Folha de S. Paulo


As batidas do samba e as de um bar na Tijuca

Desconfie quando o sabichão afirmar que aquele gênero musical nasceu no ano e dia tais, na casa de fulano, às tantas horas de uma quinta-feira chuvosa. Tem toda a pinta de chute, e é chute.

A Prefeitura do Rio caiu nessa e, desde o Réveillon, anda badalando 2016 como o ano do centenário do samba –como se uma Olimpíada inteira não bastasse para fazer onda.

Até entende-se: a premissa é o registro como samba na Biblioteca Nacional, em 1916, de uma colcha de retalhos musicais chamada "Pelo Telefone", que, do gênero como o conhecemos, quase nada tem. Melhor seria dar-lhe o título de composição brasileira mais polêmica de todos os tempos.

A gravação de "Pelo Telefone", em 1917, apresenta melodias e refrões diferentes, sendo que o refrão da quarta parte tem origem no folclore nordestino. De estrutura desordenada, no conjunto aproxima-se mais de um maxixe, surgido de versos e melodias improvisados, como era comum nas casas das baianas da praça Onze.

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O músico Donga
O músico Donga

Tanto que, além de seus dois autores "oficiais", Donga e Mauro de Almeida, outros se apressaram em reclamar a autoria: Germano Lopes da Silva, Hilário Jovino Ferreira, João da Mata, Minan, Didi da Gracinda, Sinhô e a própria Tia Ciata.

Também registrado na Biblioteca Nacional como "samba de partido alto" em 1913 –portanto, três anos antes de "Pelo Telefone"– já havia aparecido "Em Casa de Baiana", de Alfredo Carlos Brício.

Em 1914, com "A Viola Está Magoada", gravado pelo cantor Baiano para a Casa Edison, novamente em selo de disco é usada a denominação "samba".

Se este é mesmo o ano do centenário do gênero, é de se perguntar por que nenhuma escola de samba do Grupo Especial escolheu a efeméride como enredo. Alguém bobeou, ou se esqueceu de combinar com o marqueteiro de plantão.

CARNAVAL DA CRISE

Por sinal, as escolas –que receberam verba em dobro da prefeitura, R$ 2 milhões cada uma– vivem um momento delicado. Com o avassalador Carnaval das ruas, o desfile corre o risco de se tornar uma manifestação restrita a iniciados –além dos turistas, é claro.

Não é surpresa nos dias de hoje encontrar quem vá somente aos ensaios nas quadras, ou mesmo aos ensaios técnicos no Sambódromo, e passe longe da Marquês de Sapucaí nos dias de festa.

Nas próximas duas semanas, até o pico na Terça-Feira Gorda, a animação não será diferente.

Mais de 50 novos blocos vão pular na cidade –a lista dos autorizados bate agora nos 505. Mas sempre há os "sujinhos", que surgem fora da lei, na marra da alegria. Sem falar no combustível extra, a crise, que promete um festival povoado de máscaras do "japonês da Federal" e marchinhas que descobrem rimas insuspeitadas para Cunha e Rousseff.

DIVINO DA TIJUCA

Paulo Mendes Campos gostaria de ter escrito "A História dos Bares Cariocas", livro quase impossível. Agradava-lhe a ideia de bar como espaço kafkiano, onde as pessoas aparecem do nada sem ser convidadas.

Nas pegadas de PMC, Paulo Thiago de Mello e Zé Octávio Sebadelhe fizeram "Memória Afetiva do Botequim Carioca" [José Olympio, 256 págs., R$ 65]. São 26 verbetes, com rara iconografia, sobre nossa tradição etílica e gastronômica: Café Nice, Zicartola, Suvaco de Cobra, Taberna da Glória, A Paulistinha, Antonio's, Beco da Fome, Veloso, Divino.

Não conhece o Divino? Pois era lá, nas quebradas da Tijuca, que Jorge Benjor, Tim Maia e Erasmo Carlos dividiam a pizza nos anos 1960. E, como reza o rock, onde a confusão começou.

REDUTO KAFKIANO

Se fosse carioca, Kafka moraria na Tijuca. Impedido processualmente de sair da rua Haddock Lobo e arredores, não teria outro jeito senão escolher o Madrid como bar predileto. Aberto há seis meses, fica numa pequena rua residencial, quase sem trânsito de carros ou pessoas, a Almirante Gavião.

O escritor olharia sem espanto as paredes, onde há retratos de Julio Iglesias e Getúlio Vargas, além de uma flâmula do quase extinto América Football Club. Por sugestão do dono, o galego Felipe Quintans, Kafka comeria uma tapa de chorizo com batata-baroa. Para bicar, batida de maracujá.

ALVARO COSTA E SILVA, o Marechal, 53, é autor de "Dicionário Amoroso do Rio de Janeiro" (Casarão do Verbo).


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