Folha de S. Paulo


O triunfo de Marília Pêra

São Paulo, 1996

Entre as paixões que me escolheram, o teatro chegou cedo. Com nove anos de idade, levado por meus pais, fui assistir à memorável montagem de "A Comédia dos Erros", de William Shakespeare, do Teatro do Ornitorrinco, dirigida por Cacá Rosset. Foi o bastante: daquele instante em diante soube que seria para sempre –eu não estava enganado.

Tendo sido uma criança com interesses específicos e memória enciclopédica, passei a me interessar profundamente por teatro e a estudar tudo que me fosse possível a respeito: comecei a ler Nelson Rodrigues e Plínio Marcos (em livros emprestados por meu saudoso amigo Jônatas), ler guias de programação para me inteirar de todas as peças em cartaz, decorar a lotação de cada teatro da cidade – lembro a maioria das capacidades de cor até hoje, por mais estranho que isso pareça.

Arquivo pessoal
Página de caderno escolar em que o autor, ainda criança, esboçava suas primeiras peças de teatro e onde figura o autógrafo de Marília Pêra
Página de caderno escolar em que o autor, ainda criança, esboçava suas primeiras peças de teatro e onde figura o autógrafo de Marília Pêra

Meu interesse se estendia, é claro, a assistir a todas as peças em cartaz que houvessem sido recomendadas pela crítica (e fica aqui meu obrigado aos meus pais, que compraram essa briga e me levavam ao que eu escolhesse, com toda a generosidade que se pode ter).

Não contente em frequentar a cena teatral, às vezes assistindo a dois espetáculos numa semana, criei também o hábito de ir aos camarins para pedir autógrafos (hábito este tão nostalgicamente anacrônico de uma era pré-selfie) e ver de perto os atores, autores e diretores que admirava.

Assim conheci Chico Anysio, Marisa Orth, Jorge Dória, Mauro Rasi, Vera Holtz e outros tantos, munido do destemor de quem ainda não tinha chegado à adolescência e endossado pelos olhares de encantamento que uma criança pode despertar em um ambiente em que não é muito esperada –imagino que uma ternura semelhante à que se sente quando se está diante de um cão adestrado.

Foi numa dessas incursões que conheci Marília Pêra.

Era um domingo, logo após a apresentação de "Master Class", de Terrence McNally, peça que lotava os 1.156 lugares da sala Esther Mesquita do teatro Cultura Artística. Nela, Marília oferecia uma interpretação absolutamente fascinante de outra grande diva, Maria Callas, e aquilo teve um impacto de mil taquicardias para uma sensibilidade teatral que apenas começava a se construir.

Lembro-me bem da gentileza com que me recebeu e da sinceridade com que sorriu ao perceber meu fascínio diante de sua figura. Ficou surpresa quando ouviu de minha boca o nome de Zoe Caldwell, a intérprete de Maria Callas na montagem da Broadway: um dos meus truques de cão adestrado causara sensação.

Minha lembrança mais viva, contudo, tem a ver com a suavidade firme do seu gestual e com a vivacidade do seu olhar, que se adensou quando soube meu nome, que logo associou ao nome de Vinicius de Moraes.

"Vinicius: um poeta?" dizia o início da dedicatória, que guardo até hoje. A associação tinha a ver não apenas com o meu homônimo célebre mas também com a revelação que eu lhe fizera de que gostava de escrever peças teatrais, pedindo-lhe que autografasse justamente a primeira página do primeiro texto que eu escrevi num caderno escolar de capa dura.

Há algo de curioso nesse tipo de encontro: para um artista célebre como Marília, que foi, e é, amplamente amada e admirada por décadas ininterruptas, são encontros breves que acontecem o tempo todo, e que, salvo raras exceções, são rapidamente esquecidos.

Para mim, diante de uma atriz cujo tamanho eu nem era capaz de absorver por completo, o encontro teve um poder norteador. Foi como um amuleto, um aval para que eu me arriscasse a sonhar pertencer ao mesmo universo no qual ela figurava como lenda –sensação que me acompanhou durante todos esses anos.

Depois daquele dia, nunca mais encontrei Marília pessoalmente. Com o tempo, passei a ter vergonha de ir cumprimentar os atores após espetáculos, em grande parte por achar que eu só gostaria de conhecer aqueles que admirava quando eu pudesse também ser admirado por eles. Fundei minha própria companhia de teatro, tornei-me dramaturgo e diretor, e sonhava, já que isso não custa nada, um dia poder reencontrar Marília Pêra em algum trabalho.

Ao saber de sua morte, há pouco mais de uma semana, aquele encontro em 1996 ganhou um peso definitivo, à medida que se cristalizava a certeza de que não haveria outro. Aquela Marília dulcíssima e gentil que eu conheci no camarim do Cultura Artística, que me desejou "sucesso e sorte" numa dedicatória que sempre tomei como uma espécie de bênção, está tão viva no pensamento que a sensação é de poder encontrá-la a qualquer momento, em algum outro camarim ou em um café, por acaso.

Alguém que parte, mas permanece impresso dentro dos corações e mentes de milhões de pessoas: aí está alguém que triunfou sobre a morte.

VINICIUS CALDERONI, 30, é cineasta, músico e dramaturgo. A peça "Arrã", escrita e dirigida por ele, fica em cartaz até 18/12 na Sala Crisantempo, em São Paulo.


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