Folha de S. Paulo


Desenvolvimentismo não é sinônimo de intervencionismo

RESUMO O autor contrapõe-se a analistas econômicos que estariam equivocados ao associar o intervencionismo econômico do governo Dilma ao desenvolvimentismo. Este seria uma clássica estratégia de sociedades atrasadas do mundo capitalista para deixar o atraso; aquele, uma tentativa de reagir à crise internacional.

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A substituição de Joaquim Levy por Nelson Barbosa no Ministério da Fazenda gera expectativas de retorno à política do governo anterior da presidente Dilma, por vezes chamada de "nova matriz macroeconômica" com o propósito de contrastar com a política de matriz mais ortodoxa dos governos de Fernando Henrique Cardoso e do primeiro mandato de Lula. Até aí nada demais. O problema aparece quando se associa tal "matriz" a "nacional-desenvolvimentismo", como é corrente em alguns círculos, principalmente críticos a ela.

Para começar, tal argumentação assenta-se em certa confusão entre intervencionismo e desenvolvimentismo, como se ambos fossem sinônimos, levando-se a um dos mais primários erros metodológicos: o da generalização. O desenvolvimentismo é um tipo de intervencionismo, tal como a social-democracia, o socialismo, o trabalhismo, a doutrina social cristã, o fascismo e o keynesianismo, dentre outros.

A rigor, todas as ideologias e teorias econômicas, com exceção do liberalismo clássico, delegam certo papel ao Estado na condução da economia e da política econômica. Mas elas não podem ser apressadamente igualadas, pois diferem entre si não só na extensão da intervenção (desde a moderada cristã até a radical comunista), mas, principalmente, quanto ao objetivo e as razões da ação estatal.

Jan Limpens

Estes últimos são fundamentais para demarcar diferenças. Constituiria erro grotesco alguém dizer que não há diferença entre social-democracia e fascismo, ou entre keynesianismo e comunismo. Os intervencionismos também diferem entre si tanto na teoria (nas construções dos ideólogos e intelectuais) como na prática efetiva como políticas de Estado.

Se é aceito que o governo Dilma e também o de Lula são governos que podem ser associados a certo intervencionismo –no que concordamos– resta ver se este poderia ser associado a "nacional-desenvolvimentismo".

O desenvolvimentismo pode ser considerado como um intervencionismo bem peculiar, já que sua razão de ser –expressa tanto por seus ideólogos (como R. Prebisch, C. Furtado, I. Rangel) como pelos governos que geralmente lhes são associados– é a reversão do subdesenvolvimento.

Ainda que tenha posteriormente encontrado adeptos em outros continentes, principalmente na Ásia, sua gênese remonta à América Latina do século 19, embora tenha tido sua maior expressão no século 20, em especial após a Grande Depressão. No Brasil, suas primeiras manifestações ocorreram quando as elites civis e militares, no contexto da crise do Império e da escravidão, passaram a perceber certo "atraso" do país, sob influência do evolucionismo positivista. A genealogia do conceito de desenvolvimento, anos mais tarde corporificado como categoria teórica no pensamento cepalino [referente à Cepal, Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe, ligada à ONU] tem como embrião o progresso comtiano.

Este subentende que o "atraso" do país não se devia ao clima tropical, ao catolicismo ou a razões biológicas e raciais, como aparecem nos primeiros "intérpretes do Brasil", mas tratava-se de um fenômeno histórico –e que, portanto, poderia ser revertido.

O desenvolvimentismo postula que tal reversão não ocorrerá espontaneamente ou por mecanismos usuais de mercado (os quais, ao contrário, podem "reproduzir o subdesenvolvimento"); ou, se o fizer, demorará muito: o desenvolvimento precisa ser "acelerado" (como os "50 anos em 5" de JK).

Trata-se, portanto, de projeto necessariamente consciente, que propõe ações visando a atingir determinados fins desejáveis, aos moldes do que Max Weber tipificou como "ação social racional". Tais fins podem variar de governo para governo, embora quase todos o atrelem a "valores superiores", como justiça social e soberania nacional. O desenvolvimentismo –tal como o liberalismo, o positivismo e o socialismo– é expressão da modernidade e traz consigo a utopia de construção de uma sociedade melhor para o futuro.

