RESUMO Nome maiúsculo das letras hispânicas, o poeta Federico García Lorca foi fuzilado em 1936 na Guerra Civil Espanhola, e seus restos mortais nunca foram localizados. Após três tentativas infrutíferas, uma quarta pode ter início em breve, em meio a debates políticos e à oposição da família do poeta, que vê o esforço como mórbido.
Foto Eduardo Knapp/Folhapress | ||
Morto em 1936 e engolido pela terra seca dos entornos de Granada, o poeta espanhol Federico García Lorca ainda dorme em um leito sem endereço. Quase 80 anos depois de fuzilado, seu corpo permanece –como o de outras milhares de pessoas na Espanha– desaparecido.
As buscas, entretanto, podem ser retomadas nas próximas semanas. Se isso ocorrer, como se prevê, será a quarta etapa de investigações desde 2009. Segundo os pesquisadores à frente da escavação, há chances reais de que finalmente encontrem a ossada do poeta, a vítima mais célebre da Guerra Civil Espanhola (1936-39). A descoberta pode adquirir significado simbólico, enquanto no país ainda se discute a transição democrática dos anos 1970.
O historiador Miguel Caballero, responsável pela empreitada, acredita que Lorca tenha sido enterrado em uma superfície plana diante do penhasco do Colorado, cenário visitado pela "Ilustríssima" no mês passado. A estrutura calcária domina a paisagem cinzenta de Alfacar, cidadezinha na região de Granada, no sul da Espanha. Em dias de céu limpo, a rocha pode ser vista de Fuente Vaqueros, onde o poeta nasceu em 1898.
Caballero identificou o penhasco do Colorado como cenário do sepultamento de Lorca a partir de uma série de evidências. Após testes com um radar geológico, ele isolou com estacas de madeira fincadas no solo uma área retangular com cerca de 160 m² onde, acredita, encontrará os ossos.
O palco dessa que pode ser uma relevante descoberta para a história da poesia espanhola tem, em si, pouco de poético. A encosta que desce naturalmente do penhasco é interrompida por uma massa de terra revirada –justamente a superfície plana onde Caballero quer buscar Lorca. O terreno, onde paira o cheiro de esterco, foi alterado no final dos anos 1990, quando a administração local decidiu construir ali um campinho de futebol. As obras foram interrompidas à época, após a indignação de quem defendia que fuzilados da Guerra Civil poderiam estar enterrados na região. A massa de solo empilhada será um obstáculo para o trabalho de Caballero.
A hipótese do historiador, ainda a ser provada, contraria os estudos do pesquisador irlandês Ian Gibson, autor de obras de referência sobre Lorca. Gibson acredita que o poeta está enterrado em outra parte de Alfacar, em uma paisagem identificada por uma oliveira, um penhasco e um barranco. Foi ali que investigadores buscaram durante 47 dias, sem sucesso, a ossada do poeta em 2009. As duas etapas seguintes das escavações foram realizadas em 2013 e 2014 já no penhasco do Colorado.
A discrepância entre as teorias está nas fontes. Gibson segue há décadas as pistas de Manuel Castilla Blanco, conhecido como Manolo, o Comunista. Manolo apontou em três ocasiões distintas para o mesmo lugar, dizendo ter ele próprio enterrado, ali, o corpo de Lorca. Em 1955, ele levou até esse endereço o pesquisador Agustín Penón. Em 1966 e 1978, mostrou o mesmo cenário para Gibson.
Caballero, por outro lado, baseia as buscas atuais no relato de outro personagem: Fernando Nestares, filho do capitão José María Nestares, que na época em que Lorca foi morto era responsável pela região. Fernando afirma que, nos anos 1970, os próprios assassinos de Lorca lhe mostraram o local do sepultamento do poeta, a área diante do penhasco do Colorado.
Caballero teve acesso a Fernando e diz ter comprovado essa versão por meio de expedientes militares. A tese se apoia também nas investigações de Eduardo Molina Fajardo, autor de uma influente investigação sobre o episódio, e em centenas de fotografias do início do século 20, que lhe permitiram delimitar um local para escavar.
