Folha de S. Paulo


PONTO CRÍTICO

Fotolivro de André Penteado é um marco na fotografia

Já faz alguns anos, a fotografia contemporânea foi dominada por um vale-tudo em que sensações são sugeridas aos montes, situações são despejadas sem explicações e pouco é dito com contundência.

Na tentativa de afastar a fotografia da ideia de que este é o suporte que mais se aproxima do registro da realidade, artistas mergulharam em quebra-cabeças de insinuações, muitas vezes resolvidos apenas em suas próprias cabeças.

No Brasil, essa tendência ganhou força com a geração nascida no fim dos anos 1980. Sem precisar conviver com questões políticas relativas ao contexto do regime militar e em ligação direta com o que vinha sendo produzido fora do país, esses novos fotógrafos desaguaram em temas da vida íntima: a transição entre infância e adolescência, a relação com a perda de familiares ou, algo muito comum, interrogações sobre identidade –sobretudo gêneros e orientações sexuais.

Embora alguns desses trabalhos tenham extrapolado a barreira do umbigo e sintetizado sentimentos particulares de maneira universal, a maioria das obras é inofensiva e parece girar em falso, sem grandes consequências ou sem gerar maiores reflexões.

Já assuntos relacionados a política ou a questões nacionais foram relegados à fotografia documental, quase sempre realizada como um registro cru e jornalístico dos fatos.

Há, no entanto, uma quebra nessa narrativa. Impulsionado pelas manifestações que varreram o país em 2013, o fotógrafo paulistano André Penteado buscou elaborar uma representação que servisse de contraposição à imagem do brasileiro como povo cordial.

Mas, em vez de retratar os protestos recentes, voltou-se para a Cabanagem, revolta popular no século 19 em que índios, negros e mestiços tomaram o poder na então província do Grão-Pará. Ainda assim, "Cabanagem" [Editora Madalena, 208 págs., R$ 150] não é um resgate histórico, mas uma investigação, no Estado do Pará, dos traços da rebelião que permanecem na identidade brasileira: violência, religião e burocracia.

Mesmo que o leitor não saiba sobre o que este fotolivro discorre, a sequência pensada para as imagens leva o olhar a um percurso sombrio, permeado de uma sensação incômoda. Penteado insinua, mas o faz com contundência. Oferece pistas sem fazer jogos ingênuos que não levam a lugar algum.

A obra, dividida em três livros reunidos num envelope de repartição pública, abre com imagens de uma natureza ainda bela, idealizada, mas que aos poucos vai se tornando pesada, até cair em fotografias de santos quebrados, rachaduras de uma Belém desgastada, gavetas de arquivos abandonados e reproduções de jornais que mostram assassinatos –tão brutais que, muitas vezes, é preciso "pixelizar" o corpo do morto por inteiro.

A sequência das imagens, pensada matematicamente, acumula camadas históricas numa espiral que fica se repetindo sobre o mesmo lugar –sem que isso seja entediante, tamanho o fôlego da obra.

Depois de compreender as motivações do trabalho –o livro ainda traz um encarte com texto da historiadora Magda Ricci sobre a Cabanagem–, é possível perceber o país como um lugar onde tudo é improvisado e com algo por fazer.

Se no livro de capa verde, que ancora "Cabanagem", Penteado não mostra nenhum rosto, o livro de capa vermelha é composto somente por retratos. O artista documenta personagens com alguma ligação ou referência à revolta.

Sem que precisem ser literais, tampouco poéticos só para parecer sofisticados, os livros que formam "Cabanagem" chegam a um equilíbrio raro no registro de questões políticas e de identidade nacional.

É curioso lembrar que, antes de lançar esta obra, Penteado ficou conhecido por um ensaio sobre o suicídio de seu pai. Numa combinação entre fotografia e performance, ele vestiu as roupas do genitor e realizou autorretratos. Embora o passo anterior seja interessante, Penteado chega a um outro nível –muito mais elevado. "Cabanagem" é um marco na fotografia brasileira.

DAIGO OLIVA, 30, é editor-adjunto da "Ilustrada" e edita o blog de fotografia da Folha Entretempos.


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