Folha de S. Paulo


A grande busca para descobrir de onde vieram os cachorros

Antes que os seres humanos aprendessem a ordenhar vacas, pastorear cabras ou criar porcos, antes que eles inventassem a agricultura ou a escrita, antes que eles passassem a ocupar moradias permanentes e com toda certeza antes que eles tivessem gatos, eles tinham cachorros.

Ou os cachorros os tinham, a depender de como você observa o arranjo entre cachorros e seres humanos. Mas os cientistas continuam a debater exatamente quando e onde essa conexão tão antiga se originou. E um novo e grande estudo conduzido pela Universidade de Oxford com a colaboração de pesquisadores de todo o mundo pode em breve oferecer pelo menos parte da resposta.

Andrew Testa - 17.nov.15/The New York Times
Um crânio canino que acredita-se ter 32 mil anos em Bruxelas, no Royal Belgian Institute of Natural Sciences
Um crânio canino que acredita-se ter 32 mil anos em Bruxelas, no Royal Belgian Institute of Natural Sciences

Os cientistas já desenvolveram um quadro geral sobre as origens dos cachorros. Para começar, pesquisadores concordam em que eles evoluíram do lobo, na antiguidade. No passado, os cientistas imaginavam que algum ser humano primitivo visionário, na era da caça e coleta, tivesse capturado um filhote de lobo um dia e começado a criar lobos mais e mais mansos, no primeiro passo da estrada que nos conduziu aos passeios diários e coleiras antipulgas. A descrição é simplificada, claro, mas a essência da ideia é a de que as pessoas trabalharam ativamente para criar lobos que vieram a se tornar cachorros, da mesma forma que hoje criam cachorros maiores ou menores, ou especializados em pastorear ovelhas.

A opinião científica prevalecente hoje, porém, é a de que essa história de origem não é convincente. Domar lobos é difícil, mesmo quando filhotes, e muitos pesquisadores consideram mais plausível que na verdade os cachorros tenham se autoinventado.

Imagine que alguns lobos da antiguidade fossem um pouco menos tímidos na presença de caçadores nômades e se alimentassem periodicamente com os restos de suas presas e de seus acampamentos, evoluindo gradualmente até se tornarem mais e mais mansos e produzindo grande número de crias por conta da facilidade de alimentação. Em dado momento, esses animais teriam se tornado os pedintes que balançam o rabo e hoje são celebrados como o melhor amigo do homem.

Alguns pesquisadores questionam se cachorros são capazes de sentimentos como amor e lealdade, ou se os seus modos amistosos são simplesmente uma questão de instinto que os teria levado a evoluir dessa maneira porque depender dos seres humanos é um modo de vida mais fácil do que perseguir antílopes. Raymond Coppinger, professor emérito de biologia no Hampshire College, aponta em "Dogs", o livro marcante que ele lançou sobre o tema em 2001, que "melhor amigo" não é "uma definição ecológica". E ele sugere no texto que "o cão doméstico pode ter evoluído como parasita".

Pesquisadores também apontam que, do total estimado de um bilhão de cachorros no planeta, apenas 25% são animais de estimação. A maioria dos cachorros vive solta nas ruas de aldeias, procurando alimento no lixo e recebendo comida ocasionalmente dos seres humanos, e causando dezenas de milhares de mortes humanas ao ano por raiva. Eles são ocasionalmente amistosos, mas não verdadeiramente amigos.

Os cachorros modernos são diferentes dos lobos modernos de numerosas maneiras. Comem confortavelmente na presença de pessoas, coisa que lobos não fazem. Seus crânios são mais largos, e seus focinhos mais curtos. Eles não vivem em uma estrutura de alcateia, quando sozinhos, e alguns cientistas zombam das técnicas de treinamento de cachorros que requerem que um ser humano se comporte como líder de alcateia.

Os lobos formam casais duradouros, e os pais lobos ajudam no cuidado dos filhotes, enquanto os cachorros são completamente promíscuos e os machos não prestam atenção às suas crias. Ainda assim, cruzamentos entre cachorros e lobos são fáceis, e alguns cientistas não estão convencidos nem mesmo de que as duas espécies sejam diferentes, um ceticismo que reflete debates científicos mais amplos sobre como definir uma espécie, e até que ponto essas categorias são um fato da natureza e não uma linha traçada arbitrariamente pelos seres humanos.

BUSCANDO AS ORIGENS

Se as atuais divisões entre espécies são confusas, o passado está envolvo em profunda escuridão. Os cientistas em geral concordam em que existem bons indícios de que os cachorros tenham sido domesticados cerca de 15 mil anos atrás. Há 14 mil anos, seres humanos já sepultavam cachorros, em alguns casos em companhia de cadáveres humanos. Mas alguns biólogos argumentam, com base em indícios de DNA e no formato de crânios antigos, que a domesticação do cachorro pode ter acontecido há bem mais de 30 mil anos.