ANOMALIAS
Caballero acredita que, uma vez iniciadas as escavações, ele saberá em poucos dias se a sua hipótese está correta ou não. Em 2013 e 2014 ele investigou os arredores, durante as primeiras etapas da busca, e detectou três anomalias geológicas no terreno –que podem coincidir com as fossas onde supostamente foram enterrados Lorca e as outras pessoas que foram mortas no mesmo local em 19 de agosto de 1936.
Mas o investigador precisa esperar que o governo regional aprove as buscas. O processo, diz ele, por ora segue moroso, coincidindo com a crítica generalizada de que as autoridades espanholas não demonstram interesse pelo caso nem oferecem um marco legal satisfatório para as equipes privadas empenhadas nessa tarefa. Procurada pela reportagem, a administração não respondeu aos pedidos por informações.
"Não há vontade política", diz Caballero, "apesar de todos os políticos citarem Lorca em seus discursos". As buscas receberam dos cofres públicos o equivalente a R$ 40 mil em 2013 e R$ 60 mil em 2014. "As sobras do orçamento", nas palavras do investigador.
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Para a etapa deste ano, ele decidiu arrecadar verba via "crowdfunding". Conseguiu reunir o equivalente a R$ 135 mil em doações para pagar uma equipe de 18 pessoas e o equipamento necessário para as escavações.
Federico García Lorca, poeta multifacetado –que também desenhava e tocava piano–, é um dos escritores espanhóis mais conhecidos fora do país. Nasceu em uma família influente no interior espanhol e teve uma infância marcada pela experiência no campo, um elemento recorrente em sua obra. Jovem talento, o poeta conviveu com outros artistas de vanguarda, como o pintor Salvador Dalí e o cineasta Luís Buñuel. Em pouco tempo, Lorca passou a ser um dos representantes mais célebres da chamada Geração de 27.
Entre os pontos altos de sua curta carreira –ele morreu aos 38 anos– está o célebre "Poeta em Nova York", resultado de uma viagem aos Estados Unidos. Outros de seus trabalhos incluem a coletânea de poemas "Romancero Gitano" e a peça teatral "A Casa de Bernarda Alba".
Lorca foi morto durante os primeiros meses da Guerra Civil, disputada entre a facção republicana, que defendia o governo democrático então vigente, e a nacionalista, que encaminhava um golpe de Estado. Perseguido e capturado em Granada em 1936, Lorca foi levado até uma estrada entre Víznar e Alfacar, onde foi fuzilado pelas forças nacionalistas, que defendiam nessa região uma posição estratégica, em parte justificada pela presença de uma fábrica de pólvora nos arredores.
Os eventos daquele ano seriam fundamentais para a história da Espanha, com consequências ainda presentes na sociedade. As forças nacionalistas eram lideradas pelo general Francisco Franco, que, desde aqueles anos até a sua morte, em 1975, governou a Espanha por meio de uma ditadura sufocante e sombria.
As circunstâncias exatas da morte de Lorca são controversas. Não há consenso sobre a razão pela qual ele foi fuzilado. Há versões que insistem em que ele foi assassinado devido a suas posições políticas à esquerda. Outros ressaltam sua homossexualidade, num contexto marcado pela homofobia –correm versões de que teria sofrido um disparo no ânus.
Há ainda linhas de interpretação que destacam disputas familiares na região de Granada, que teriam levado à morte de Lorca –não por política ou homofobia, mas por acerto de contas. Essa tese é defendida, por exemplo, por Caballero, mas contestada pela própria família do poeta.
BÁLSAMO
Assim como outros investigadores que trabalham sobre Lorca, Caballero acredita que as buscas são essenciais para colocar um fim à miríade de interpretações sobre a morte do poeta. "Há muitas pessoas que estão ansiosas para saber onde está Lorca, e temos que encontrá-lo para evitar tanta elucubração", diz. "Vai ser um bálsamo para a sociedade. Lorca é o morto mais importante da Guerra Civil."
