Folha de S. Paulo


Chegada de refugiados à Alemanha ouriça a nova direita intelectual

Não são apenas eleitores revoltados que estão dando o cartão vermelho à chanceler Angela Merkel e à sua política para refugiados. As críticas também vêm de alguns proeminentes da intelectualidade alemã, que não têm escrúpulos de chamar de "invasão" a massa de estrangeiros que entrou recentemente no país.

O primeiro a se manifestar foi o filósofo e biógrafo Rüdiger Safranski ("Nietzsche: Biografia de uma Tragédia"), que, já em setembro passado, no auge da crise, declarara: "A política decidiu inundar a Alemanha. Se a chanceler diz que o país se transformará, quero ser consultado a respeito".

Poucas semanas depois, o escritor Botho Strauss publicou na revista "Der Spiegel" um ensaio chamado "O Último Alemão". Ali, viu o germanismo ameaçado e disparou: "Prefiro viver num povo em extinção do que num povo que é, por especulações econômico-demográficas, misturado com outros estranhos, rejuvenescido e vital".

Agora é a vez do filósofo Peter Sloterdijk ("Crítica da Razão Cínica"), que desde janeiro vem fazendo, numa série de artigos e entrevistas, um louvor às fronteiras. Para ele, a Alemanha vem renunciando à sua soberania e se deixando "esmagar". "Não existe a obrigação moral de autodestruição", afirmou.

O semanário "Die Zeit" alerta para a "nova direita" intelectual, que estaria pintando um "quadro do apocalipse" e criando um clima de pânico no país. Para a "Spiegel", algumas expressões usadas lembram as dos grupos xenófobos, aqui cada vez mais populares.

Sakis Mitrolidis - 26.mar.2016/AFP
Imigrante lava roupas em acampamento na fronteira da Grécia com a Macedônia
Imigrante lava roupas em acampamento na fronteira da Grécia com a Macedônia

SEM TABUS

O governo alemão vem sendo pressionado a aperfeiçoar os cursos de integração para refugiados. Educadores reivindicam, por exemplo, a inclusão do tema sexualidade nos chamados "cursos de orientação", nos quais se discutem valores como liberdade, igualdade e tolerância.

Eles alegam que o tema é tabu dentro das famílias muçulmanas, o que dificulta o contato entre estrangeiros e alemãs. Várias iniciativas já estão sendo realizadas, desde que, na noite do último Réveillon, centenas de alemãs foram sexualmente molestadas ou mesmo atacadas em várias cidades, sobretudo em Colônia.

Em meados de março, uma conferência internacional contra o antissemitismo, em Berlim, também exigiu que os cursos dedicassem mais tempo aos temas Holocausto e Israel. Representantes da comunidade judaica veem com preocupação os registros de manifestações antissemitas entre os refugiados, cuja maioria é muçulmana.

QUASE ESQUECIDO

Um dos primeiros livros de Siegfried Lenz, morto em 2014, acaba de ser lançado na Alemanha e já lidera a lista dos mais vendidos. "Der Überläufer" (o desertor) foi escrito em 1951, mas, na época, os editores recusaram-se a publicá-lo por questões políticas: ele seria pacifista demais para aqueles tempos, primórdios da Guerra Fria.

A história se passa no último verão da Segunda Guerra, quando o jovem soldado alemão Walter Proska se bandeia para o Exército russo, tentando escapar de guerrilheiros no fronte oriental. Também aqui destacam-se alguns temas predominantes na obra de Lenz, como consciência do dever e culpa.

Autor de "Deutschstunde" (aula de alemão) e "Minuto de Silêncio" (este publicado no Brasil, pela editora Rocco), Lenz foi, ao lado de Günter Grass e Heinrich Böll, um dos maiores escritores alemães do pós-Guerra.

MINHA LUTA

Depois de passar 70 anos proibido, "Mein Kampf" (minha luta) voltou a se tornar um best-seller na Alemanha. Agora, porém, não se trata do mero texto difamatório escrito por Adolf Hitler –e que vendeu milhões de exemplares durante o nazismo–, mas de sua edição comentada, recém-lançada pelo Instituto de História Contemporânea, de Munique.

Com 2.000 páginas e 3.700 notas de rodapé que rebatem as ideias do ditador, a edição crítica vendeu desde janeiro passado –quando o texto foi definitivamente liberado na Alemanha– 24 mil exemplares e já se encontra na terceira edição.

As vendas acontecem sobretudo por encomenda, já que a maior parte das livrarias alemãs, por respeito às vítimas do Holocausto, se recusa a destacar "Mein Kampf" em suas estantes. Questionados em diversos levantamentos sobre os motivos da compra, os leitores afirmam se interessar por história e política.

Não há indícios, segundo livreiros, de que neonazistas tenham se precipitado sobre a obra.

SILVIA BITTENCOURT, 50, é jornalista, autora de "Folha Explica o Euro" (Publifolha).


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