Folha de S. Paulo


Os vilarejos esquecidos onde Hitler testou suas armas para a 2ª Guerra

RESUMO No ocaso da Guerra Civil, vilarejos da Espanha foram bombardeados pelos nazistas, que testavam aviões e bombas às vésperas da Segunda Guerra. Após anos de mistério sobre o motivo dos ataques, habitantes da região conhecem, graças a um descendente das vítimas, a verdade sobre o ensaio destruidor de Hitler.

Deco Farkas

Na manhã de 25 de maio de 1938, Ángel Beltrán Saborit viu três engenhocas metálicas sobrevoando o povoado de Benassal, no leste da Espanha. De pé, aos 15 anos, observou como a primeira delas descia rumo ao solo e deixava cair um estranho objeto antes de voltar a subir. "Parecia um homem vestido de preto", diz à Folha. Era uma bomba de 500 quilos.

Seguiram-se um estrondo inesquecível e uma coluna de poeira que chegava quase até a altura em que voavam as aeronaves. Os outros dois aviões despejaram também seus explosivos e, dando meia-volta, retornaram aos céus de onde haviam vindo.

Beltrán Saborit, hoje com 92 anos, é uma das últimas testemunhas de uma série de ataques aéreos realizados contra esse vilarejo de então 2.284 habitantes e outros povoados do arredor –uma espécie de Guernica que, isolada pelas montanhas da região valenciana e reprimida pelo regime espanhol, não foi pintada por Pablo Picasso nem relembrada pela história. Morreram, na região, 38 pessoas.

Por décadas, os residentes não souberam a razão e as circunstâncias exatas pelas quais Benassal, Albocàsser, Villar de Canes e Ares del Maestrat foram atacadas naquela manhã e no dia 28 do mesmo mês. Moradores especulavam, entre si, se havia sido uma agressão republicana ou nacionalista, no contexto da Guerra Civil Espanhola (1936-39), e a falta de uma explicação ajudou a fomentar a desconfiança entre vizinhos durante a subsequente ditadura de Francisco Franco (1939-75).

"Vivíamos de trigo, cevada e batata. Não sabíamos nada de guerra. Nunca pensamos que iam nos bombardear, não havia nada aqui", diz Beltrán Saborit. Mas a resposta à pergunta que incomodou essa e outras testemunhas surgiu em 2012, quando Oscar Vives, um morador local, encontrou uma breve referência a Benassal em uma edição de "A Batalha pela Espanha", obra britânica sobre a Guerra Civil.

No texto de Antony Beevor, uma linha mencionava o vilarejo como um entre outros bombardeados por nazistas na Espanha e registrava o número de um dossiê num arquivo localizado na Alemanha.

Vives, físico teórico, sem experiência em pesquisa histórica, entrou em contato com o centro de documentação em Friburgo e viajou até ali para consultar as informações. Encontrou 65 fotografias dentro de uma pasta intitulada "Imagens dos efeitos das bombas de 500 kg nos povoados". A partir dessas informações, aliado a uma força-tarefa de moradores da região interessados em conservar a memória de seus antepassados, ele foi capaz de explicar a Beltrán Saborit por que aquela bomba havia sido despejada em Benassal, deixando 14 mortos e 70 casas destruídas: era um experimento nazista.

A Alemanha, aliada de Franco durante a Guerra Civil, testou naquele vilarejo a potência e precisão de sua então nova máquina mortífera, o avião Junker Ju-87. Também conhecida como Stuka, essa aeronave de bombardeio de mergulho foi uma peça fundamental da estratégia militar nazista a partir do ano seguinte, quando deflagrou-se a Segunda Guerra Mundial (1939-45). O ataque a Benassal e seus vizinhos resultou, para as tropas de Hitler, em importante vantagem estratégica, já que chegavam ao confronto com pilotos experientes e um novo equipamento testado –em especial no que se refere aos efeitos das bombas de 500 kg.

Essa história, ainda pouco conhecida na Espanha, é tema de um documentário em produção e ainda sem data de lançamento, reunindo os testemunhos de moradores e especialistas. O filme "Experimento Stuka", codirigido por Rafa Molés e Pepe Andreu, é financiado pelo governo regional valenciano e, atualmente, busca mais fundos para a pós-produção.

