Folha de S. Paulo


Mary-Louise Parker escreve aos homens, com desejo e arrependimento

Mary-Louise Parker, atriz luminosa e de olhos brilhantes, faz sua estreia literária com o equivalente a um "one-woman show" (apresentação de uma mulher só). Ainda que "Dear Mr. You" (querido sr. você) trate teoricamente de homens, não há questão de quem fica de fato com o papel principal. O livro é organizado de forma encantadora, como um conjunto de cartas aos homens que foram importantes na vida da autora, muitos dos quais vivos apenas em sua memória ou imaginação. Mas a narradora dispõe de maneiras infinitas de se sobrepor a eles, e por que não o faria? Eles existem em "Dear Mr. You" só para definir quem é Mary-Louise Parker e como ela se tornou essa pessoa.

O livro é escrito em uma voz inteligente, sedutora, inextricavelmente ligada às qualidades que Parker irradia como atriz. Nela há tanto de dureza quanto de charme brincalhão. O flerte e a provocação são parte importante de seu arsenal. O mesmo vale para a honesta introspecção que confere a este fino livro peso muito maior do que se poderia esperar.

"Dear Mr. You" não é um livro de memórias. Mostra profunda intimidade sem citar nomes. Se você deseja saber por que Parker jamais menciona o pai aparentemente ausente de seu filho, leia um site de fofocas. Mas se deseja saber como ela se sente sobre os homens enquanto pais, o livro oferece a resposta. Em uma das cartas mais notáveis, "caro homem do futuro que ama minha filha", ela afirma, na voz que confere ao livro uma espinha dorsal tão rija, que "se ela lhe deu filhos, recorde a cada dia a segunda, terceira, quarta e quinta palavras desta sentença".

E quando ela escreve sobre seu pai, morto em 2010, fica claro que ainda o reverencia como o principal homem de sua vida. "É a sua família, a que estou dirigindo", ela diz sobre si mesma e seu filho e filha. "Não mereço outro crédito que não o de referenciar você quando faço algo de bom e o de continuar caminhando mesmo nos momentos em que perco o ânimo".

Mas nem mesmo os laços familiares conseguem excluir o calor erótico do autorretrato de Parker. A carta intitulada "caro vovô" descreve o trabalho de seu avô em uma mina e as preocupações dele sobre o serviço militar do filho único (o pai de Parker) nas Filipinas, perto do final da Segunda Guerra Mundial. Mas em seguida vem "dentro de 43 anos, sua neta será vista pegando carona na beira de uma estrada perto de San Francisco. Ela estará em companhia de dois rapazes que a encorajarão a erguer a saia e parecer o mais convidativa que puder, na pista de acesso". E Parker com certeza é de parar o trânsito. O fato de que o trio carregasse um cartaz dizendo "Marin, por favor, nós lemos Sartre", com certeza ajuda.

Qual é a melhor parte do cartaz? A insana polidez do "por favor"? A presunçosa menção a Sartre? O destino previsível da jornada? Esse tipo de detalhe cintila ao longo das páginas de memórias epistolares. O tom do livro é corajoso e calidamente conspiratório, o que em nada prejudica uma pessoa já muito conhecida e profissionalmente adorável, no que tange a atrair leitores. Que o livro de Parker seja tão seriamente bom parece quase um exagero.

Mas o livro é mesmo bom. A despeito dos perigos de um formato repetitivo (ou seja, Parker pensando sobre um dado homem), "Dear Mr. You" tem alcance notável. Parker se referiu a essas cartas como bilhetes de agradecimento. Mas também são pedidos de desculpas, e descrevem muitas formas de paixão sentida e de lições aprendidas.

"Dear Blue", uma das cartas que mais atrai a atenção, fala da jovem senhorita Parker embalando kelp e espirulina em uma cooperativa de alimentação em Malibu, Califórnia, em meio a um onírico (apenas) envolvimento com um Adônis surfista de sunga ("um cachorro seria capaz de carregar sua roupa toda com uma mordida só"). O momento parece ser um dos mais ensolarados e tranquilos da vida da autora. Uma das pungentes digressões de Parker fala em "jogar um bloco de queijo Gouda para cima a fim de descobrir se as pás do ventilador o devolverão fatiado". Outra a apanha em companhia de uma amiga dançando sobre as máquinas de uma lavanderia self-service, "com certa dose de exibição amena do corpo aos transeuntes, nos dias em que tivéssemos tomado umas cervejas". Um cachorro prestativo ajudava ao latir para avisar que homens sem roupa suja estavam entrando na loja.

Mas Blue, o surfista da sunga, percebeu a tristeza de Parker. Quando um dos amigos dele a cantou e ela disse sim porque não conseguia dizer não, Blue não se deixou perturbar. Mas aparentemente optou por deixá-la para trás. Muitos dos homens do livro fizeram o mesmo, mas ela escreve sobre eles em geral com a sabedoria da experiência, e não com raiva. E ao contrário da maioria de nós, Parker encontrou uma maneira de articular as despedidas que jamais proferiu no momento necessário.

"Caro professor de movimento" é mais uma carta que revisita um momento de embaraço e desajeito. Ela conta sobre um professor que não a suportava, de jeito algum, por motivos que ele era capaz de definir claramente; "Ela faz perguntas inapropriadas e perturba a aula". "Ela parece sempre desatenta e entediada". "Sua falta de energia física é alarmante". "Seu uso da sexualidade é ofensivo". Parker decidiu que ele talvez tivesse razão, e optou por mudar. Para provar sua determinação, apareceu para a aula com um collant sem decote nas costas.

As cartas que certamente atrairão mais atenção são as mais fantasiosas e pungentes do livro. A primeira é "caro Cérbero", um texto onírico em que três maus namorados assumem a forma do cão de três cabeças que guarda o Hades. Isso em nada reduz a credibilidade deles, ou a da heroína, que surge em cena com saiote de balé. "Ela era sonhadora, divertida, e ainda trazia um pouco da gordurinha da infância, e uma boca amuada", escreve Parker, uma vez mais atraindo muito mais interesse que todos os cachorros que cercam seu alter ego. "Flutuando pelo East Village, ela era uma musa esperando por acontecer".

E "caro apanhador de ostras", sobre a morte de seu pai, é boa e honesta o bastante para causar lágrimas. A ideia do apanhador de ostras é o caminho convoluto que ela encontra para falar da última refeição de seu pai, e de seus momentos finais, e de sua morte - mas também sobre o conforto que Parker encontra na energia masculina, qualquer que seja a forma que tome. Ela não se envergonha disso. Sua força é muito clara, mas a carência que sente quando se aproxima dos homens é um dos refrães constantes do livro.

Ao passar por um bombeiro coberto de cinzas no 11 de setembro, ela corre para abraçá-lo. Ama o sujeito que a jogou na cama certa vez ("caro Popeye"), e o homem que lhe causou uma cicatriz por queimadura ("caro ex-namorado"), e o mesmo vale para o ou a detentora do apelido "cara senhora menina". E quando ela pensa sobre o astro do rock, aparentemente bem fácil de identificar, que cultuava na adolescência –falando sobre a solidão de uma cidade pequena, sobre o som de uma gaita melancólica, sobre portas batidas com estrondo, corridas em meio aos becos, parques de diversão abandonados, camiseta branca e jaqueta de couro–, não é como uma simples adolescente obcecada. Ao ouvir a música dele, ela visualiza "alguém tão solitário quanto eu, precisando ser beijado e importunado da maneira certa", escreve Parker, com erotismo a plena carga. "E eu sei fazer isso tudo, foi o que pensei".

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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