RESUMO O designer e músico baiano Rogério Duarte, autor do cartaz de "Deus e o Diabo na Terra do Sol", foi sequestrado e torturado pelo regime militar, foi considerado louco e virou hare krishna. Importante nome da tropicália, defende que o movimento foi relevante em todas esferas da arte, e não apenas um evento musical.
Rodrigo Sombra | ||
O músico, tradutor e designer Rogério Duarte, em Salvador |
Um relâmpago do designer tropicalista Rogério Duarte, 76 anos, a poucos segundos de desligar o telefone: "O mundo mudou tanto nos últimos tempos que tudo o que eu falei já era!". Magoado por uma inflamação na coluna, ele acabara de aceitar um encontro em seu apartamento no Rio Vermelho, em Salvador. Na manhã seguinte, deitado na cama, abriria suas ideias.
A barba acinzentada enflora a cara de eremita –mas não: continua um homem loquaz e, até onde der, gregário. "Tenho pensado na morte. Mais do que tudo, na metafísica, no sentido da existência humana. Eu diria: na filosofia mais profunda, uma interpretação da religião mais lúcida, uma tentativa de entender o mistério da vida", conta Duarte, logo voltando-se para o filho Rogério, 33: "Ele tem me ajudado bastante. Como é um iconoclasta, tem bombardeado muito meu fanatismo hare krishna".
Homenageado pelo recém-lançado "Rogério Duarte, o Tropikaoslista", do diretor baiano José Walter Lima, avalia que o documentário não o retira da marginalidade: "Pra não ser marginal, você tem que ter começado a não ser desde cedo. Quando você está velho, por mais que queiram te desmarginalizar, o tempo já passou. Tarde demais pra ficar famoso". Sua obra também foi revivida em duas coletâneas de textos publicadas pela Azougue, em 2003 e 2009, e nas mostras recentes em Melbourne, em Frankfurt, no MAM da Bahia e no MAM do Rio.
"O documentário aborda cinco vertentes de Rogério: o narrador de uma época, o pensador, o artista, o místico e o homem do campo", diz Walter Lima, que se concentrou em depoimentos de Duarte e imagens de arquivo. Os compositores Caetano Veloso, Gilberto Gil e Paquito apenas cantam, e o letrista Carlos Rennó lê o trecho de um ensaio sobre o tropicalista.
Em 2009, contra os vaticínios, Duarte resistiu a um câncer de garganta. E concluiu a tradução do poema em sânscrito "Gitagovinda", de Jayadeva, "A Cantiga do Negro Amor", livro bancado do próprio bolso e lançado em 2011 (que ele quer transformar em ópera). O travo da morte não sumiu de todo. Rejeitando alguns paliativos, aprendeu a "dialogar com a dor".
DIÁLOGO
Até 1968, o baiano de Ubaíra foi um artista em diálogo com a elite cultural carioca. Mudou-se em 1960 de Salvador para o Rio, onde morou num quarto do Solar da Fossa, em Botafogo.
A potência do designer se espalhava na criação da identidade visual da UNE pré-1964, no cartaz (sua obra-prima) do filme "Deus e o Diabo na Terra do Sol", de Glauber Rocha, e nas capas dos discos de Gil e Caetano, sendo reconhecido como cérebro influente da tropicália (1967-68). Era contrário à ânsia da esquerda de levar Van Gogh para o povo. "Eu entrei [na UNE] e disse: não, o povo precisa de uma arte compatível com a sociedade de massas", lembra. Nesse embalo, idealizou cartazes cruciais para o design nacional.
Diretor de arte da editora Vozes, frequentava as rodas da bossa nova, do cinema novo e do Museu de Arte Moderna. Do artista plástico Hélio Oiticica à urbanista Lota de Macedo Soares, todos o queriam na mesma festa. Com boa pontaria, o dramaturgo Oduvaldo Vianna Filho apelidou-o de Rogério Caos, o que tanto celebrava a anarquia do baiano quanto assinalava sua distância dos militantes bitolados.
Essa euforia criativa se desfez em 4 de abril de 1968, na Candelária. Depois da missa de sétimo dia do estudante Edson Luís, ele e o irmão, Ronaldo, foram sequestrados por militares e torturados ao longo de dez dias, com afogamentos e choques elétricos nas costas, no pescoço, na boca e nas axilas. "Sim, eles queriam que eu os visse e que os negasse para atingirem a condição de Deus", escreveu Duarte em "A Grande Porta do Medo", um relato sobre a tortura, confiado ao psicanalista Hélio Pellegrino.
Em pandarecos, Rogério caiu nas malhas da loucura: foi internado no Pinel, em Engenho de Dentro (RJ), e no Pavilhão Psiquiátrico do Hospital das Clínicas (SP). "Carrego tantos traumas da tortura que até hoje não quero morar no Rio", confessou em setembro de 2014 na Bahia, em meio a um torneio de xadrez, outra de suas paixões.
"Sempre quis bancar um pouco a eminência parda, tanto de Gil como de Glauber. Tenho até hoje uma timidez muito grande de ser o ator da coisa." Fez raras aparições cinematográficas, como em "Câncer", de Glauber, e "O Cinema Falado", de Caetano Veloso. "Não quis me apresentar, fui covarde. A tortura me inibiu mais ainda."
FLORESTA
Integrado ao movimento hare krishna desde os anos 1970, recebeu o nome iniciático de Raghunata das, inspirado num rei da dinastia indiana de Raghu. Dias antes do nosso encontro, ele meditava num sítio na zona rural de Salvador, ao fim de uma estrada barrenta e sombreada por árvores frutíferas. Construiu nele uma casa, a poucos metros de um templo de divindades hindus, e quem o procura durante esses retiros costuma ouvir que "Rogério está na floresta". Com a japamala (rosário de orações) nas mãos e o celular sem sinal.
A tropicália se prolonga nos olhares sobre o itinerário de Rogério Duarte, defensor da tese de que ela representou um movimento geral das artes, recheado de brasilidade. "O que eu falo, basicamente, é que tentou-se reduzir a tropicália a um movimento restrito da música popular brasileira. Não é verdade. A música popular brasileira se beneficiou disso. Mas o movimento da tropicália –o Hélio [Oiticica], o próprio Glauber, tudo o que se fazia na época de cinema – era muito mais. O Guilherme Araújo, um empresário hábil, rouba: 'Vamos faturar isso na mídia da música popular'. E pasteuriza. Aí as histórias todas de que o tropicalismo é de Caetano e Gil, que são só em parte verdade", pondera. "O Hélio e eu tínhamos mais embasamento teórico, com inserção no panorama da cultura mundial."
No jogo de ideias, Duarte funciona como uma esquadrilha de aviões riscando palavras no ar, à espera de que elas se fixem mais em quem as lê do que em sua própria trajetória. Com frequência revisa juízos passados para erguer um novo pensamento.
O calor é enorme. Ele senta-se na cama, os dramas geracionais invadem a memória. "Eu sentia que tinha que escolher. É um mistério que não conseguia entender. O próprio Glauber, no final da vida, cheirando cocaína e morrendo. Hélio morrendo de overdose. E aqueles caras da burguesia carioca que tiravam partido disso e jogavam eles contra Caetano: 'Caetano é um careta, um cara que se deu bem e ficou rico, mas você que é o bambambã'. E o cara entrava."
"Caetano resistiu a isso", reconhece. "Considero Caetano a pessoa que teve a mente mais sólida dessa geração. Aquele cara que teve virtudes firmes, que não se deixou levar por nada. Nunca fumou maconha no meio de mil maconheiros. No meio da maior depravação ele estava ali, na dele. Tinha um modo de vida pessoal. Teve uma missão. Aquilo tinha uma solidez, apesar de um certo narcisismo do Caetano. E também uma fidelidade. Teve um tempo em que eu estava rompido, mas ele nunca me desconsiderou. Nunca tentou subestimar a minha importância no movimento."
Canção sua gravada por Caetano no álbum "Abraçaço", "Gayana" entrou na trilha da novela das seis "Joia Rara", exibida pela Globo entre 2013 e 2014. "Isso é predestinação. Tem Deus e o Diabo, tem novela. Por mais que queiram me cobrir com uma peneira."
Distante do violão em consequência dos problemas de saúde, ele reflete ainda mais sobre o Bhagavad Gita –e a vida, e a morte. "A maior parte do tempo eu penso: 'Estou sofrendo tanto que eu quero morrer'. Mas aí no dia seguinte vejo que não morri. Ainda há uma luta pela vida. Essa ideia de que a vida vale a pena, mesmo que seja pequena, pra parodiar o Fernando Pessoa. A dose que a gente recebe, devemos aproveitá-la, sem fuga pra morte nem pra nada, e sem covardia, sem pedir arrego, sem visão de fé: 'Ah, Deus vai me levar pro céu, vai me salvar'. Não, eu tô aqui, vou olhar até o fundo do poço pra ver onde isso aí vai dar."
A busca de uma síntese marca seus dias. Uma dessas tentativas estava numa frase de um ano atrás, à margem de uma partida de xadrez, ao comentar a celebração tardia de sua obra: "Eu aí digo: bom, nem mel, nem cabaça".
CLAUDIO LEAL, 34, é jornalista.