Folha de S. Paulo


Onde foi que erramos? Quando e por que a economia saiu da rota

RESUMO O artigo defende a ideia de que tanto desenvolvimentistas quanto liberais subestimam a supervalorização da taxa de câmbio no longo prazo, uma das causas do baixo crescimento. O acordo de que o câmbio esteja hoje mais perto do equilíbrio expõe a aceitação por todos de taxas problemáticas no passado recente.

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Na segunda metade da última década vivíamos a euforia do governo Lula e do boom de commodities, que maravilhava o povo e encantava as elites internacionais. Ignorando que o Brasil não parava de se desindustrializar, a revista "The Economist" transformou, em uma capa de 2009, o Cristo Redentor em um foguete com o título "Brazil Takes Off", "O Brasil decola", enquanto nós, brasileiros, acreditávamos no conto de fadas dos Brics.

Hoje, após 35 anos de semiestagnação, nosso problema é mais grave; é regressão. O Brasil, que entre 1930 e 1980 crescera de maneira extraordinária (4% ao ano, per capita), com base em um projeto nacional de industrialização, primeiro perdeu o rumo e passou a crescer apenas 1% ao ano; e, desde 2015, está em profunda recessão, que deverá causar uma queda de 11% do PIB per capita até 2017.

Onde foi que erramos? Quando e por que nos perdemos? Ainda há algo a ser feito? Vejo muita gente indignada, mas é preciso fugir da indignação moralista. A corrupção está em toda parte. O grande problema que o Brasil enfrenta hoje é econômico. Nosso povo é ainda muito pobre; o desenvolvimento econômico continua a ser uma prioridade; mas é impressionante a incapacidade de nossas elites econômicas, políticas, intelectuais e associativas de fazerem o diagnóstico da economia brasileira e apresentarem um caminho para que o país volte a crescer.

Em 1985, quando os brasileiros conquistaram a democracia, o Brasil era uma sociedade unida, hoje é uma sociedade dividida, onde não existem mais adversários mas inimigos. No início dos anos 1980 houve um acordo nacional em favor da democracia e da diminuição das desigualdades, que foi cumprido. Mas não houve o desenvolvimento esperado, e, hoje, o país está dividido entre direita e esquerda, entre liberais e desenvolvimentistas –a maioria dos representantes dos dois grupos sendo, no meu entendimento, populistas cambiais.

O populismo econômico é fiscal quando o Estado gasta mais do que arrecada de forma irresponsável; e é cambial quando é o país como um todo que gasta mais do que arrecada de forma irresponsável. Em um caso temos deficits públicos elevados; no outro, deficits em conta-corrente elevados.

Em relação ao populismo cambial, liberais e desenvolvimentistas estão juntos: aceitam alegremente elevados deficits em conta corrente. Basta para eles que esses deficits sejam financiados por investimentos das empresas multinacionais que representariam "poupança externa".

Mas na maioria das vezes os respectivos recursos externos acabam financiando o consumo, porque deficits em conta-corrente no longo prazo estão necessariamente associados a uma taxa de câmbio supervalorizada, a qual aumenta artificialmente os salários e demais rendimentos, eleva o consumo e causa a substituição da poupança interna pela externa, mesmo que essa poupança venha sob a forma de investimentos diretos.

No plano fiscal, direita e esquerda dividem-se, porque a direita quer resolver todos os problemas econômicos com a diminuição da despesa social do Estado, ao mesmo tempo que ignora a despesa com juros, enquanto a esquerda se pretende keynesiana e quer resolver também todos os problemas com expansão fiscal, ignorando que existe uma restrição fiscal.

Não bastassem os erros de diagnóstico e de cura, há a crise política.

Diante da quase estagnação e da grave recessão, ao invés de as elites políticas se unirem para resolvê-la, deixaram-se levar pelo medo causado pela Operação Lava Jato, e o país mergulhou em uma crise política grave. A crise foi causada pela eleição presidencial, na qual as elites econômicas foram derrotadas, mas não se conformaram com isso. Configurou-se, assim, uma clássica crise de legitimidade, relativamente comum nos regimes presidencialistas, mas que no Brasil, em 2015, refletiu-se na tentativa de anular o resultado das urnas.

DOIS FRACASSOS

A história recente do Brasil é uma história de dois grandes fracassos econômicos: o fracasso liberal de 1990-2002 e o fracasso desenvolvimentista de 2003-2014. O fracasso liberal decorreu, essencialmente, de um política de liberalização e privatização indiscriminada, que implicou o desmantelamento do mecanismo de neutralização da doença holandesa (uma super-valorização de longo prazo causada por commodities que podem ser exportadas a taxas de câmbio mais valorizadas do que as necessárias para as boas empresas) que havia garantido o investimento privado e o grande crescimento até 1980, e, portanto, em uma desvantagem competitiva de grande envergadura para as empresas industriais.

Foi aí que começamos a nos perder. A doença holandesa não neutralizada somada a "três políticas habituais" tornaram a taxa de câmbio supervalorizada no longo prazo, aumentaram artificialmente os rendimentos e o consumo de todos e inviabilizaram o investimento privado na indústria, constituindo-se, assim, em populismo cambial.

As três políticas habituais (porque adotadas em praticamente todos os países em desenvolvimento exceto os do Leste da Ásia) são: a política de crescimento com "poupança externa", ou seja, deficits em conta-corrente; a política dos bancos centrais de controlar a inflação com a taxa de câmbio; e um nível de taxa de juros muito alto em torno do qual o Banco Central realiza sua política monetária. Os altos juros, associados à supervalorização, além de contribuírem para a inviabilização do investimento privado industrial, impediram que o Estado poupasse e se responsabilizasse por parte dos investimentos necessários na
infraestrutura.

É verdade que, no período liberal, a alta inflação inercial foi estancada, mas o foi graças a um plano heterodoxo de estabilização e à crítica bem sucedida da irresponsabilidade fiscal -uma crítica que os brasileiros, depois de 14 anos de alta inflação, afinal aceitaram.

Já a principal causa do fracasso do período desenvolvimentista social não foram os deficits públicos elevados (o governo errou nesse ponto apenas em 2013 e 2014), mas o câmbio apreciado no longo prazo -uma política igualmente populista. Durante o governo Lula a apreciação do real foi brutal, e inviabilizou o governo Dilma. A crise se agravou a partir de 2013, quando este governo embarcou em uma política de desonerações fiscais absurda que tirou do Estado brasileiro a capacidade de enfrentar a recessão que se seguiu com uma firme política contracíclica.

É verdade que nos primeiros 12 anos do governo do PT houve uma bem-sucedida política de redução das desigualdades, principalmente a política de salário mínimo; é verdade também que houve um grande esforço do governo do PT para estabelecer um acordo nacional entre trabalhadores e empresários industriais, mas as taxas de lucro muito baixas, senão negativas, causadas pela taxa de câmbio apreciada no longo prazo, inviabilizaram o investimento industrial e qualquer acordo nacional. É impossível promover a distribuição sem investimento e crescimento, e é impossível ter investimento sem lucro satisfatório.

NOVAS IDEIAS

Em certos momentos, grandes problemas só se resolvem com novas ideias. Os brasileiros demoraram 14 anos para conseguir derrotar a alta inflação inercial, porque precisaram, antes, elaborar uma teoria que a explicasse e as políticas que permitiram superá-la.

Essa teoria chamou-se "teoria da inflação inercial" e se refletiu na URV do Plano Real. Desde 1994, o Brasil precisa de uma teoria que explique a sua quase estagnação. Essa teoria vem sendo desenvolvida nos últimos 15 anos e chama-se "novo desenvolvimentismo".

Sua tese central é a de que o mercado é incapaz de assegurar o equilíbrio dos cinco preços macroeconômicos: (1) a taxa de lucro das empresas comercializáveis não exportadoras de commodities, que tende a ser insuficiente para estimular os investimentos; (2) a taxa de juros, que é geralmente alta demais, agravando o problema; (3) a taxa de câmbio, que tende a ser supervalortizada ciclicamente e no longo prazo, e é a principal causa dos lucros insatisfatórios; (4) a taxa de salários, que torna-se artificialmente alta quando o câmbio está apreciado; e (5) a taxa de inflação, que facilmente sai do controle.

Torna-se, portanto, uma política macroeconômica ativa, da qual a política cambial é parte essencial.

Os economistas sabem há muito que o crescimento depende do investimento, e este, da taxa de lucro esperada e da taxa de juros. Keynes concordou, mas acrescentou que a taxa de lucro esperada dependia da demanda efetiva, a qual não estava assegurada, porque havia uma tendência à insuficiência de demanda.

