Folha de S. Paulo


Cientista social vê a internet como instrumento de fragmentação

RESUMO Cientista social e jornalista francês defende em livro, após visitar mais de 50 países, 14 deles do mundo árabe, que a internet é uma revolução tecnológica da fragmentação. Ele considera suspeita qualquer visão moral da rede, que vê como uma ferramenta. Em passagem pelo Brasil, criticou a qualidade da internet no país.

Aline Massuca - 14.ago.14/Valor/Folhapress
O cientista social e jornalista Frédéric Martel no Rio de Janeiro em 2014
O cientista social e jornalista Frédéric Martel no Rio de Janeiro em 2014

Frédéric Martel, cientista social e jornalista francês, visitou mais de 50 países na tentativa de compreender os efeitos de uma revolução tecnológica que, na superfície, parece global e comum a todos, mas que em sua avaliação contraintuitiva é essencialmente fragmentada. O que viu está agora registrado em "Smart - O Que Você Não Sabe sobre a Internet" [trad. Clóvis Marques, Civilização Brasileira, 462 págs., R$ 65].

Nessa narrativa contemporânea, o Brasil tem lugar de destaque. Aparece em capítulos sobre cidades inteligentes, "social TV", regulamentação da internet e mobilidade de classes médias. No prefácio à edição nacional, Martel diz que gostaria de ser brasileiro; como não é, deseja dar continuidade à tradição de pensadores de expressão francesa, como Claude Lévi-Strauss e Blaise Cendrars, que dedicaram grande atenção ao país.

Durante passagem por São Paulo no mês passado, período em que se dedicou a apurar seu próximo livro e promover o mais recente, Martel conversou com a Folha no café do hotel em que estava hospedado, sem poupar críticas à falta de regulação no setor nacional de telecomunicações. Após os ataques terroristas em Paris, Martel respondeu a novas perguntas por e-mail sobre o papel das redes para o islamismo radical. Leia abaixo os principais trechos da entrevista.

Folha - Como os grupos islâmicos radicais usam a rede em benefício de suas atividades?

Frédéric Martel - Estive em 14 países árabes para escrever "Smart". Segui o Hizbullah no sul de Beirute e no sul do Líbano, visitei o Hamas e o Jihad Islâmica em Gaza, passei algum tempo com a Irmandade Muçulmana no Egito –mas não trabalhei com o Estado Islâmico na Síria ou no Iraque.

Fiquei surpreso de constatar que todos esses grupos radicais (considerados terroristas pelos Estados Unidos) estão usando a internet basicamente como nós. Algumas de suas contas às vezes são banidas do Facebook, do YouTube ou do Twitter. Presumo que sejam monitoradas pelos EUA ou por Israel. Mas, fora isso, estão postando mensagens e conteúdo como nós, publicando alguns artigos e assim por diante.

A maior diferença é que elas são organizações muito verticais. Não estão realmente interessadas em criar uma "conversa". Aceitam estar nas redes sociais, mas não socializar. Ainda são organizações muito boas "de cima para baixo", mas fazem propaganda, e não comunicação em ambas as direções.

O senhor diria que a internet tem um papel fundamental na estratégia dessas organizações? Como lidar com esse cenário, a partir de uma perspectiva ocidental?

Sem dúvida. A internet é um componente-chave da estratégia deles, tal como dos narcotraficantes no México, por exemplo. Mas ela frequentemente falha, como no Egito, onde a Irmandade Muçulmana foi incapaz de se manter no poder –a internet é muito eficiente quando se trata de oposição, de ser contra algo, mas parece ser mais difícil usá-la habilmente quando você está no poder.

Basicamente, o que os grupos radicais islâmicos mostram é que a internet não é boa ou ruim em si –e tenho suspeitas quanto a qualquer visão moral da rede. Ela é uma ferramenta, como água ou eletricidade, e pode auxiliar no bem ou no mal. Com eletricidade, você pode salvar uma vida no hospital e você pode eletrocutar um condenado à morte. Nos países ocidentais, precisamos entender essa lição: a internet depende do que nós –eu, você, todos– faremos com ela.

Como o senhor vê, de modo geral, as mudanças que foram introduzidas pela rede?

Nós, como jornalistas, frequentemente pensamos que a revolução da internet tem a ver com livros, músicas, cultura, conteúdo. É isso. Mas ela diz respeito a todos os setores. Carros e táxis, com o Uber, hotéis, com Airbnb, educação, saúde, aviões, agricultura. Na Amazônia, vi como trabalham com apps e satélites para fazer de tudo. Essa é uma questão central para nossa vida, nosso futuro. Afeta nossa personalidade, nossas relações sociais –não só nas mídias sociais mas também na vida real–, afeta nosso tempo, o modo como trabalhamos e nos divertimos.

Gostaria de lembrar Alexis de Tocqueville [1805-59], um grande pensador social –você sabe que ele era monarquista, aristocrata, católico, então a revolução para ele não era positiva, mas ele observava os fatos. Em seu livro sobre o Antigo Regime na França ["O Antigo Regime e a Revolução"], ele dizia que os muros estavam caindo por todos os lados, estávamos andando sobre cinzas. Nós sabemos que o mundo em que vivíamos está morto, não podemos voltar atrás, mas ainda temos que construir o novo. Levou quase um século para a Revolução Francesa terminar. Agora, não sabemos o que será daqui a cinco anos, mas sabemos que será diferente.

Por falar em Tocqueville, o senhor reconhece alguma influência do trabalho dele em seu livro, já que também destaca a importância das organizações locais?

Sim. Todo mundo diz que a internet é um fenômeno global, e nós dizemos que é local. Mas é muito mais complexo, obviamente, caso contrário eu seria ingênuo.

