Folha de S. Paulo


Não há lugar para o cinismo nos altares do bulevar Voltaire

RESUMO Em texto veiculado originalmente no site da revista "The New Yorker", escritor britânico analisa a reação popular de homenagem às vítimas do atentado. Para o autor de "Reparação", os altares erigidos nos locais de tragédias como a de sexta (13) e seu registro midiático ajudam a dar ao momento a devida gravidade.

Marius Becker - 16.nov.2015/Efe
Objetos deixados em frente ao Bataclan em homenagem às vítimas do atentado
Objetos deixados em frente ao Bataclan em homenagem às vítimas do atentado

Na Europa pós-cristã, altares espontâneos em cenários de tragédias públicas tornaram-se uma forma de arte popular, servindo a importantes funções. Alguns elementos são vagamente religiosos -velas em potes de vidros, flores. Quanto aos elementos seculares, se houver crianças entre as vítimas, haverá ursinhos de pelúcia. No domingo passado, fora do Bataclan, sala de espetáculos que foi palco da carnificina de sexta (13), lia-se num cartão, com letras maiúsculas rabiscadas em azul, "Foda-se o terrorismo".

O Bataclan se ergue acima de tendas plásticas rasgadas, um prédio branco com ornamentos em cores vivas, evocativas da contracultura, triste e resplandecente ao sol duro de novembro.

Um trecho do bulevar Voltaire e a passagem St. Pierre Amelot, que percorre a lateral da sala, foram fechados ao público com fitas da polícia. Os altares ocupam as pontas da seção vazia da rua, contra as grades de um parque pequenino e empoeirado -fechado neste dia, como todos os outros parques de Paris. Multidões, silenciosas na maior parte do tempo, trazidas ao local pelo choque e pelo poderoso desejo de mostrar solidariedade às vítimas, se avolumam em torno dos altares. Aparecem os paus de selfie. Será importante ter comparecido e poder provar.

A mídia internacional é uma presença dominante no local -suas vans brancas com antenas de satélite, a floresta de câmeras em tripés elevados, e repórteres, mais bem-vestidos que todos nós, com aquela destacada simetria facial típica dos âncoras de TV. Seus rostos se iluminam com a maquiagem pesada exigida pela fotografia em alta definição. Nós empalidecemos ao lado dessas figuras. Eles se perfilam sob tendas especiais, esperando para fazer um "ao vivo", do qual formaremos o fundo. Ou eles andam para cima e para baixo, franzindo o cenho enquanto memorizam suas falas.

Aqui, do lado de fora da casa de shows, e subindo a rua, na place de la République, onde a população normalmente se reúne em tais ocasiões, isso é quase tudo que acontece depois da tragédia. Quarenta câmeras miram as portas do Bataclan. Talvez alguém vá entrar ou, melhor ainda, sair.

Lá nas Redações, os editores vão querer ver o altar. Tais imagens não surgem espontaneamente. O ideal é uma figura solitária, ajoelhada em expiação, sem sinal de equipes de filmagem rivais, ou de paus de selfie, ou de qualquer outra coisa que dote a cena de deliberação ou artifício.

Não há lugar para o cinismo aqui. A violência e a tristeza e o respeito silente são tão reais quanto teriam sido 200 anos atrás. O altar é, acima de tudo, um projeto conjunto, um conluio entre os cidadãos e a mídia. As imagens de TV lembram aos que estão em casa o que fazer, o que levar, e as pessoas erigem seus monumentos instantâneos e executam seus ritos, os quais serão gratamente registrados pelos cinegrafistas, ainda que, para fazê-lo, eles tenham de se acotovelar.

Na terra de Voltaire, no bulevar que leva seu nome, a ausência difusa de credo religioso não desmerece a seriedade dos altares; por que se dobrar ante um Deus que permite tal massacre? Velas, flores e cartões se dirigem a algo mais entranhado, mais vital que o sobrenatural: na tristeza geral, há uma profunda necessidade de comunhão, para a qual o amontoado de câmeras e seus presunçosos guardiães desempenham um papel importante ao demonstrar a gravidade global do momento.


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