Folha de S. Paulo


Leia trecho do livro "Entre o Mundo e Eu", finalista do National Book Award

RESUMO Em livro a sair pela Objetiva no dia 19, autor negro nascido em Baltimore, cidade altamente segregada, propõe leitura da história dos EUA à luz da questão racial. Escrito em forma de carta ao filho em seu aniversário de 15 anos, ensaio concorre ao National Book Award, cujos vencedores serão anunciados no dia 18.

Andrew Burton - 28.abr.2015/AFP
Daquan Green, 17, em frente de tropa que continha protesto após funeral de Freddie Gray, 25, morto pela polícia em Baltimore
Daquan Green, 17, em frente de tropa que continha protesto após funeral de Freddie Gray, 25, morto pela polícia em Baltimore

Ele sempre esteve bem diante de mim. O medo estava lá, nos extravagantes rapazes da minha vizinhança, com seus grandes anéis e medalhões, seus grandes e inflados casacos, suas jaquetas de couro compridas com golas de pelo, que eram a armadura que vestiam contra seu mundo. Ficavam na esquina da Gwynn Oak com a Liberty, ou da Cold Spring com Park Heights, ou do lado de fora do Mondawmin Mall, com as mãos enfiadas nas roupas de malha Russell.

Penso agora naqueles rapazes e tudo que vejo é medo, tudo que vejo são eles se preparando para enfrentar os fantasmas dos velhos dias ruins, quando a turba do Mississippi se reunia em torno de seus avós para que as partes do corpo negro fossem incendiadas e depois cortadas. O medo se manifestava no bebop que praticavam, em seus desleixados jeans, suas grandes camisetas, no ângulo calculado de seus bonés de beisebol, num catálogo de comportamentos e roupas adotado para inspirar a crença de que exerciam a firme posse de tudo que queriam.

Vi isso em seus costumes de guerra. Eu devia ter cinco anos e estava sentado nos degraus da frente da minha casa na avenida Woodbrook quando vi dois garotos sem camisa circularem um em volta do outro, bem de perto, batendo ombros.

Desde então, sei que uma luta de rua tem um ritual, regulamentos e códigos que, por sua própria necessidade de existência, atestam toda a vulnerabilidade dos corpos dos adolescentes negros.

Ouvi o medo na primeira música que conheci, a música que irrompia de grandes toca-fitas, cheios de arrogância. Os rapazes que ficavam na Garrison e na Liberty, em Park Heights, gostavam dessa música porque ela lhes dizia, contra toda evidência e probabilidade, que eles eram os senhores de suas próprias vidas, suas próprias ruas e seus próprios corpos.

Vi o medo nas garotas, em seu riso alto, em seus brincos dourados de bambu que anunciavam três vezes seus nomes. E vi o medo em seu linguajar brutal, seu olhar duro, que diziam que o cortariam com os olhos e o destruiriam com suas palavras pelo pecado de brincar demais. "Não se atreva a dizer meu nome", diziam. Eu os observava depois da escola, em posição de combate, como boxeadores, vaselina nos cabelos, brincos de fora, calçando Reeboks, saltando um sobre o outro.

Senti o medo nas visitas à casa da minha vó, na Filadélfia. Você não chegou a conhecê-la. Eu mal a conhecia, mas me lembro de seus modos rudes, de sua voz áspera. E eu sabia que o pai do meu pai estava morto, que meu tio Oscar estava morto e que meu tio David estava morto, e que nenhuma dessas situações tinha sido natural.

E vi o medo em meu próprio pai, que ama você, que dá conselhos a você, que me deu dinheiro para cuidar de você. Meu pai tinha tanto medo. Eu o senti na chicotada de seu cinto de couro preto, que ele aplicava mais com ansiedade do que com raiva, meu pai que me batia como se alguém pudesse me levar embora, porque era exatamente isso que estava acontecendo por toda parte a nossa volta. Todo mundo tinha, de algum modo, perdido um filho para as ruas, para a prisão, para as drogas, para as armas. Dizia-se que essas garotas perdidas eram doces como o mel e não fariam mal a uma mosca. Dizia-se que esses rapazes perdidos tinham acabado de receber um GED [General Education Development] e começado a mudar suas vidas. E agora eles tinham ido embora, e seu legado era um grande medo.

Eles lhe contaram essa história? Quando sua avó tinha 16 anos, um jovem bateu a sua porta. Esse jovem era o namorado de sua Nana Jo. Não havia mais ninguém em casa. Mamãe deixou que esse jovem se sentasse e esperasse até sua Nana Jo voltar. Mas sua bisavó chegou primeiro. Ela pediu ao jovem que fosse embora. Depois deu uma surra terrível em sua avó, uma última vez, para que ela se lembrasse de quão facilmente poderia perder seu corpo. Mamãe nunca esqueceu.

Lembro-me de seu aperto forte em minha mãozinha quando atravessávamos a rua. Ela me dizia que, se alguma vez eu me soltasse e fosse atropelado e morto por um carro, ela me bateria e me traria de volta à vida. Quando eu tinha seis anos, mamãe e papai me levaram a um parque local. Escapei à vigilância deles e achei um playground. Seus avós passaram ansiosos minutos me procurando.

Quando me encontraram, papai fez o que todo pai que conheço teria feito –levou a mão ao cinto. Lembro-me de ter ficado olhando para ele numa espécie de atordoamento, aterrorizado, naquela meia distância entre castigo e agressão. Depois, ouvi a voz de papai: "Ou eu bato nele, ou bate a polícia". Talvez isso tenha me salvado. Talvez não. Tudo que sei é que a violência surgiu do medo como a fumaça surge do fogo, e não sei dizer se essa violência, mesmo administrada com medo e amor, fez soar o alarme ou nos chocou de saída.

O que sei é que pais que surraram seus filhos adolescentes por insolência depois os viram ir para as ruas, onde empregaram a mesma forma de justiça e foram a ela submetidos. E conheci mães que batiam com o cinto nas filhas, o que não conseguiu salvá-las de traficantes de drogas com o dobro de sua idade. Nós, os filhos, nos valíamos de nosso humor mais sombrio para lidar com isso. Ficávamos no beco, onde lançávamos bolas de basquete através de caixotes com buracos, e zombávamos do garoto cuja mãe o constrangera batendo nele diante de toda a turma da quinta série.

Viajávamos no ônibus 5, que levava ao Centro, rindo de alguma garota cuja mãe era conhecida porque estava sempre procurando alguma coisa –cabos, fios de extensão, potes, panelas. Ríamos, mas sei que tínhamos medo daqueles que mais nos amavam. Nossos pais recorriam ao chicote do mesmo modo que os flageladores, nos anos de peste, recorriam ao flagelo.

Ser negro na Baltimore da minha juventude era estar nu ante os elementos do mundo, ante todas as armas de fogo, os punhos, as facas, o crack, o estupro e a doença.

A nudez não é um erro, nem patologia. A nudez é o resultado correto e intencional da política, o desfecho previsível para pessoas que foram forçadas, durante séculos, a viver com medo. A lei não nos protegia. E agora, na sua época, a lei se tornou um pretexto para detenções e revistas, isto é, para levar adiante a agressão ao seu corpo.

TA-NEHISI COATES, 40, escritor e jornalista da revista "The Atlantic".

PAULO GEIGER é editor e tradutor do inglês e do hebraico.


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