Folha de S. Paulo


RÉPLICA

Jornalista usa determinismo do século 19 para criticar Beauvoir

A prova do Enem trouxe, neste ano, duas questões que muito foram discutidas: a pergunta sobre o livro "O Segundo Sexo", de Simone de Beauvoir, e o tema da redação sobre a "persistência da violência contra a mulher na sociedade brasileira". Ambas tocam em um ponto nevrálgico de nossa sociedade –mas não só da nossa sociedade– e, por isso mesmo, vimos as reações ultrapassarem a barreira da crítica teórica para se estabelecerem no terreno de ofensas pessoais. Beauvoir foi acusada de pedófila e nazista em textos e vídeos na internet, e os menos radicais não se furtaram em acusá-la de "atrasada". Afinal, por que um texto escrito em 1949 ainda é capaz de provocar tamanha reação no Brasil de 2015?

Talvez por justamente colocar em jogo questões que a cada dia pulsam mais em nossas ruas e que a cada dia regridem mais em nosso Congresso, tais como: o papel da mulher na sociedade brasileira, o poder da mulher sobre seu próprio corpo, as relações desiguais de poder entre homens e mulheres, a desigualdade de salários para os mesmos cargos, o feminicídio –que se tornou legalmente crime, mas que não deixou de ser uma prática que persiste na sociedade brasileira.

Reprodução
Simone de Beauvoir em foto para a revista
Simone de Beauvoir em foto para a revista "Time", em 1956

Foi por compreender a importância de falar sobre violência contra mulheres (o que é sinônimo de nascer do sexo feminino) que em 2012 ministrei uma disciplina sobre o livro "O Segundo Sexo" no curso de filosofia na universidade em que leciono, no Espírito Santo, Estado que mais registra assassinato de mulheres por serem... mulheres.

Mesmo sendo essa disciplina dada no Estado em que a violência contra a mulher mais persiste no Brasil, algumas reações contra o curso foram surpreendentes: houve, por parte de alguns, recusa em compreender o texto para não enxergarem a realidade em que viviam. E, para isso, argumentavam que o texto de Beauvoir era antigo, de 1949, e, portanto, não era verdadeiro, como se houvesse um prazo de validade nas teorias filosóficas e como se, obviamente, em 2012, nós já tivéssemos progredido tanto que não haveria mais o menor traço da "persistência da violência contra a mulher na sociedade brasileira".

Para não olhar a violência cotidiana contra as mulheres, para não compreender os mecanismos históricos que levaram a uma naturalização da mulher como passiva e inferior, reduziu-se o texto de Beauvoir a um texto antigo que não fazia mais sentido diante do progresso científico e social em que vivíamos.

E é exatamente esse movimento de não compreensão do texto para não refletir sobre a possibilidade de modificação de nossa sociedade que podemos verificar no artigo de Ricardo Mioto, "Biologia, Simone de Beauvoir e assédio", publicado em seu blog da Folha.

Sobre o texto de Beauvoir temos apenas um parágrafo curto, que revela que o jornalista provavelmente nem teria lido os dois volumes de "O Segundo Sexo": "Ou seja, surge a ideia de que tudo é socialmente construído e que não há diferença biológica nenhuma entre homens e mulheres, como ela defende em 'O Segundo Sexo'". Segundo Mioto, a filósofa e escritora francesa defenderia a não distinção biológica entre homens e mulheres, e é contra esse ponto que todo o artigo é escrito. Trata-se, como veremos, de um artigo que tenta mostrar inválida uma teoria que não existe no pensamento de Beauvoir.

Basta ver o índice do primeiro volume de "O Segundo Sexo" para perceber que há, ali, um capítulo inteiro intitulado "os dados da biologia". E, ao ler todo o capítulo, fica muito claro que em nenhum momento a autora fala de não distinção biológica entre homens e mulheres. Pelo contrário: o capítulo faz uma longa análise da... distinção biológica entre homens e mulheres, sobre o modo como o corpo de cada um se constitui de forma diferente: "A mulher, que é a mais individualizada das fêmeas, aparece também como a mais frágil, a que vive mais dramaticamente seu destino e que se distingue mais profundamente do macho" (Difusão Europeia do Livro, 4ª edição, p. 46). Por meio da descrição do desenvolvimento físico e hormonal de fêmeas e machos, Beauvoir mostra a distinção profunda que há entre ambos.