Sua peculiaridade é não atacar a propriedade privada como pré-condição, a exemplo do que faz o socialismo, mas defender o aumento da produção e da produtividade como condição necessária, embora não suficiente, para a reversão das desigualdades. Trata-se de fenômeno típico dos países mais pobres do mundo capitalista, como os da América Latina.

SUBTIPOS

A expressão "nacional-desenvolvimentismo" diz respeito a uma tipologia de "subtipos" ou "estilos" de desenvolvimento consagrada pela sociologia uspiana, especialmente em Florestan Fernandes, Octavio Ianni e Fernando Henrique Cardoso. Sua categoria antitética era "desenvolvimentismo dependente associado", e a diferença entre ambos residia principalmente no grau de participação do capital estrangeiro e da poupança externa, enfatizado mais pelo último do que pelo primeiro, embora aquele não o excluísse.

Retornando ao governo Dilma e às políticas da "nova matriz macroeconômica" geralmente associadas ao "nacional-desenvolvimentismo", na impossibilidade de rebatê-las ponto a ponto, restrinjo-me aos aspectos mais gritantes:

1. Não há dúvida de que tal "matriz" seja intervencionista, mas tudo leva a crer que não por uma estratégia desenvolvimentista (basta ver a desindustrialização do período), e sim como reação a uma crise. Suas medidas macroeconômicas são mais próximas do keynesianismo, pois trata-se de políticas sobretudo reativas, anticíclicas, compatíveis até com o velho modelo IS-LM dos livros-textos elementares, a que Joan Robinson chamou de "keynesianismo bastardo" por seu conservadorismo: diante de uma conjuntura recessiva, optou-se por políticas fiscais e monetárias expansionistas –como, aliás, fizeram o Banco Central Europeu e o Fed para impedir a quebra em dominó de seus bancos, e sem que ninguém os rotulasse de desenvolvimentistas ou de populistas.

Não se trata de "tolerância" com a inflação, mas de opção de política econômica aceita e praticada pelo mainstream diante de conjunturas específicas, como quando há desaceleração brusca da demanda agregada. Pode-se concordar ou discordar de tal opção de política, bem como do fato de a mesma ser complacente ou não com a inflação, mas não se pode confundi-la com qualquer subtipo de desenvolvimentismo;

2. Arrolar a administração do câmbio como exemplo do "nacional-desenvolvimentismo" dos últimos anos não tem nenhuma sustentação, a não ser a de apressadamente usar esta correlação no afã de referendar uma aversão aos governos petistas.

No Brasil sempre preponderou a flutuação suja, ou seja, flexibilidade cambial com fortes intervenções do Banco Central, como ocorreu no primeiro Lula e, mais ainda, na gestão de Cardoso. E não há o que criticar na política do PT ou em Gustavo Franco quanto a esse aspecto: não há nenhum sacrilégio em usar o câmbio como instrumento de política econômica, e assim procedem as autoridades econômicas de quase todos os governos, tanto aqui como no exterior, no passado e no presente, desenvolvimentistas ou não.

Uma política cambial desenvolvimentista é aquela inserida numa estratégia de crescimento de longo prazo para o país, como ocorreu com a da Instrução 70 da Sumoc de Vargas (leilões de câmbio com faixas de "essencialidade" para importações) ou na "lei de similares" de JK. Aliás, foi no período de Cardoso que se adotou o regime de bandas –um intervencionismo explícito–, com o Banco Central atuando drasticamente para segurar seu limite superior, em prejuízo do setor exportador e do balanço de pagamentos.

