Folha de S. Paulo


ponto crítico

O mundo em ruínas do Grupo XIX

Elaborando para o século 21 os filmes "Teorema" (1968) e "Saló - 120 Dias de Sodoma" (1975), de Pasolini, o Grupo XIX de Teatro promove em sua sede, na vila operária Maria Zélia (grátis até 6/3 e com temporada paga até 1º/5) uma revitalização da função mais básica do teatro. No espetáculo "Teorema 21", com encenação de Luiz Fernando Marques, o público é convidado a confrontar-se consigo mesmo.

A experiência começa com trechos de "Teorema" que estabelecem uma ligação entre o filme e a interpretação do destino atual de seus personagens. O filme explora as reações dos membros da família de um industrial após terem sido seduzidos sucessivamente por um visitante enigmático. Seu papel é tão ambíguo quanto os comportamentos deles após seu desaparecimento. Empregada, mãe, filha e filho procuram preencher o vazio afetivo com religião, arte, sexo ou apatia. Somente a vida do pai chega a um desfecho nessa alegoria sobre a alienação no capitalismo pós-Guerra. Ele entrega a fábrica aos operários e abandona a civilização, enlouquecido.

Lenise Pinheiro/Folhapress
Os atores Paulo Celestino (esq.), Bruna Betito, Ronaldo Serruya, Juliana Sanches e Rodolfo Amorim em
Os atores Paulo Celestino (esq.), Bruna Betito, Ronaldo Serruya, Juliana Sanches e Rodolfo Amorim em "Teorema 21"

Ao público de "Teorema 21" não são dados esses detalhes. É mostrada a abertura do filme com imagens da fábrica e dos personagens na mansão. Um texto (a dramaturgia é de Alexandre Dal Farra) liga o passado projetado com o presente da vila, visível pela porta do teatro.

Quando a empregada (às sextas, interpretada por Emilene Gutierrez, nos demais dias, por Janaina Leite) surge caminhando pela rua, os espectadores a seguem. Chegando a um prédio em ruínas, tomado pela natureza e com paredes grafitadas, sentam-se em cadeiras giratórias. A família aparece em seguida para atuar perante e entre a plateia, evidenciando que a decadência do espaço é análoga a sua situação: o pai (Ronaldo Serruya) e a mãe (Juliana Sanches) são hedonistas cínicos, o filho (Paulo Celestino) autoagressivo tornou-se agressor. Somente a filha (Bruna Betito) permaneceu catatônica.

Embora figurino (Juliana Sanches) e atuação sejam elusivos quanto à classe social dos personagens, os jogos de poder com a criada qualificam-nos como burguesia insensível. A construção de um ambiente cruel sem empatia é lenta e carece, às vezes, de densidade. Só aos poucos os tempos mortos, intercalados por relatos sobre transgressões sexuais, ofensas, coação e o estupro da criada delineiam uma curva dramática que fica plausível no clímax, com o reaparecimento do visitante (Rodolfo Amorim).

Nesse mundo capitalista-burguês devastado, ele está despido de qualquer dimensão política ou espiritual. Como a família, é violência pura, mas ainda mais bruta –espelho bizarro da falta de moral deles. Não é mais elegante e esportivo. Em vez de seduzir, chega para semear terror. Sua primeira investida é contra o pai, que sodomiza. Após matar a empregada, viola a filha. Como no filme "Saló", a brutalidade não é só crível –o que exige coragem cênica– mas igualmente insuportável e inconsumível.

Em "Saló" a violência era, no entanto, aliada a uma interrogação de todo o potencial utópico europeu. Expressa a corrupção, o fascismo dos representantes do poder executivo, legislativo, feudal e clerical da época. "Teorema 21", por sua vez, usa as atrocidades para abrir um espaço para o potencial emancipatório do público.

Em sua condição de voyeurista de crueldades, nenhum espectador escapa de certas tomadas de decisão: girar ou não girar a cadeira; erguer a cabeça para ver as barbáries ou baixar o olhar para evitar as obscenidades.

Mesmo assim, o final é pouco promissor. A família consegue prender o invasor, e a criada limpa a sujeira que ele deixou. Sendo todos agressores, a exceção da empregada e da filha, não há trégua. O cenário está só sendo preparado para as próximas perversidades.

Um teorema é proposto: a violência permeia as relações humanas. A possível saída depende da capacidade de empatia de cada um. Vale a pena conferir a própria reação à desumanização nesse palco do mundo industrializado em ruínas.

CAROLIN OVERHOFF FERREIRA, 47, é crítica teatral e professora de cinema da Unifesp.


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