E quanto ao local em que o processo teria ocorrido, pesquisadores que estudam o DNA de cachorros e lobos –a maior parte do qual moderno, mas com amostras vindas de fontes do passado– argumentaram nos últimos anos que os cachorros se originaram no leste da Ásia, Mongólia, Sibéria, Europa e África.

Uma razão para as teorias conflitantes, de acordo com Greger Larson, biólogo do departamento de arqueologia da Universidade de Oxford, é que a genética dos cachorros é uma bagunça. Em entrevista em seu escritório na universidade, em novembro, ele apontou que a maioria das raças de cachorros foram inventadas no século 19, durante um período de obsessão com cachorros que ele define como "o grande liquidificador da louca era de obsessão europeia e vitoriana com a criação de cachorros".

O liquidificador em questão, bem como cruzamentos aleatórios promovidos pelos cachorros mesmos, e cruzamentos com lobos em diferentes momentos dos últimos 15 mil anos, criaram uma "sopa de tomate" da genética canina na qual ingredientes são difíceis de identificar, disse o dr. Larson.

Andrew Testa - 19.nov.15/The New York Times
Fragmentos de dentes e mandíbulas no inglês Oxford Museum of Natural History
Fragmentos de dentes e mandíbulas no inglês Oxford Museum of Natural History

O jeito de encontrar a receita, ele está convencido, é criar um grande banco de dados de DNA do passado para comparar com a sopa da moderna genética canina. E com um colega, Keith Dobney, da Universidade de Aberdeen, ele persuadiu muitos dos mais influentes pesquisadores sobre cachorros a participar de um projeto amplo, que recebeu US$ 2,5 milhões em verbas do Conselho de Pesquisa Natural e Ambiental da Inglaterra e do Conselho de Pesquisa Europeu, para analisar antigas ossadas caninas e seu DNA.

Robert Wayne, biólogo evolutivo da Universidade da Califórnia em Los Angeles e estudioso da origem dos cachorros, é parte do grupo de pesquisadores e disse que "não há muita gente que trabalhe com genética canina que não esteja envolvida no projeto".

Só isso já é um triunfo, em alguma medida, dadas as muitas teorias antagônicas nesse campo de trabalho. "Quase todos os grupos têm hipóteses diferentes sobre as origens", ele diz.

Mas o dr. Larson convenceu a todos da ideia básica de que, quanto mais dados estiverem disponíveis e quanto mais cooperativo for o esforço, melhores serão as respostas. A personalidade dele foi crucial para estimular esse esforço coletivo, disse o dr. Wayne, que descreve o dr. Larson como "um sujeito muito amistoso, gregário". Além disso, acrescenta o dr. Wayne, "ele conseguiu não alienar pessoa alguma".

Os cientistas de museus e universidades que são parte do projeto estão abrindo suas coleções. Para recolher esses dados, o dr. Larson e sua equipe de Oxford viajaram pelo mundo, obtendo pequenas amostras de ossos e medições de dentes, mandíbulas e ocasionalmente crânios quase completos de cachorros, lobos e canídeos (que podem se enquadrar em ambas as categorias), do passado e mais recentes. A fase de coleta está quase concluída, disse o dr. Larson, que espera terminar com DNA de mais de 1,5 mil amostras e fotos e medições detalhadas de mais outros milhares.

O trabalho começará a resultar em estudos científicos a partir deste ano, alguns dos quais originários de Oxford e outros das demais instituições envolvidas, todos envolvendo trabalho de muitos colaboradores.

O dr. Larson está apostando que o projeto será capaz de determinar se o processo de domesticação ocorreu mais perto de 15 mil ou de 30 mil anos atrás, e em que região. Mas não se trata da data precisa, da localização por GPS e do nome exato do caçador primitivo envolvido que alguns amigos dos cachorros talvez desejem.

De qualquer forma, um resultado dessa ordem seria um grande avanço no mundo da ciência canina, e um marco na análise de DNA do passado para mostrar evolução, migrações e descendência, da mesma forma que estudos do DNA de antigos hominídeos demonstraram de que maneira as populações humanas do passado povoaram o globo e se acasalaram com os neandertal.

Mas por que estudar a domesticação dos cachorros, para além do interesse obsessivo que muitas pessoas têm por seus animais de estimação? O surgimento dos cachorros pode ter sido um marco histórico.

"Talvez a domesticação de cachorros em certo nível tenha dado a partida para toda uma mudança na maneira pela qual os seres humanos se envolvem, reagem e interagem com o seu ambiente", ele acrescentou. "Não creio que seja uma hipótese absurda".