O fato de que tanto se estude a morte do poeta e a recorrência das buscas desde 2009 não são acidentais. Para o antropólogo espanhol Francisco Ferrandíz, que escreve sobre a "autópsia social", "as exumações se tornaram um fenômeno de direitos humanos".
Ferrandíz é pesquisador no Csic (Conselho Superior de Investigações Científicas), o principal órgão público de pesquisa na Espanha. "As exumações estão acontecendo em todo o mundo. É uma volta à violência crua, aos ossos."
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Ferrandíz fala em uma "guinada forense" no campo dos direitos humanos, com o maior apuro científico, por exemplo, das buscas por ossadas nas últimas décadas. A evolução desses estudos, afirma, está relacionada à escavação dos restos do nazista Josef Mengele no Brasil, em 1985, e com a formação de influentes equipes argentinas de antropologia forense. "Tornou-se uma linguagem poderosa para denunciar barbáries."
Na Espanha, o fenômeno se inscreve num contexto polêmico: o modelo de transição adotado após a morte de Franco, em 1975, contestado pelas novas gerações. É uma situação semelhante à que se tem no Brasil nos debates em torno da Comissão Nacional da Verdade, com contestações à anistia de pessoas ligadas à ditadura militar. "A transição foi liderada pelos filhos da Guerra Civil. Mas, para os netos, ela é insatisfatória, porque houve um falso final", diz. "Instalou-se um regime de impunidade em que os corpos dos mortos não foram recuperados", avalia Ferrandíz
FAMÍLIA
No caso de Lorca, e para a surpresa dos investigadores, a própria família do poeta se opõe à busca pela ossada. A reportagem da "Ilustríssima" visitou Laura García, sobrinha do escritor e presidente da Fundação García Lorca, em seu escritório em Madri. Ali, García reforçou a posição –mantida desde as primeiras investigações, em 2009– de que os parentes de Lorca preferem não saber como ele morreu e onde foi enterrado.
"O fato de que Lorca seja mais uma entre tantas outras vítimas é importante. Eles estão igualados, e a presença dele na fossa é uma maneira de recordar os demais", diz. "As buscas pelos ossos dele acarretam morbidez, exibicionismo e interesses." E aposta: "Vão escrever mais um livro sobre os últimos dias de Lorca".
Para García, basta saber que seu tio foi morto pelas forças nacionalistas. Os detalhes que podem vir das investigações, como a possibilidade de tortura ou o número de tiros, lhe parecem "uma invasão a uma pessoa que deu tanto à literatura". "Remover ossos é de uma certa violência."
Devido a essa repetida oposição às buscas, há atrito entre a família e pesquisadores como Caballero e Gibson. O debate público, em termos gerais, costuma aparecer reduzindo a questão –como tantas outras discussões na Espanha atual– a duas posições simplórias: a direita supostamente quer esconder os crimes da guerra, e a esquerda quer revelar os abusos contra a humanidade.
"É insidiosa a insinuação de que nós temos uma posição de direita e de que desenterrar Lorca seria progressista", diz García. "Tivemos duas vítimas na família [Lorca e Manuel Fernández-Montesinos Lustau, seu cunhado], vivemos no exílio. Dizer que queremos encobertar os fatos é mentira. Não queremos remover a história, nem literal, nem simbolicamente."
A opinião da família de Lorca, apesar de seu peso como argumento, não pode impedir as investigações. Além disso, há um debate em torno de qual deveria ser a prioridade, se da "família biológica" ou da "família de leitores". Para García, a obra é de quem a lê, "mas seus restos não pertencem a ninguém que não sejamos nós".
Para o juiz Baltasar Garzón, que em 2008 foi responsável por aprovar o início das buscas pelo corpo de Lorca, o governo tem o dever de investigar a morte do poeta, a despeito das vontades da família. "É obrigação da Justiça averiguar o paradeiro das vítimas de atos criminosos, e os crimes de lesa humanidade, como as desaparições forçadas, não prescrevem", diz. "Essa obrigação está acima de vontades particulares."