Outra das testemunhas-chave registradas pelo documentário é Leovigildo Zaragozá, 92, hoje morador de um asilo em um povoado vizinho chamado Villafranca del Cid. Zaragozá caminha com dificuldade pelo corredor e se senta diante da reportagem, balbuciando fragmentos de memória. Ele leva as mãos trêmulas à cabeça como se quisesse puxar de dentro dela um fio narrativo.

Mas as lembranças daquela manhã de 1938, quando tinha 15 anos, ainda lhe parecem recentes. "Meu irmão mais novo me acordou. Ouvíamos um ruído, rrrrrrrrr. Estávamos na cama, de cueca, e fomos à janela. O primeiro avião deixou cair uma coisa. Não sabíamos o que era uma bomba. Era como um animal, uma besta", diz. "Explodiu perto da minha casa, e tudo tremeu. Havia muita poeira. Deixamos os mortos nas ruas e buscamos abrigo, com medo de que caíssem outras."

Os moradores de Benassal, afinal, não sabiam o que esperar. Dezenas de quilômetros distantes da fronteira das batalhas, sem indústria ou construções militares, não tinham razões para esperar um ataque. "Diziam que nunca ia acontecer", conta Rosa Sóligo Colón, 89, em uma cadeirinha na casa que foi de seu avô –ainda com as mesmas portas de madeira que tinha em 1938, quando resistiu aos bombardeios alemães. A construção onde Sóligo Colón morava, por sua vez, ruiu com o ataque.

"Eu ainda estava na cama, na casa dos meus pais, quando a bomba explodiu. Fomos feridos pelos destroços. Estávamos ensanguentados quando chegamos aqui", diz. Em seguida, aponta pela janela alguns dos lugares atingidos pelas explosões.

Sóligo Colón até então nunca tinha ouvido falar na guerra que, já havia algum tempo, castigava a Espanha. "Meus pais não falavam nada durante o conflito, e depois preferiram esquecer o que tinha acontecido", diz. Assim, tanto durante o ataque quanto nos difíceis meses que se seguiram, ela não conseguiu relacionar os fatos entre si ou interpretá-los. As explosões de sua infância foram, até recentemente, um enigma a respeito do qual o vilarejo preferia não especular.

QUADRO

A Guerra Civil começou na Espanha em 1936 a partir do embate entre as forças chamadas republicanas, que defendiam o governo então vigente, e os golpistas da facção nacionalista. As tropas nacionalistas, que rapidamente ganharam terreno, tinham entre seus líderes Francisco Franco. O general, encerrada a guerra em 1939, se tornou o ditador da Espanha e passou a responder pela hipérbole de "generalíssimo". Ficou no poder até morrer, em 1975.

Sua vitória foi devida em parte à aliança que travou com as forças de Adolf Hitler. "Sem os aviões alemães, Franco não teria vencido a guerra", diz a historiadora alemã Stefanie Schüler-Springorum, autora de um estudo sobre a Legião Condor, da qual faziam parte as aeronaves germânicas que bombardearam a Espanha nesse período.

Entre esses ataques está o bombardeio de Guernica, no norte da Espanha, tema de um icônico quadro de Pablo Picasso hoje exposto no museu madrilenho Reina Sofía. Havia à época cerca de 7.000 moradores na cidade de Guernica, localizada na região basca do país. Os ataques alemães de 26 de abril de 1937, um ano antes de Benassal, deixaram dezenas de mortos –a cifra é até hoje controversa, variando de 120 a 300 vítimas.

Mas, enquanto a tragédia de Guernica foi contada ao mundo, resultando em condenação internacional ao bando nacionalista de Franco, a de Benassal desapareceu com o baixar da poeira.

Para Schüler-Springorum, há uma série de razões para a diferença no tratamento dos eventos históricos. No norte espanhol, por exemplo, o testemunho de jornalistas ajudou a transformar o bombardeio em causa humanitária. Além disso, naqueles anos o governo basco tinha melhores relações com atores internacionais e sua narrativa contou com uma credibilidade no exterior que os ataques no leste não teriam. Guernica tornou-se um símbolo do nacionalismo basco que, mesmo durante as décadas de repressão, pôde ser lembrado. Enquanto isso, em Benassal, a memória murchou.