PASTOREANDO A PESQUISA

O dr. Larson está acostumado a conviver com pontos de vista amplamente divergentes. Ele é americano, mas recentemente adquiriu também a cidadania britânica. Os pais dele são norte-americanos e ele visitava os Estados Unidos com frequência na infância, mas Larson nasceu no Bahrein e cresceu na Turquia e no Japão, países nos quais seus pais trabalharam como professores em bases militares norte-americanas.

Ele se formou no Claremont McKenna College, na Califórnia, e fez seu doutorado em Oxford. Entre sua graduação e pós-graduação, passou um ano procurando o leito de um rio da antiguidade no Turcomenistão, e outros dois anos criando um escritório de consultoria ambiental no Azerbaijão. Ele desenvolveu seu interesse pela ciência durante a graduação, e adquiriu algum conhecimento sobre o assunto ao estudar meio ambiente, economia e política, mas não tinha planos de fazer carreira nesse campo. Sua carreira terminou por evoluir com base na intensa curiosidade que ele sempre teve, em sua facilidade em fazer amigos e em sua disposição de aproveitar oportunidades, como na ocasião em que ele conseguiu pegar carona em uma expedição arqueológica.

Ele estava em Ashhgabat, no Turcomenistão, e um morador local que o havia ajudado a alugar um velho caminhão da era soviética para explorar o deserto o informou de que alguns ocidentais estavam preparando uma escavação. Ele subiu em um dos caminhões.

"Acho que cada pessoa lá pensava que eu estivesse com outra pessoa", disse o dr. Larson.

Quando o grupo parou para repousar e alguém lhe perguntou quem era ele, já era tarde demais para questionar o que estava fazendo ali. "Fui como completo clandestino", conta o dr. Larson.

Andrew Testa - 17.nov.15/The New York Times
Ardern Hulme-Beaman cortando um pedaço de crânio antigo para teste de DNA no Royal Belgian Institute of Natural Sciences, em Bruxelas
Ardern Hulme-Beaman cortando um pedaço de crânio antigo para teste de DNA no Royal Belgian Institute of Natural Sciences, em Bruxelas

Mas ele era capaz de escavar, e falava russo, e dispunha de conhecimentos especializados recentemente adquiridos –em bebedeiras na faculdade– que ele diz terem encontrado grande procura à noite. Por sorte, conta, os pesquisadores envolvidos na escavação eram "os mais famosos e os melhores no campo da arqueologia neolítica britânica". Um deles era Chris Gosden, diretor do departamento de arqueologia europeia em Oxford, que posteriormente convidou Larson para um mestrado de um ano em arqueologia na sua universidade. Isso terminou por conduzi-lo a um programa de doutorado, depois de estudos de pós-graduação nos Estados Unidos.

O projeto atual surgiu quando o dr. Larson perdeu a paciência com a falta de indícios de DNA antigo nos estudos científicos sobre a origem dos cachorros. Ele ligou para o dr. Dobney, da Universidade de Aberdeen, em 2011, e disse: "Vamos estudar cachorros".

Depois de conseguirem a verba do conselho de pesquisa inglês, ele e o dr. Dobney organizaram uma conferência em Aberdeen, Escócia, para reunir o maior número possível de pesquisadores envolvidos em trabalhos sobre a origem dos cachorros. A proposta dele ao grupo foi a de que, a despeito de seus pontos de vista divergentes, todos estavam interessados em obter os melhores indícios possíveis, não importa aonde esses dados conduzissem.

"Se tivermos de dar o braço a torcer, daremos o braço a torcer", ele disse. "Isso é ciência".

UM CRÂNIO DE 32 MIL ANOS

Mietje Germonpré, paleontóloga do Real Instituto Belga de Ciências Naturais, é uma dos muitos cientistas que participam do projeto sobre a origem dos cachorros. Ela foi um dos diversos autores de um estudo publicado em 2013 pela revista "Science" que identificava um crânio de cerca de 32 mil anos de idade localizado em uma caverna belga em Goyet como um cachorro primitivo. O dr. Wayne, da Universidade da Califórnia em Los Angeles, foi o autor sênior do estudo, e Olaf Thalmann, da Universidade de Turku, na Finlândia, o autor principal.

É típico do projeto do dr. Larson sobre cachorros que, embora ele discordasse das conclusões do estudo, argumentando que não havia provas para definir o crânio de Goyet como cachorro, todos os autores estivessem colaborando com ele em seu projeto mais amplo.

Em novembro, em Bruxelas, a dra. Germonpré, tendo nas mãos o fóssil de valor inestimável, apontou para o crânio largo, os dentes próximos uns aos outros e o focinho curto do crânio - o que para ela representa indicadores de que não se tratava de um lobo.