O novo desenvolvimentismo concorda, mas acrescenta que o investimento depende também da taxa de câmbio, porque é ela que garante às boas empresas do país o acesso à demanda, e essa taxa tende a estar supervalorizada no longo prazo.

A teoria convencional (tanto a ortodoxa quanto a keynesiana) não inclui a taxa de câmbio na sua função investimento porque supõe que os desalinhamentos da taxa de câmbio sejam um problema de curto prazo, mas o novo desenvolvimentismo mostra teórica e empiricamente que, no caso dos países em desenvolvimento, isto não é verdade.

Nos países em desenvolvimento existe uma tendência à supervalorização cíclica e crônica da taxa de câmbio, que, se não for devidamente neutralizada, torna a taxa de câmbio supervalorizada no longo prazo e causa a desindustrialização. Essa tendência tem como causas a doença holandesa e as três políticas habituais equivocadas que citei anteriormente.

Se a doença holandesa for devidamente neutralizada, e se o governo rejeitar firmemente as três políticas habituais, a taxa de câmbio será competitiva, e as empresas industriais voltarão a ser viáveis, ao mesmo tempo em que haverá um pequeno superavit em conta-corrente, que é o único resultado compatível com uma taxa de câmbio competitiva quando há doença holandesa neutralizada.

Os únicos países que realmente realizaram o "catching up" no século 20 e se tornaram desenvolvidos –Coreia do Sul, Taiwan, Cingapura– não tiveram doença holandesa a ser neutralizada e apresentaram superavits em conta-corrente na maioria dos anos.

REFORMAS

Existe, portanto, uma saída para a crise. Que é mais evidente para a crise de longo prazo do que para a crise de curto prazo. Para sair da recessão o governo está promovendo um ajuste fiscal. Em janeiro do ano passado, quando ele foi decidido, os economistas no boletim "Focus" do Banco Central previam que a economia cresceria 0,5% em 2015 (mas o PIB caiu cerca de 4%), e o ministro Joaquim Levy previu um superavit primário de 1,1% do PIB (mas afinal o que tivemos foi um deficit primário
de 2,1% do PIB).

A recessão, portanto, está sendo muito mais grave do que foi previsto. Eu apoiei desde o início o ajuste, porque era uma condição para a superação da perda de confiança do governo. Agora o problema não é mais esse, e é preciso que repensemos o ajuste e, mais amplamente, a política fiscal.

Está na hora de distinguirmos a despesa corrente dos investimentos públicos e darmos mais ênfase à poupança pública. O ajuste deve continuar e se aprofundar na despesa corrente, estabelecendo metas precisas de sua redução, enquanto o governo inicia o mais rapidamente possível um plano de investimento próprio na infraestrutura, além do realizado por meio de concessões.

O superavit primário continua a ser uma métrica adotada, mas dele se retira o investimento público, que passa a obedecer um conjunto de novas normas orçamentárias que definam qual deva ser seu valor em relação ao PIB. E se passa a também medir a poupança pública, com o objetivo de voltar a torná-la positiva.

Ainda no plano fiscal, o governo está comprometido com a reforma da Previdência –especificamente com a definição de uma idade mínima para a aposentadoria. Isso é importante, mas deve ser complementado com a eliminação de isenções de contribuição previdenciária de organizações de todos os tipos: igrejas, entidades sem fins lucrativos etc.; se elas merecem subsídios, estes devem estar no Orçamento da República.

Quanto ao câmbio, neste último ano o real desvalorizou-se, em termos reais, 45%, e todos estão agora de acordo que uma taxa de câmbio entre R$ 3,80 e R$ 4,00 por dólar é a taxa de equilíbrio competitivo. Isto mostra a irresponsabilidade daqueles à direita e à esquerda que se declaravam satisfeitos enquanto o real permaneceu por vários anos em torno de R$ 2,60. Mostra quão grande era a desvantagem competitiva da indústria.

No curto prazo, o governo já está agindo para criar linhas de crédito para as empresas industriais que voltaram a se tornar competitivas, ou potencialmente competitivas, graças à desvalorização cambial.

Mas elas só investirão se tiverem alguma garantia de que o real não voltará a se apreciar. É preciso, portanto, fazer uma reforma cambial que dê ao governo instrumentos para neutralizar a tendência à supervalorização cíclica e crônica da taxa de câmbio.

