Folha de S. Paulo


PONTO CRÍTICO

"Chatô", de Guilherme Fontes, não está pronto e não é bom

Woody Allen disse certa vez que só o ato de aparecer, de mostrar a cara, já representa 80% do sucesso na vida. A máxima parece explicar a condescendência com que a crítica brasileira vem tratando o filme "Chatô".

Após duas décadas de suspense, suspeitas e disputas, o longa de Guilherme Fontes finalmente ficou pronto. Apareceu. Logo deve ser bom. Eis o tom das resenhas.

O fato de o diretor ter aproveitado os últimos anos para alimentar a aura de gênio incompreendido, às voltas com uma obra-prima que na visão dele nunca estaria perfeita, ajudou. Segundo essa versão, ele seria o nosso Orson Welles, e "Chatô", o seu "Cidadão Kane".

Reprodução
Marco Ricca em cena do filme
Marco Ricca em cena do filme "Chatô"

Pois "Chatô" não está pronto e não é bom.

Passada a falsa impressão dada pela produção luxuosa e bem cuidada nos minutos iniciais, o que se verá ali será um amontoado de cenas desconexas e desestruturadas, num roteiro que não roteiriza nem tem autoria propriamente dita, assinado que é por João Emanuel Carneiro, o próprio Guilherme Fontes e uma impessoal "Zoetrope" –a produtora de Francis Ford Coppola.

Pode-se argumentar que o que aparece na tela é fruto dos delírios do personagem principal quando doente, daí a incoerência. Que o jorro de imagens é o diretor sendo tropicalista, é o cinema antropofágico, é a exuberância narrativa do Zé Celso transportada para as telas.

De fato, o empresário de comunicação Assis Chateaubriand (1892-1968), o Chatô, era folclórico e sofreu um acidente vascular nos anos 60, passando seus últimos anos sob cuidados médicos, como conta a ótima biografia "Chatô, o Rei do Brasil", de Fernando Morais, na qual o longa se baseia.

Mas a justificativa não se sustenta. O que passa por "tropicalismo" ou "antropofagia" é eufemismo para malfeito, histriônico, simplório. Fica claro para o espectador mais atento –ou com menos inclinação para gostar a qualquer custo do que está vendo– que o filme nunca foi concluído de verdade e que os editores tentaram dar nexo ao material filmado na conturbada produção.

Há saltos cronológicos inexplicados e liberdades factuais incômodas. Não se espera que um filme de ficção tenha pudores de documentário. Uma das grandes cinebiografias de Hollywood, "Amadeus" (1984), de Milos Forman, é pródiga em invenção –cerne do filme, a inimizade entre Mozart e Salieri nunca passou de rumor, por exemplo. Mas "Chatô" extrapola.

Entre as várias "licenças poéticas" que toma está um Getúlio Vargas mulherengo, o que nenhuma biografia séria confirma, e um jornalista fictício, Rosemberg, que condensa duas figuras imiscíveis, os jornalistas Samuel Wainer e Carlos Lacerda. Seria como criar um personagem que fosse de uma só vez Mozart e Salieri, para ficar em "Amadeus".

Outro fator que pode ter influenciado as avaliações positivas é o fantasma de Francis Ford Coppola. A participação nunca muito bem explicada do diretor da trilogia "O Poderoso Chefão" e de "Apocalipse Now" seria garantia de qualidade cinematográfica.

Sobre isso, vale ler o que diz a mulher de Coppola em seu livro de memórias, "Notes on a Life", publicado em 2008. Eleanor descreve a viagem do casal ao Brasil em 1998 a convite de Fontes em tom ácido e com algum ressentimento, talvez pelo encantamento de seu marido por uma brasileira.

A certa altura, escreve: "Eles [Guilherme Fontes e seus irmãos] planejam produzir um filme brilhante, com Francis Ford Coppola na direção e Al Pacino estrelando. (...) Esperam se tornar uma parte deslumbrante da cena do cinema internacional. Eles nunca fizeram um filme antes. (...) Posso dizer que os quatro irmãos, na verdade, não estão ouvindo o que Francis está dizendo".

E o que Francis dizia? "Que estava escrevendo um projeto próprio e não estava disponível. ("¦) Ele falou que estava lá para desejar-lhes boa sorte e encorajá-los a desenvolver o cinema brasileiro." O cineasta teria ainda recomendado, segundo Eleanor: "Não façam um filme caro. Façam uma porção de filmes menores e se deem mais chances de ter sucesso".

Guilherme Fontes não ouviu Coppola. "Chatô" é a prova.

SÉRGIO DÁVILA, 49, é editor-executivo da Folha e autor dos livros "Nova York - Antes e Depois do Atentado" (Geração) e "Diário de Bagdá - A Guerra do Iraque Segundo os Bombardeados" (DBA).


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