"Para mim, é um cachorro", ela disse. Os estudos de DNA mitocondrial, transmitido apenas por fêmeas, também indicavam que o crânio não era de um lobo, de acordo com o estudo publicado em 2013.

A dra. Germonpré disse acreditar que os cachorros tenham sido domesticados algum tempo antes da morte do animal em questão, e se inclina à ideia de que os seres humanos criaram os cachorros com base nos lobos.

Ela exibiu outra prova, uma reconstrução do crânio de um canídeo de 30 mil anos localizado perto de Predmosti, na República Tcheca e portando um osso na boca. Ela reportou em 2014 que o fóssil era de um cachorro. E diz que o osso é parte da prova de que o animal foi sepultado com cuidado. "Acreditamos que o osso tenha sido colocado lá deliberadamente", ela disse.

Mas a dra. Germonpré reconhece que essas afirmações são controversas e está disposta, como os demais profissionais da ciência caninas, a correr o risco de danos aos fósseis a fim de obter mais informação não só sobre o DNA mitocondrial quanto como ao DNA nuclear.

Para minimizar o risco, ela conversou com Ardern Hulme-Beaman pesquisador de pós-doutorado que participa da equipe de Oxford, sobre qual a melhor maneira de cortar o crânio. Ele estava perto do final de meses de viagens pela Rússia, Turquia, Estados Unidos e toda a Europa para recolher amostras de mandíbulas e crânios de canídeos.

Hulme-Beaman e Allowyn Evin, agora parte da equipe do Centro Nacional de Pesquisa Científica francês, em Montpellier, tiraram muitas fotos de cada mandíbula e crânio a fim de realizar medições geométricas de morfometria. Processos de software detalhavam fotos de todos os ângulos em forma de recriações tridimensionais que oferecem muito mais informações sobre a forma de um osso do que simples medições de largura e comprimento.

A dra. Germonpré e o dr. Hulme-Beaman concordaram quanto a um ponto no interior do crânio, para o corte. No laboratório, ele usou uma perfuratriz elétrica com lâmina de corte para remover uma porção do tamanho de uma fatia de noz. Um cheiro picante, de queimado, indicava a presença de material orgânico intacto dentro do osso - um bom sinal para o potencial de recuperação de DNA.

De volta a Oxford, os pesquisadores tentarão empregar as técnicas mais atuais para obter o máximo possível de DNA da amostra. Não há uma porção de código que defina "cachorro" ou "lobo", da mesma forma que não existe um traço craniano único que defina uma categoria. O que os geneticistas tentam estabelecer é até que ponto o DNA de um animal difere do DNA de outro. Acrescentar DNA de fósseis ao processo oferece muito mais pontos de referência, ao longo de um prazo maior.

O dr. Larson espera que ele e seus colaboradores sejam capazes de identificar uma seção de DNA em lobos da antiguidade que tenha sido transmitida a descendentes mais parecidos com os cachorros, e por fim aos cachorros modernos. E espera que sejam capazes de identificar mudanças nos crânios e mandíbulas dos lobos que mostrem mudança para formas mais caninas, ajudando a estreitar a busca pela origem da domesticação.

A suposição usual sobre animais domésticos é a de que o processo de domá-los e de começar a criá-los seletivamente aconteceu só uma vez. Mas isso não necessariamente é verdade. O dr. Larson e o dr. Dobney demonstraram que porcos foram domesticados duas vezes, uma na Anatólia (Turquia) e uma na China. O mesmo pode se aplicar aos cachorros.

SÓ O COMEÇO

Ainda que a coleta dos velhos ossos esteja quase completa, o dr. Larson continua a negociar com pesquisadores chineses para obter amostras daquela parte do planeta, que ele diz serem necessárias. Mas tem a esperança de que virão.

Se tudo correr bem, disse Larson, o projeto publicará um estudo global de todos os participantes, descrevendo suas conclusões gerais. E nos próximos dois anos, os pesquisadores, usando os dados comuns, continuarão a publicar suas conclusões separadamente.

Outros grandes esforços colaborativos estão surgindo, além disso. O dr. Wayne disse que um grupo estava sendo formado na China com o objetivo de sequenciar 10 mil genomas caninos. Ele e o dr. Larson são parte do grupo.

No final do ano passado, o dr. Larson estava se empolgando cada vez mais com a chegada de dados, mas ainda não estava pronto para revelar que conclusões os dados o levam a tirar, ou que importância essas conclusões poderiam ter.

Mas ele está cada vez mais confiante em que os pesquisadores encontrarão o que desejam, e ficarão próximos de resolver a espinhosa questão de quando e onde o poder destrutivo da mandíbula de um lobo foi substituído pelo poder persuasivo de um cutucão com o nariz gelado de um cachorro.

"Estou começando a acreditar naquilo que eu mesmo sempre disse", afirmou o dr. Larson.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


Endereço da página: