Folha de S. Paulo


A inteligência das plantas

A ideia de que os seres humanos são as únicas criaturas inteligentes da Terra é um preconceito que vem de longe. Se a inteligência se define com base em nossas características comportamentais, incluindo a capacidade de falar ou de pensar com a ajuda de conceitos abstratos, é inevitável prever a excepcionalidade humana, e essa previsão se concretiza pelo próprio fato de ter sido feita. Partindo de nós mesmos (mas quem somos "nós mesmos"? O humano não é sempre específico em termos culturais e de gênero?), usando a nós mesmos como o padrão de medida para avaliar tudo o que importa, encontramos apenas aquilo que escondemos no início dessa caça ao tesouro, cujo resultado é predeterminado antes mesmo de ela ter tido a chance de começar. O Homo sapiens parece ser a sede exclusiva da sapiência, que já foi incluída no próprio nome de nossa espécie.

Para os cientistas, porém, a superioridade da inteligência humana, comparada à de outros primatas, é mera hipótese a ser testada e subsequentemente verificada ou refutada. Foi o que Esther Herrmann, do Instituto Max Planck de Antropologia Evolutiva, em Leipzig, e seus colegas se propuseram a fazer, avaliando e comparando o "raciocínio geral" e as "habilidades socio-cognitivas" de humanos, chimpanzés e orangotangos. Suas conclusões, publicadas na revista "Science", podem causar espanto. Chimpanzés e crianças pequenas tiveram resultados muito semelhantes em determinadas medidas dos testes de QI (Quociente de Inteligência), incluindo as habilidades espaciais e quantitativas. Mas tanto orangotangos quanto chimpanzés tiveram resultados fracos, comparados aos dos humanos, nas habilidades relacionadas a "lidar com o mundo social".

É evidente que muita coisa depende de como interpretamos "habilidade social" e o que enxergamos como sendo habilidades sociais: aprender com outros, cooperação na busca de solução de problemas ou outros fenômenos. O que é crucial, a meu ver, é que os humanos não somos superiores a determinados animais não humanos, mesmo dentro dos limites de um conceito verdadeiramente antropocêntrico de raciocínio geral. Assim, existem bases culturais e científicas para uma concepção de inteligência que abranja mais que uma espécie e para sua medição correspondente em testes de QI redesenhados.

Vinicio Carvalho
Árvores de bosque em Presidente Prudente (SP) que foram derrubadas para construção de condomínio; a foto venceu concurso de site da National Geographic
Árvores de bosque em Presidente Prudente (SP) que foram derrubadas para construção de condomínio; a foto venceu concurso de site da National Geographic

Quer seja reconhecido ou não, o verdadeiro pomo de discórdia é o significado de inteligência, e é aqui que filósofos podem ingressar na discussão que já atraiu biólogos evolutivos, antropólogos e cientistas cognitivos. Se procuramos adotar o ponto de vista do universal, ultrapassando definitivamente o contexto e as realidades limitados do Homo sapiens, vamos nos dar conta em pouco tempo que aquilo ao qual chamamos inteligência é um elemento da própria vida, ou, mais precisamente, das trocas multifacetadas que ocorrem entre um organismo e seu ambiente.

Essas interações são tão vitais que autores como Aldo Leopold e Gregory Bateson insistem em fazer do organismo-ambiente relacional inteiro a unidade básica de inteligência. Uma revisão drástica do conceito, seguindo as linhas sugeridas por Leopold e Bateson, nos levaria a admitir sob sua égide não apenas os primatas não humanos, mas também outros animais, plantas, fungos e organismos unicelulares.

Em meu livro "Plant-Thinking: A Philosophy of Vegetable Life" (pensamento de plantas: uma filosofia da vida vegetal), chamei a atenção para algumas semelhanças formais entre os mecanismos usados por plantas, animais e humanos em sua interação com o meio ambiente. Como eu escrevi nesse texto: "A sensibilidade das raízes que procuram a umidade no escuro do solo, as antenas de um caracol que sondam o que vem em seu caminho e as ideias ou representações humanas que projetamos à nossa frente não são tão dessemelhantes quanto tendemos a pensar". Dentro do esquema da sobrevivência, cada um desses "artefatos" funciona como maneira para se chegar à meta de obter do mundo externo os recursos necessários à vida e de evitar (ou proteger um organismo contra) os perigos que ali estão à sua espreita.

Talvez possamos argumentar que o caráter excepcional da inteligência humana consiste na possibilidade de perguntar "por quê?" e "para quê?", em lugar de "como?". Mas o questionamento e o pensamento sobre as finalidades, glorificados na filosofia grega antiga, estão especialmente fora de moda hoje, numa era que se rendeu aos valores da eficiência e produtividade. Se é que ela chega a ocorrer, a contemplação das razões de alguma coisa –do porquê de ela ser como é– se dá não quando as coisas funcionam bem, mas, pelo contrário, quando um erro de funcionamento se manifesta nos meios que estamos acostumados a usar para alcançar nossas metas. Assim, o suposto elemento que assinala a excepcionalidade humana é um sintoma certeiro de não adaptação, a incongruidade entre nós e nosso meio, a falta de sintonia entre o ambiente e nós.

O paradoxo de nossa inteligência se delineia nitidamente aqui. Uma das espécies mais bem-sucedidas do planeta, que se alastrou sobre toda a superfície da Terra, o Homo sapiens ameaça destruir seu próprio sistema de apoio à vida e os de outras espécies. Nosso sucesso evolutivo é um fracasso espetacular; nossa maravilhosa capacidade de adaptação, que molda virtualmente qualquer ambiente para adequar-se às nossas necessidades, é, ao mesmo tempo, uma catastrófica não adaptação aos ecossistemas finitos e frágeis que nos esforçamos para dominar e controlar. Como medir essa inteligência estranha que é indistinguível da estupidez? Com a ajuda de que testes de QI?

Procurar exemplos de inteligência em mundos extraterrestres ou em sistemas artificiais criados pelo homem é outro sinal indicativo de estupidez inteligente, que passa por cima da sabedoria incorporada às formas de vida não humanas. Para reverter milênios desse descaso no Ocidente, a única coisa que resolveria seria criar uma medida de inteligência adequada a várias espécies e reinos –poderíamos chamá-la de Quociente de Inteligência biológica geral (QI-bg)– que avaliaria o grau de êxito com que participantes tão diversos quanto um carvalho, um camundongo ou um humano se adaptam a seus respectivos ambientes, colaboram com outros, resolvem problemas e assim por diante.

É desnecessário dizer que não poderíamos entregar um questionário a um carvalho ou um camundongo para que o completassem, mas isso tampouco é possível com uma criança de três anos. Nossas faculdades interpretativas teriam que operar intensivamente para realizar um exercício de QI-bg. Além disso, a resolução de problemas, a colaboração e a adaptação teriam que ser indexadas aos ambientes e necessidades apropriados de cada tipo de organismo, quer fosse um labirinto subterrâneo de umidade e recursos minerais, no caso de uma árvore, ou uma rede complexa de interações sociais que trazem a promessa de reforço positivo, no caso de uma criança humana. Muitas das circunstâncias serão completamente dessemelhantes, mas pouco a pouco emergirão (graças a nosso poder de generalização e abstração, admitimos) elementos comuns para formar um conceito de inteligência menos enviesado em favor de uma só espécie.

Supondo que um teste de QI-bg possa ser feito, com a multidão de imperfeições que inevitavelmente afetarão esse projeto, é provável que os pesquisadores descubram áreas de sobreposição dentro de cada espécie participante, além de variações internas a ela. Nem todos os carvalhos serão igualmente inteligentes, nem todos os camundongos terão inteligência uniforme, nem todos os humanos serão iguais quando se trata de seu QI. Podemos conceber que haverá alguns carvalhos mais inteligentes que alguns camundongos ou certos camundongos mais inteligentes que certos humanos. A aceitação desse resultado seria um sinal de humildade e inteligência de nossa parte.

MICHAEL MARDER é professor pesquisador Ikerbasque de filosofia na Universidade do País Basco (UPV-EHU), em Vitoria-Gasteiz, Espanha. Entre suas monografias mais recentes estão "The Philosopher's Plant: An Intellectual Herbarium" (2014), "Pyropolitics: When the World Is Ablaze" (2015) e "Dust" (2016). Ele está concluindo um livro co-escrito com Luce Irigaray e intitulado "Through Vegetal Being".

Tradução de CLARA ALLAIN


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