Folha de S. Paulo


O Tchékhov de cada um

Rio de Janeiro, 1984

Em 1984, eu vivia ainda no Rio, num momento de grande efervescência de grupos de teatro. O Grupo Tapa (do qual fui fundadora em 1979) estava em cartaz com "Pinóquio", um infantil, que fez grande sucesso, e ocupávamos o Teatro dos Quatro, no Shopping da Gávea, cujos proprietários, Sergio Britto, Paulo Mamede e Mimina Roveda, tinham um enorme cuidado no repertório; qualquer peça naquele espaço tinha um selo de qualidade impecável.

Eles não só montavam grandes clássicos como também trouxeram o primeiro Fassbinder para o Brasil, com Fernanda Montenegro e Juliana Carneiro da Cunha, inesquecíveis em "As Lágrimas Amargas de Petra von Kant", que vi não sei quantas vezes.

Acervo PessoaL/Denise Weinberg
Da esq. para dir.(alto), Rodrigo Santiago, Denise Weinberg, Ronaldo Motta, Licia Magno e Christiane Torloni; no meio, Norma Geraldy e José de Freitas; sentados, Nildo Parente e Armando Bógus
Da esq. para dir.(alto), Rodrigo Santiago, Denise Weinberg, Ronaldo Motta, Licia Magno e Christiane Torloni; no meio, Norma Geraldy e José de Freitas; sentados, Nildo Parente e Armando Bógus

Sergio Britto sempre esteve próximo do Grupo Tapa, acompanhou todos os meus trabalhos, mesmo depois da minha saída, e acabei tendo o prazer de tê-lo como companheiro de cena em 2006, na peça "Outono Inverno", de Lars Norén, na qual éramos pai e filha.

Em 84, eu estava "começando" e nunca tinha feito teatro fora do meu grupo. E eis que, de repente, em cima da hora, a atriz que ia fazer a Sonia em "Tio Vania", de Tchékhov, montagem seguinte do Teatro dos Quatro, teve um problema, e Sergio Britto me chamou pra integrar o elenco magistral, com Armando Bógus (meu inesquecível Tio Vania), Rodrigo Santiago (meu apaixonante Astrov), e Christiane Torloni (a bela Helena).

Eu mal podia acreditar no convite; sempre fui apaixonada por Tchékhov, e ainda ia trabalhar com atores respeitados, que já estavam no mercado havia bastante tempo, e eu estava chegando. Seria a primeira vez que eu ia receber um salário decente, a primeira vez que eu ia emitir uma nota fiscal pelo salário de atriz. Só lembrando que, nessa época, o Teatro dos Quatro tinha um belíssimo patrocínio da Shell, que fazia questão da qualidade do repertório e da competência artística cinco estrelas. Conseguíamos viver de teatro.

Fiquei bastante apavorada, mas, como sempre fui obstinada, mergulhei na Sonia de cabeça, uma das personagens mais lindas da dramaturgia universal.

Mas ao mesmo tempo a produção me olhava desconfiada, querendo entender o que eu estava fazendo ali. Uma tarde, durante um ensaio, a figurinista passou por mim, e disse baixinho: "Só quero ver, hein. Apostamos em você, vê se faz direito, senão...". Um frio percorreu minha espinha e fui pra casa e estudei muito. Lembro até hoje as noites, enquanto meu filho de cinco anos dormia no outro quarto, em que eu me trancava no meu, colocava uma cadeira no meio fingindo que era o Bógus e ensaiava incansavelmente o lindo monólogo da Sonia do final da peça.

Sergio Britto me incentivava muito, apesar de muitas vezes ficar olhando pra mim atuando e depois falar: "Não sei o que te dizer. É estranho o que você faz. Não sei se é bom ou não. Vou pensar".

Nunca vou esquecer o grande ser humano Armando Bógus, com uma paciência e carinho infinitos. Nas coxias ele me ensinava muita coisa, baixinho, com muita calma, como a tirar os chiados da prosódia carioca. Com sua simplicidade monumental me mostrou a grande generosidade de um grande ator. Uma pessoa realmente inesquecível e que foi um dos meus mestres no teatro, sem dúvida.

Fiquei um pouco mascote do elenco, por ser uma caloura naquela montagem. Rodrigo Santiago me paparicava e não foi nada difícil me apaixonar por aquele Astrov enigmático, de rara singularidade, e Christiane Torloni nos harmonizava com aconchegantes jantares e vinhos, quando ficávamos horas bebericando, falando, nos reconhecendo como velhos amigos que Tchékhov uniu.

Eu me lembro da sensação maravilhosa que a temporada me trouxe, de paz, serenidade, plenitude, diferente de tudo que já tinha sentido. Anos depois, em 1999, quando no Grupo Tapa fizemos "Ivanov", também de Tchékhov, a mesma sensação me visitou, então concluo que falar Tchékhov, "o médico das almas", tem um poder secreto de fazer bem ao meu coração, de acalmá-lo, de despertar uma profunda compreensão do outro.

E, no fim do ano passado, revisitei, agora na direção, o universo tchekhoviano com a peça do romeno Matéi Visniec, "A Máquina Tchékhov", e mais uma vez me surpreendi com a mesma sensação de calma, de compreensão, o que foi fundamental para a direção.

Naquele ano de 1984 minha Sonia foi indicada na categoria revelação do ano do Prêmio Mambembe. O primeiro Tchékhov a gente nunca esquece.

DENISE WEINBERG, 59, atriz e diretora, volta em abril com a peça "O Testamento de Maria", de Colm Tóibín, no Teatro Aliança Francesa.


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