A despeito do esquecimento, o teste de equipamento militar na região de Valência foi um momento importante na história contemporânea europeia. "Os aviões Stuka e suas bombas foram famosos na guerra, depois de testados na Espanha", diz Schüler-Springorum. "Depois da Guerra Civil, os alemães tinham pilotos experientes e uma sensação de superioridade aérea", afirma –assim, voaram rumo à Polônia, onde repetiram as mesmas táticas que haviam experimentado em território espanhol.

Deco Farkas

Os bombardeios nazistas na Espanha também são importantes porque, diz a historiadora, ajudam a explicar as derrotas militares alemãs dos anos seguintes durante a Segunda Guerra Mundial. Afinal, os ataques à região valenciana foram feitos em curta distância e em povoados sem defesa aérea. Quando Hitler disputou nos céus russos, em largas distâncias, e enfrentou resistência aérea britânica, teve menos sucesso do que podia ter imaginado. "Eles não haviam praticado o conceito defensivo, por exemplo", diz a historiadora.

MONTANHAS

Benassal é hoje um remoto povoado de 1.162 habitantes, escondido entre caminhos tortuosos nas montanhas da província de Castellón. É ainda hoje um lugar isolado –sair de lá exige tomar um único ônibus disponível, às 6h45, para um povoado vizinho, de onde outra condução leva a uma cidade de maior porte, da qual, por fim, sai o trem até Valência, a capital regional. O trajeto dura cerca de quatro horas. Dali a Madri são mais duas horas de ferrovia de alta velocidade.

Atualmente Benassal vive do cultivo de amêndoas e avelãs, além da criação de suínos. Depois das décadas de êxodo rural no país, diversas construções estão vazias –em uma delas, um relógio de sol pintado na parede descasca com o passar do tempo.

Nos anos 1930, o povoado era um balneário de águas termais sem importância estratégica. Não foi escolhido pela Alemanha nazista para ajudar algum avanço das tropas de Franco –foi uma opção pragmática para um teste. Era um alvo próximo, sem defesas e sobre o qual, já se imaginava, pouco se faria alarde. Não está claro se o ditador espanhol foi avisado ou não sobre essa ação militar, mas a aviação nazista agia com liberdade, ou sob vista grossa, para tomar essas decisões.

"A Espanha era o único palco disponível para experimentos militares naqueles anos", afirma o historiador Ángel Viñas, especializado no período e na interação entre Franco e Hitler. "Desde o primeiro momento em que chegou ao país, a Legião Condor tinha a ideia de provar ali seu material e suas táticas, seus novos métodos de guerra. Hitler enxergou a possibilidade de aprender."

Esse é um tema de difícil estudo, explica, porque grande parte da documentação arquivada na Alemanha foi queimada em Berlim na guerra, em decorrência de bombardeios aliados. Sobraram registros fragmentários. Na Espanha, a maior parcela dos papéis sumiu durante a ditadura –propositalmente, segundo pesquisadores. Viñas encontrou documentos específicos sobre Guernica e analisou os protocolos da comunicação entre os dois países. "Os alemães não eram uma força invasora. Estavam ajudando Franco", diz.

Segundo Rafa Molés, diretor do documentário, os três Stuka que bombardearam Benassal chegaram desmontados à Espanha. "Já se sabia que a Guerra Civil estava perdida. Isso acelerou a percepção de que, em breve, a Legião Condor teria que voltar à Alemanha."

Os nazistas, ansiosos, decidiram então testar a máquina em uma situação-limite, conta o diretor. Em vez de carregar as aeronaves com a bomba de 250 kg para a qual tinham sido projetadas, os alemães decidiram experimentar a versão de 500 kg. "Traçaram uma linha passando por quatro povoados, escolhidos pela proximidade e segurança, e fotografaram os lugares nos dias anteriores e posteriores ao ataque."

São as fotografias hoje disponíveis no arquivo militar alemão, registrando o dano. Há, ademais, imagens feitas dias mais tarde por soldados alemães, quando se aproximaram, por solo, dos vilarejos destruídos e desertos. Um soldado posou dentro de uma cratera, em uma das fotografias, como medida de proporção. "O sucesso do experimento foi tal que fabricaram milhares desse avião", diz Molés.