Este, com certa ironia, seria exemplo de intervencionismo não só "não desenvolvimentista", mas "antidesenvolvimentista". Nem neste nem naquele, porém, há desenvolvimentismo, pois se trata de política cambial reativa, para aliviar problemas de balanço de pagamentos ou motivos conjunturais, como âncora cambial, nada tendo a ver com qualquer estratégia de longo prazo a favor da produção e da produtividade;

3. Outro exemplo frequentemente arrolado como sintoma de "nacional-desenvolvimentismo" é a utilização, pelo governo Dilma, de políticas verticais, discricionárias, como a desoneração tributária de setores e bens selecionados, em detrimento das políticas horizontais, com tratamento equânime à maioria dos setores.

É bem verdade que o desenvolvimentismo historicamente sempre defendeu políticas industriais ativas, tanto horizontais como para setores específicos, embora sem primazia ou preferência pelas últimas. Aliás, estas raramente foram usadas de forma generalizada, o que seria um contrassenso, pois, como o nome sugere, voltavam-se a setores específicos.

Não se trata aqui de defendê-las, uma vez que carecem de transparência e de critérios para acompanhamento e cobrança de resultados, como historicamente ocorre no Brasil (ao contrário de algumas experiências asiáticas). No caso dos últimos anos, contudo, não há como vincular tais políticas verticais a qualquer estratégia desenvolvimentista. Esta visava encubar indústrias nascentes, áreas estratégicas ou inovações tecnológicas, sempre inserida em projeto ou estratégia de longo prazo de maior envergadura, para a construção de um "futuro desejável".

Nessa parceria caberia ao Estado investir em infraestrutura, incrementar a demanda pelo setor privado via efeito multiplicador de suas compras (à la Keynes), propiciar financiamento e assegurar um quadro jurídico estável.

O ocorrido a partir de 2009 foi mais um intervencionismo em reação a uma crise externa, que tendia a desacelerar o crescimento, do que o resultado de uma estratégia desenvolvimentista. E a política formulada não foi por investimentos públicos (como Keynes aconselharia) nem pela demanda, mas pela oferta: uma espécie de "supply side" que acreditava na diminuição de custos como variável suficiente para induzir o investimento privado.

Tarifas de energia foram rebaixadas, setores "eleitos" tiveram crédito abundante, impostos diminuídos, isenções e subsídios. Seria uma novidade na história econômica brasileira se desse certo, pois nunca fora assim na "era desenvolvimentista" ou depois dela (após 1980). Sem contar que os investimentos para gerar produção e emprego não apareceram –talvez tenham virado aplicações financeiras.

Rebaixar tarifas de energia elétrica como forma de diminuir custos e aumentar a eficiência marginal do capital não só é medida ineficaz, ou até ingênua, como aponta para o prejuízo de um setor fundamental de infraestrutura –ao qual uma proposta desenvolvimentista deveria mais incentivar do que punir com a diminuição da receita.

Da mesma forma, casos como o Inovarauto e outras isenções tributárias ocorridas nos últimos anos não podem ser associados a nenhuma estratégia desenvolvimentista, pois se trata de setores já aqui instalados, que nada têm a ver com indústria nascente ou com a ideia de inserir o país em uma nova onda tecnológica aos moldes schumpeterianos.

Proteção à indústria automobilística ou a qualquer outra já pujante no país, apenas porque se encontra em fase de contração de demanda, nada tem de estratégia desenvolvimentista. É preciso buscar outra razão para explicá-la (desde garantir empregos até pressão de lobbies), não se podendo colocá-la no rol histórico da criação da Usina Siderúrgica Nacional, da Vale do Rio Doce, da Petrobras ou mesmo das políticas específicas da "lei de similares", por exemplo.

Caso se quisesse rotular, aqui teríamos, ironicamente, um "nacional-desenvolvimentismo às avessas": apadrinhar uma indústria poluente, multinacional, de onda tecnológica pretérita: nada de desenvolvimentismo e, muito menos, de nacional...

4. Para finalizar, há certa proposição sempre presente nas análises que se referem à "nova matriz" como exemplo do suposto nacional-desenvolvimentismo: a irresponsabilidade na condução da política econômica. Procura-se com isso ilustrar intervenções atabalhoadas, irracionais e sem preocupação com a estabilidade –como se houvesse apenas uma forma "séria" e "responsável" de conduzir a política macroeconômica, qual seja, a ortodoxa.