Garzón é uma das figuras mais influentes do Judiciário espanhol. Em 2012, porém, foi condenado por ter aprovado o uso ilegal de grampos em investigações, em uma medida que ele interpretou como retaliação política. Proibido de exercer a profissão na Espanha, ele é hoje o chefe da equipe legal de Julian Assange, o criador do WikiLeaks.
Ele acredita que encontrar os restos do corpo do poeta seja "importante porque significaria triunfar sobre a impunidade, mas igualmente pela possibilidade de investigar, localizar e devolver a suas famílias os restos de todos os espanhóis que seguem em paradeiro desconhecido", afirma. "Exercer uma ação de reparação é imprescindível em uma democracia e encerraria a brecha social que existe na Espanha, apesar de o governo e as forças mais nostálgicas daquele regime quererem ocultá-lo."
OLIVEIRA
Quando o governo regional finalmente aprovar as buscas lideradas por Caballero, eles de toda maneira estarão concentrados no lugar errado –ao menos segundo os estudos de Ian Gibson, que ainda acredita que Lorca está enterrado nos arredores da oliveira que Manolo, o Comunista, lhe mostrou décadas atrás.
Apesar de ser uma figura central nos estudos sobre o poeta, Gibson não foi consultado durante as primeiras buscas, em 2009. À época, ele manteve um diário, mais tarde publicado, no qual registrava sua insatisfação diante dos procedimentos das investigações. Ele também não participa da atual empreitada. "Mas, se Caballero estiver certo, vou deliciar-me em estar errado. Eu serei o primeiro a celebrar", diz à reportagem, sentado em um café no centro de Madri.
Parte da rejeição às atuais investigações em relação à tese de Gibson vem de um documento supostamente assinado por Manolo, o Comunista, no qual afirma ter chegado a Granada já depois da morte de Lorca.
Ele, portanto, não poderia ter enterrado o poeta e, assim, tampouco saberia apontar o local de sua fossa. Considerando essa versão, pesquisadores como Caballero descartam o testemunho oral que é um dos centros da tese de Gibson.
O investigador irlandês, porém, afirma que Manolo, o Comunista, foi obrigado a assinar esse papel.
"Não podemos confiar em documentos elaborados para pessoas assinarem durante a guerra. Elas estavam aterrorizadas", diz. Apesar de que ele concorda, também, que os relatos orais são limitados como documentos históricos. "Sei como a memória é perigosa, incluindo a minha."
PESQUISA
Se as buscas de Caballero fracassarem, ele diz que está pronto para abandonar essa investigação. "Não estou obcecado com isso", afirma. Gibson, por sua vez, parece exausto após décadas debruçado sobre um mesmo assunto –e prepara outras linhas de pesquisa para o porvir.
Ainda há diversas hipóteses a serem testadas em relação à morte de Lorca. Diz-se, por exemplo, que o corpo teria sido resgatado pela família logo após a morte, o que Laura García nega. Ou que os restos estariam enterrados na catedral de Córdoba, ou no Uruguai, ou em qualquer outro lugar. A "Ilustríssima" foi, também, ver uma pedra próxima a Alfacar, marcada por um sinal semelhante a uma cruz –ali, afirmam alguns moradores, descansa o grande poeta do século 20 espanhol.
Mas o possível fracasso das buscas atuais pode significar que, em pouco tempo, ninguém mais se disponha a buscar Lorca em lugar algum. Até lá, repetem-se, não sem ironia, os versos que ele escreveu em "Poeta em Nova York", como se adivinhasse o futuro:
"Quando afundaram as formas puras/ sob o cri-cri das margaridas/ compreendi que haviam me assassinado./ Percorreram os cafés e os cemitérios e as igrejas,/ abriram os tonéis e os armários,/ destroçaram três esqueletos para arrancar seus dentes de ouro./ Já não me encontraram/ Não me encontraram?/ Não. Não me encontraram."
DIOGO BERCITO, 27, é jornalista e assina os blogs Orientalíssimo e Mundialíssimo no site da Folha.
DEBORAH PAIVA, 65, é artista plástica.