O que eu digo é que quando você ouve os CEOs do Facebook, do Google, do Twitter, eles dizem que estamos entrando em uma conversa global: fronteiras não são mais eficientes, línguas são uniformizadas, culturas são uniformizadas, todo mundo estará na mesma rede em diálogo. Eu digo que não é isso que vi em minha pesquisa, de forma alguma. O que vi é algo muito diferente: em todo lugar, fronteiras ainda existem, não no sentido físico, mas há fronteiras simbólicas, em particular as línguas.

O que não significa necessariamente local. Brasileiros nos EUA estão conectados ao país, apesar de estarem lá. Você vai a Miami, eles falam espanhol e são cubanos, mas estão nos EUA, então não é o mesmo local. Em Los Angeles, há um bairro onde a população iraniana vive e que tem o apelido de Teerangeles. Falam farsi, estão conectados ao Irã.Embora distantes, estão ligados pela língua. É por essas razões que, na minha opinião, a palavra-chave da internet não é globalização, é fragmentação. E, de certa forma, a internet é geolocalizada. É muito mais complexo que a oposição global-local.

O senhor não usa internet no singular e com letra maiúscula, sempre preferindo o plural, "internets". Por qual razão?

É importante transformar internet em um nome comum. O plural diz algo sobre diferenças e fragmentação. Apesar de, claro, redes sociais poderem ser iguais em todo lugar, e termos alguns conteúdos globais, não nego isso –o último vídeo da Beyoncé, o fenômeno Psy, o discurso de Obama sobre terrorismo. Mas são parte pequena daquilo que consumimos.

No seu entendimento, haveria então camadas de conteúdo?

Vou além disso. Acho que todo mundo tem sua própria internet. Você cria seu mundo e, apesar de sermos amigos e próximos, somos muito diferentes. Um bom argumento, que menciono na conclusão, é que identidade é um problema quando você resume uma pessoa à sua identidade. Você é brasileiro, eu sou francês. Mas não sou só francês. Um muçulmano talvez seja xiita. Mas também pode ser gay, professor.

Um ponto positivo da internet é como você pode abrir suas diferentes identidades, mais do que na vida real. Conheço muitos jovens do mundo árabe que de alguma forma são prisioneiros de suas identidades porque são xiitas. Estive no Líbano com pessoas xiitas e, por causa de suas famílias, eles eram apenas xiitas, e tudo em suas vidas estava ligado a isso.

Conheci alguns jovens que participaram da chamada revolução em Beirute, que participaram dos protestos recentes, e eles eram xiitas, mas queriam se tornar seculares. Na internet, você pode ser tudo isso muito facilmente, você pode conectar suas diferentes identidades.

O senhor tem quatro mestrados e um doutorado, além de escrever com frequência para a revista "Slate" e de apresentar um programa de rádio. Seria correto dizer que faz ciência social contemporânea aliada a um olhar jornalístico?

Acho que sim. Faço não ficção narrativa, esse é meu jeito de escrever –o que significa bom jornalismo, boas histórias, com ampla contextualização.

Se você for ao meu site, verá que tenho um arquivo de quase cem páginas, com bibliografias, citações, entrevistados. Não está no livro porque acho que ninguém gostaria de ler isso, mas está na rede. Já fiz livros acadêmicos, meu doutorado foi publicado, mas não faço de conta que "Smart" seja um livro acadêmico: você não faz pesquisa em 50 países sem falar as línguas locais. É um livro de não ficção, mas por mim tudo bem.

Como o senhor vê o conflito entre a proteção da privacidade dos usuários e o poder das grandes empresas e Estados?

Frequentemente, temos uma batalha entre os EUA e nós ["us and the US", jogo de palavras na língua inglesa], e não concordo com isso. De algum modo, esse foi um dos problemas do Marco Civil da Internet aqui no Brasil, uma consequência direta do caso Snowden e da espionagem das comunicações de Dilma Rousseff.

Mas o inimigo passou a ser os Estados Unidos. Concordo que cometeram uma série de equívocos. Pode-se dizer que Snowden também cometeu ilegalidades, mas aquelas do governo foram ainda maiores, e é por isso que no fim apoiamos sua causa –eu apoio Snowden, acho que há uma história da internet pré-Snowden e outra depois dele. Mudou tudo. Estávamos numa era dourada da inocência e de repente vimos o fim dessa inocência, em um mundo mais perigoso e complexo.

Que avaliação o senhor faz das discussões do Marco Civil?

Foi interessante ver que o governo e Dilma, àquela época, queriam ser contra os Estados Unidos em temas como regulação, internet. Mas olhe para a situação deste país: a banda larga é extremamente ruim, extremamente cara, mensagens de texto SMS são incrivelmente custosas, muito mais do que na França, por exemplo, apesar de as pessoas lá terem muito mais dinheiro do que aqui.

Além disso, internet 3G –apesar de estarmos em uma cidade com tecnologia 4G– continua sendo difícil de acessar, ao menos a um preço aceitável. São questões de regulação, e os EUA não têm nada a ver com isso. Cabe ao governo brasileiro a decisão nesse campo, e é muito fácil tomá-la.

O governo francês decidiu criar uma licença para uma quarta empresa telefônica operar no país, e por essa razão a internet e os serviços telefônicos ficaram muito mais baratos. Telecomunicações são nacionais no mundo todo. Na União Europeia, decidiu-se que mensagens de texto devem ser grátis entre países, e o roaming está sendo destruído. Roaming é muito caro no Brasil, é preciso regular isso. O Marco Civil foi uma boa ideia, mas é preciso que sejam feitas coisas aqui, para seu povo, em vez de ficar pensando que todos os erros e problemas vêm dos americanos.

RODRIGO RUSSO, 29, é jornalista da Folha.


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