É falsa, portanto, a afirmação de Mioto sobre a tese de que, para Beauvoir, não haveria distinção biológica alguma entre homens e mulheres. Mas, mais que isso, o artigo também apresenta uma não compreensão do sentido do livro como um todo. Afinal, se é verdade que Simone de Beauvoir não ignora as diferenças biológicas, se é verdade que afirma a importância de a espécie habitar mais o corpo da mulher que o do homem, ela o faz justamente para não reduzir o gênero a determinismos biológicos: "Esses dados biológicos são de extrema importância: desempenham na história da mulher um papel de primeiro plano, são um elemento essencial de sua situação [...] Pois, sendo o corpo o instrumento de nosso domínio do mundo, este se apresenta de modo inteiramente diferente segundo seja apreendido de uma maneira ou de outra. Eis por que os estudamos tão demoradamente; são chaves que permitem compreender a mulher. Mas o que recusamos é a ideia de que constituem um destino imutável para ela. Não bastam para definir uma hierarquia dos sexos; não explicam por que a mulher é o Outro; não a condenam a conservar para sempre essa condição subordinada" (p. 53).

A verdadeira tese do livro não é a de demonstrar a inexistência de distinções biológicas entre fêmea e macho, mas de mostrar como essas distinções não são capazes de explicar o essencial: como, ao longo da história, a mulher foi naturalizada de forma a ser colocada como um segundo sexo –sendo o homem o primeiro. Em outras palavras, em 1949, Beauvoir critica as tentativas de reduzir os modos de ser no mundo e com os outros a um determinismo biológico –o que é, ironicamente, o que Mioto faz em seu artigo.

Ao criticar o pensamento de Beauvoir, ao reduzi-lo a um pensamento antigo de "antes da existência dos conhecimentos atuais sobre neurociência ou hormônios", o que o jornalista diz é que o progresso científico teria mostrado falsa a tese da feminista de 1949 por comprovar que há sim diferenças biológicas (neurológicas e hormonais) entre homens e mulheres e que é a partir dessas diferenças que deveríamos compreender comportamentos humanos, tais como o assédio sexual –afinal, faz parte do "software masculino" uma "percepção de espaço pessoal" que não é a mesma do "software feminino".

Mas, se Beauvoir coloca uma teoria arcaica, poderíamos dizer, com ela, que a hipótese colocada por Mioto é ainda mais, já que estabelece um pulo inadmissível para o existencialismo francês: a passagem do natural ao cultural. "O Segundo Sexo" foi escrito para combater esse pensamento que reduz a humanidade a qualquer determinismo, que reduz a mulher a seus hormônios e cromossomos. E Mioto, com linguagem do século 21, tenta recuperar o determinismo do final do século 19, que Beauvoir muito criticou.

E, se é verdade que hoje Beauvoir é vista como não radical pelas feministas, por ainda se manter em termos de feminino e masculino, por não falar propriamente de sexo, gênero e orientação sexual, é verdade também que seu texto se mostra essencial para a desconstrução de naturezas inventadas, que tentam a todo custo enquadrar, explicar e limitar os seres humanos e, mais especificamente, as mulheres.

Por isso, é preciso repetir a famosa frase de "O Segundo Sexo" de que "não se nasce mulher, torna-se mulher" e compreendê-la bem, a fim de que possamos buscar mudanças das estruturas sociais, no lugar de reduzi-las a softwares pré-instalados, como faz Mioto, e combater aqueles que, em nome dessa natureza fictícia, ofendem as mulheres que tentam se libertar das amarras das definições tão limitadoras, como muitas das reações à prova do Enem têm feito.

THANA SOUZA, 37, é doutora em filosofia pela USP e professora da Universidade Federal do Espírito Santo.


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