Dessa política deverão fazer parte (a) a criação de um Conselho Cambial Nacional que defina em torno de que faixa deve a taxa de câmbio real flutuar; (b) um mecanismo de neutralização da doença holandesa –essencialmente um sistema de retenção cambial variável com o preço internacional de cada commodity, cuja alíquota seria zero, mas que subiria e impediria a desvalorização quando o preço das commodities voltasse a crescer; e (c) a rejeição das três políticas habituais já citadas. Outra reforma urgente, que ainda não está na agenda do país, é a desindexação. Sem a desindexação completa o custo de combater a inflação é muito grande.

É preciso que o Estado brasileiro seja proibido por lei de participar de contratos ou proporcionar instrumentos financeiros com correção monetária. A indexação formal foi a causa principal da alta inflação inercial de 1980-94.

O Brasil precisa, também, de uma reforma tributária. Não apenas da reforma tributária há muito em pauta, que acaba com a guerra fiscal entre os Estados, que já devia ter sido aprovada, mas de uma reforma que torne mais progressivos os impostos no Brasil. Não é com política fiscal que se diminui a desigualdade, mas com política tributária e despesa social. E a diminuição das desigualdades é uma prioridade nacional.

CONSUMO

Eu sei que não será fácil realizar essas reformas. Os brasileiros são vítimas, desde os anos 1980, de dois problemas culturais que convergem perversamente para políticas econômicas equivocadas e para o populismo econômico. Refiro-me à alta preferência pelo consumo imediato e à perda da ideia de nação.

A alta preferência pelo consumo imediato está em toda parte. Está na falta de disposição dos brasileiros –não apenas dos pobres mas também dos ricos– de poupar. E ela se expressa objetivamente em dois males econômicos: na falta de poupança pública e no excesso de "poupança externa", ou seja, de deficits em conta-corrente que mantêm a taxa de câmbio apreciada no longo prazo.

Quanto à falta de poupança pública, para os liberais o Estado não precisa poupar, porque não precisa nem deve investir; quem deve poupar é o setor privado. Para os desenvolvimentistas sociais, o Estado deve sempre dar preferência às despesas sociais.

Ora, o investimento público é fundamental para o desenvolvimento econômico e, por mais nobre que seja o gasto social, deve haver espaço fiscal para ele. Um investimento público em torno de 20% do total dos investimentos não concorre, mas estimula o investimento privado.

Mas além da convergência populista de liberais e desenvolvimentistas em torno do câmbio apreciado, a qual expressa sua preferência objetiva pelo consumo imediato, temos a convergência igualmente perversa entre essa preferência e a perda da ideia de nação. Um projeto de desenvolvimento econômico é sempre um projeto de sofisticação produtiva –de transferência de mão de obra para setores com maior valor adicionado per capita que pagam salários maiores–, que só é viável quando a taxa de câmbio flutua em torno do equilíbrio industrial ou competitivo.

Ora, uma taxa de câmbio competitiva nos países em desenvolvimento não interessa aos países ricos, para os quais nossos deficits em conta-corrente apresentam uma dupla vantagem: reduzem nossa capacidade de competir e legitimam os investimentos de suas empresas multinacionais, os quais, como já vimos, acabam financiando muito mais o consumo do que o próprio investimento.

Essas ideias que estou apresentando precisam ser debatidas. Não estão nos livros-texto e não fazem parte das crenças e das preocupações da direita e da esquerda –da maioria dos liberais e dos desenvolvimentistas. Elas estão baseadas no novo desenvolvimentismo que defende, além de responsabilidade fiscal, responsabilidade cambial; que afirma que o Brasil deve ter uma política cambial coerente, cujo objetivo deve ser um pequeno superavit em conta-corrente, porque apenas ele é compatível com uma taxa de câmbio competitiva; que rejeita tanto um "capitalismo sem lucro", como defende na prática boa parte da esquerda, quanto uma "desigualdade necessária", como quer a direita.

Para se tornar realidade, uma política econômica nessa linha depende de um grande acordo nacional, que associe desenvolvimento econômico com redução das desigualdades. E depende de nossa determinação como povo de nos integrarmos, sim, na economia mundial, mas de forma competitiva, não de forma subordinada.


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