Vale a velha máxima: a minha religião é obviamente revelação divina, já a dos outros é crendice e mitologia (e tudo em nome do liberalismo!). Ou, como disse Montesquieu, se os triângulos tivessem um deus, este certamente teria três lados. Ocorre que a busca da estabilidade macroeconômica não é valor ignorado pelo desenvolvimentismo, nem na teoria nem na prática histórica. Os nomes antes mencionados –Presbisch, Furtado e Rangel– sempre se preocuparam com temas como inflação, equilíbrio orçamentário e do balanço de pagamentos, inclusive com reconhecidas contribuições na área. Certamente com diagnósticos e proposições de políticas diferentes da ortodoxia –mas daí a dizer que ignorem ou negligenciem o problema há longa distância.

Ao trabalhar com história da política econômica brasileira já há quase quatro décadas, pude verificar que, na prática, há tanto governos desenvolvimentistas que assumiram propostas de estabilização (como os de Vargas) como os mais frouxos no tema (como JK); e o mesmo ocorre com governos tidos como não desenvolvimentistas, alguns "inflacionistas" e "gastadores", outros não. Ou seja, não se verifica correlação nenhuma entre desenvolvimentismo e "irresponsabilidade" fiscal ou monetária, nem mesmo ao se testar a hipótese por sua antítese.

Como exemplo: Vargas assumiu seu primeiro governo em plena crise dos anos 30, com desequilíbrios fiscais e no balanço de pagamentos: após 15 anos de "nacional-desenvolvimentismo", ao ser deposto, deixou o país com o balanço e a inflação em níveis satisfatórios para o padrão da época, mesmo que ao fim de uma grande guerra. Por ironia, coube ao governo "liberal" de Dutra, seu sucessor, a "queima de divisas" e a escalada da inflação, ferrenhamente denunciadas por Vargas quando retornou ao poder em 1951.

CRISE

Para concluir, cabe lembrar que explicar a crise atual pelos equívocos inerentes ao "nacional-desenvolvimentismo" e seu intolerável esquerdismo –tido como "estatizante", "tolerante com a inflação" e "de economia fechada"– significa ignorar que, no comando da economia, ao longo do período a ele associado (de 1930 a 1980), tivemos homens que estão longe de ser esquerdistas ou antimercado, ou mesmo que tenham se negado a combater a inflação: Horácio Lafer, Osvaldo Aranha, Lucas Lopes, Moreira Salles, San Tiago Dantas, Octavio Bulhões, Roberto Campos, Delfim Neto, Reis Velloso e Mário Henrique Simonsen são alguns exemplos. O desenvolvimentismo é fenômeno rico e complexo demais para comportar simplificações apressadas.

Estas também apagam da memória que, como fenômeno histórico, apesar de seus defeitos ou falhas, como a concentração de renda, não deixou de apresentar resultados, mormente quando se trata de crescimento econômico. As referidas cinco décadas são aquelas em que o país mais cresceu após sua independência, superando um passado agroexportador de poucos produtos primários de baixa elasticidade-preço em direção a uma economia industrial e razoavelmente diversificada, infelizmente revertendo após 1980.

Que aberração é essa que, em cinco décadas levou o PIB do país da quase 30ª posição mundial para a 8ª, um dos raros períodos de convergência com as economias líderes de sua história?

Às receitas do passado, pouco espaço resta no presente. Mas, caso se queira contar a história do tal "nacional-desenvolvimentismo", esta terá que resgatar seus dois lados e suas múltiplas faces. A caricatura pode ter um apelo fácil por sua simplificação e, conquanto seja útil no embate ideológico do cotidiano, geralmente atrapalha não só o entendimento do passado como, mais ainda, o do presente.

PEDRO CEZAR DUTRA FONSECA, 61, é professor titular do departamento de economia e relações internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

JAN LIMPENS, 46, é ilustrador e quadrinista (limpens.com).


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