram no radar da Lava Jato. Há uma certeza: a estação Gávea, outro "legado" da Olimpíada, só vai operar (se operar) em 2018.

Os novidadeiros querem experimentar logo o VLT. Tem 44 metros de extensão e capacidade para transportar 420 pessoas. Sabe-se que, para entrar na composição, os passageiros terão de apertar um dispositivo –a abertura das portas não é automática.

E há o incrível "botão do homem morto". Mais parece título de filme B de ficção científica, mas é uma ferramenta que previne qualquer tipo de problema com o condutor. Caso o botão não seja acionado de tempos em tempos, o trem interrompe a circulação.

Apenas nas estações terminais haverá cobrança prévia da tarifa (a mesma dos ônibus, R$ 3,80). Mas essa cobrança não será em dinheiro; só em créditos do RioCard. Durante o percurso, quem não validar o cartão será multado. Ou seja, coexistem a tentação e o risco de viajar de graça.

Enquanto isso, o bundalelê de mudanças –linhas extintas, trajetos alterados, criação de "troncais" (seja lá o que for isso)– conseguiu um objetivo inédito: ninguém mais sabe pegar um ônibus no Rio.

MORREU NA CONTRAMÃO

Urge um apelido que substitua a anódina sigla VLT (não vale o sinônimo "modal", que é um horror de tecnicismo). O carioca um dia foi bom nisso, mas parece ter perdido a mão na brincadeira. Os bondes já foram chamados de "caraduras", "taiobas", "mamãe-me-leva", "jacaré", "chifrudo".

Havia até o "mata-paulista". Explica-se: durante certo tempo, nos anos 1950, trafegou na contramão dos carros no meio da pista do Túnel Novo, que liga Botafogo a Copacabana. Um perigo para quem ia à praia.

VIDA DE CUIQUEIRO

E segue o bonde. Um dos temas mais explorados dos antigos carnavais, ele aparece em três sambas de Wilson Baptista: "...E o 56 Não Veio", "Lá Vem o Ipanema" e o clássico "Bonde São Januário". Na obra de Baptista, o sambista-cronista, há outro personagem predileto que acaba de inspirar o musical "A Cuíca do Laurindo", idealizado por Rodrigo Alzuguir, em cartaz no teatro do CCBB (Centro Cultural Banco do Brasil).

O primeiro a falar de Laurindo foi Noel Rosa, no samba "Triste Cuíca", gravado por Aracy de Almeida em 1935. O curioso é que o cuiqueiro morre, mas agradou tanto que acabou revivido em diferentes situações –mestre de harmonia, pracinha na Itália, militante comunista– numa série de composições. Além de Wilson Baptista, que adotou o herói, Herivelto Martins, Heitor dos Prazeres e Haroldo Lobo, entre outros, narraram sua trajetória.

TÚNEL DO TEMPO

Volta o bonde –como um dos componentes analisados no livro "Promenades do Rio" [Topbooks, R$ 39, 272 págs.], da historiadora Isabella Perrotta. Com mais de cem ilustrações, a obra estuda nossos primeiros guias para viajantes, publicados no período de 1873 a 1939.

As "promenades" (passeios) percorriam uma cidade sem Cristo Redentor e bondinho do Pão de Açúcar, a qual se valia mais de praças do que de praias, e de bondes e trens no lugar de carros e ônibus.

Naquela época, o carioca não perdia, como hoje, fabulosas 165 horas por ano engarrafado no trânsito. A pesquisa, da empresa de tecnologia de transporte Tom-Tom, não levou em conta o tempo perdido nos protestos dos taxistas (que param a cidade quando bem entendem) contra o Uber.

ALVARO COSTA E SILVA, o "Marechal", 53, é autor de "Dicionário Amoroso do Rio de Janeiro" (Casarão do Verbo).


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