Folha de S. Paulo


ponto crítico

O chão e a utopia em Nuno Ramos

Ultrapassar limites, imagina-se, conduz ao caos, à barbárie. Mas mitos dessa natureza não intimidam Nuno Ramos. Ao invadir fronteiras, o artista alcança a exuberância altiva das matérias. Pinturas monumentais ocupam os dois espaços extremos de sua mostra "Houyhnhnms", em cartaz na Estação Pinacoteca até 15/11.

Além de algumas cores comuns, não há continuidade entre esses dois conjuntos de obras. No espaço entre elas, dois filmes e alguns vestígios de suas imagens, que saltam das telas e ganham corporeidade: restos de carrossel, som, arroz, pedaços de caminhão, móveis. Para penetrar um dos dois extremos da exposição, é necessário atravessar uma antessala repleta de quadros com nomes inusitados que louvam o deus-profeta Proteu.

Mauro Restiffe/Divulgação
"O semeador" (2015), de Nuno Ramos

Como o profeta, o artista é comumente tido como alguém que está à frente de seu tempo. Proteu, no entanto, é um vate peculiar. Ele só revela a verdade aos que extrapolam obstáculos perceptivos.

Essas considerações poderiam nos fazer perguntar o que a exposição revela a corações destemidos. Nuno Ramos é desses artistas cujo fôlego provoca pasmo. Sua imponente produção emudece o espectador. Desprovido das linhas que poderiam concatenar uma obra ou mostra a outra, o sujeito que acompanha o trabalho desse artista é quase sempre tomado de surpresa ante sua opacidade.

Uma pista, todavia, pode ser recolhida das lacunas entre suas diferentes produções. Olhar para esses intervalos talvez seja uma boa maneira de criar certa intimidade com a complexidade dessas obras. Isso exige o abandono de modelos identitários de compreensão.

No livro "As Palavras e as Coisas", Michel Foucault retoma a classificação de uma enciclopédia chinesa imaginada por Jorge Luis Borges. Nela animais dividem-se em: a) pertencentes ao imperador, b) embalsamados, c) enjaulados, d) leitões, e) sereias, f) fabulosos, g) cães em liberdade, h) incluídos na presente classificação, i) que se agitam como loucos, j) inumeráveis, k) desenhados com um pincel muito fino de pelo de camelo, l) etc., m) que acabam de quebrar o bebedouro, n) que, de longe, parecem moscas.

O filósofo francês nota justamente a ausência de moldura que seria capaz de estabelecer o nexo entre os termos. Sem a estrutura, termos isolados se destacam, e uma estranheza sobrevém do olhar dirigido à materialidade de cada um deles.

É a ausência de moldura, hoje convenção comum nas artes, que ganha vigor nas mãos de Nuno Ramos. Aqui ausência de moldura não trata dos limites do quadro –o que aliás faz questão de retomar. Essa falta diz algo sobre o nada.

Embora não pareça, algo aproxima Nuno Ramos de Mira Schendel: ambos partem do vazio.

As diferenças entre eles são mais nítidas. Enquanto Mira Schendel preserva a tensão entre ser e não ser, mantendo intacta a força do vazio diante do caráter singelo da matéria, Nuno Ramos infla o corpo material das coisas apreendidas nas fraturas.

Nessa operação, o artista distende sutilezas antes adormecidas. Nuno Ramos não cerca o resto, mas o penetra. Há aí uma batalha entre morte e vida. O resultado é a matéria elevada à máxima potência, o que lhe dá feições amorfas.

O contorno formal desses objetos, no entanto, existe. Ele é dado pelos próprios limites da matéria, que, nas obras, ficam a ponto de se desfazer. Longe de qualquer timidez, a voluptuosidade dos gestos de Nuno Ramos calibra grãos e sobras que pairavam no quase nada.

Por isso, sua declaração de que está "entre o chão e a utopia" deve ser tomada ao pé da letra. É exatamente desse não lugar –a utopia– que os restos são recolhidos e avolumados em peças profusas e cheias de beleza.

ALESSANDRA AFFORTUNATI MARTINS PARENTE, 40, é psicanalista e doutora em psicologia social pela USP.


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