O diretor do documentário sobre as aeronaves Stuka afirma que não se interessa especialmente pelo tema histórico ou por assuntos relacionados à Guerra Civil. Mas diz que, ao ouvir as notícias das investigações conduzidas por moradores locais, assombrou-se com a semelhança entre os conflitos de outrora e os de hoje. "Usaram os Stuka então, agora usamos drones", afirma, referindo-se aos aviões não tripulados empregados pelos EUA, por exemplo, no Iêmen.

Deco Farkas

Assim, a ideia do documentário ultrapassa o registro histórico, transformando-se em uma reflexão sobre as guerras. "Matar é difícil. No bombardeio, existe uma distância entre o executor e a vítima. Nos afastamos, tentamos não conhecê-la. O Stuka precisamente tinha que mergulhar e, depois de lançar a bomba, voltar a subir. Perdia-se, nisso, o contato visual."

Molés já gravou com 12 testemunhas. Depois que a notícia de seu documentário começou a circular, outras duas pessoas o procuraram oferecendo-lhe suas memórias. "Eram crianças quando viram o bombardeio e têm, por isso, uma visão infantil. Mas recuperar a memória nos tira a inocência", diz.

RELATOS

Apesar de que o ataque a Benassal e povoados vizinhos já constava da lista de agressões durante a Guerra Civil, a pesquisa que levou ao esclarecimento de suas circunstâncias e ao registro de relatos orais não teria sido possível sem a investigação do físico Vives, 45, o morador local –professor universitário em uma cidade próxima– que viajou ao arquivo militar na Alemanha. Cinco membros de sua família morreram no bombardeio, e ele diz que foi motivado pela curiosidade a respeito das histórias que não ouviu enquanto crescia em Benassal.

"Minha avó sempre nos dizia que o melhor lugar para se esconder de um bombardeio era embaixo das escadas, mas eu nunca entendia a razão daquilo", afirma. "Há alguns anos, um grupo de moradores começou a reunir relatos orais do povoado e percebeu que o ataque era um dos temas mais relevantes. Ninguém sabia o motivo, cada um tinha a sua história. Para a minha avó, era simplesmente um fato da guerra. Ela achava que isso tinha acontecido em todo o país."

Outra tese corrente era a de que o bombardeio seria uma vingança do bando republicano contra a elite valenciana, que frequentemente viajava ao balneário de Benassal, ou ainda que o ataque visava interromper suprimentos de um dos dois lados do conflito.

O grupo de reconstituição da memória oral de Benassal, criado há 12 anos, tem hoje 15 membros. Eles publicaram cinco tomos sobre o povoado, além de um livreto dedicado aos ataques alemães. Houve algum apoio do governo local, e as atividades se financiam pela venda dos próprios volumes –apenas os direitos para transportar e publicar as fotografias do arquivo alemão custaram cerca de R$ 7.500. "Queremos registrar esse mundo rural que está desaparecendo", diz Pilar Vidal, membro da organização.

Para o grande registro da história, provavelmente os bombardeios a Benassal serão anotados em uma curva, entre tantas atrocidades cometidas na Espanha durante o século 20. O próprio Beltrán Saborit, a quem a bomba de 500 kg pareceu um homem de preto, repete diversas vezes durante a entrevista que aquele ataque não foi do pior que ele viu durante sua vida. O regime franquista tornou-se notório, durante décadas, pelas violações aos direitos humanos no país. "Quem tem menos de 70 anos não sabe o que aconteceu aqui", resmunga o ancião.

Mas as investigações de Vives e do documentário de Molés, a partir da memória dessas testemunhas, têm de alguma maneira um efeito de bálsamo para o registro desse povoado montanhoso, conhecido em todo o país pelas propriedades medicinais de sua água mineral.

"O bombardeio era um tabu na minha casa", diz a professora Teresa Roig, 56, neta de uma vítima, na escola do vilarejo. Sua mãe, conta, por toda a vida cobriu os ouvidos ao escutar um avião cruzando os céus. Ela morreu em 1996. "Tentávamos esquecer isso. Havia muito ódio, e não sabíamos quem tinham sido os autores. Hoje, tenho a sensação de que deveria ter perguntado mais. Mas chegou o momento de falar."

DIOGO BERCITO, 27, é jornalista e assina os blogs Orientalíssimo e Mundialíssimo no site da Folha.

DECO FARKAS, 30, é artista visual.


Endereço da página:

Links no texto: