Folha de S. Paulo


Biografia não autorizada de Ted Hughes é forte e esclarecedora

Era um homem muito vasto, que viveu as vidas dos diferentes homens que compartilhavam do nome Ted Hughes. Propelidas, todas elas, por um núcleo de energia tão fulgurante e feroz que muitas das pessoas que conviveram com ele saíram queimadas. Quando chegou à maturidade, ele já tinha desenvolvido completamente um apetite, ou até mesmo uma cobiça, e acima de tudo uma paixão incansável, pela vida da paixão, que ele buscava e alimentava com poesia, sexo e misticismo transformador sobre a Terra e seu significado. Às vezes jubiloso, às vezes atormentado.

Hughes sentia uma compulsão, que a ele parecia misteriosa, por confessar e descrever tudo que capturasse sua concentração –e não importava o custo.

Como menino, nas charnecas de Yorkshire, ele contemplou a crueldade dos animais, e em companhia de seu irmão e ídolo, Gerald, dez anos mais velho, não tinha medo de atirar, de montar armadilhas para apanhar peixes, de estripá-los. Com os sentimentos de sua família e amigos, lacerados pela Primeira Guerra Mundial, ele aprendeu sobre a crueldade do homem para com o homem. De suas leituras sempre vastas, ele absorveu a violência da sociedade.

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Os poetas Ted Hughes e Sylvia Plath, recém-casados em 1956, em visita aos parentes dele em Yorkshire
Os poetas Ted Hughes e Sylvia Plath, recém-casados em 1956, em visita aos parentes dele em Yorkshire

Mas também via os pássaros e peixes, e os estudava com tamanha delícia que parecia capaz de tentar se tornar um deles. "The Hawk in the Rain" [o falcão na chuva], seu primeiro poema famoso, foi admirado e publicado por T. S. Eliot. Era como se ele tivesse recebido uma benção papal da poesia. À medida que envelhecia, e que a vara de pesca substituía a espingarda, ele se dedicou ao seu mais constante e duradouro caso de amor –com a pesca–, em todo o mundo. Quanto mais bravios os mares e rios, melhor. Ele acreditava na Deusa Branca de Robert Graves e na tipologia psicanalítica de Jung, e na imensurável profundidade de Shakespeare, e as empregava da maneira mais profunda possível para regular o metrônomo de sua mente.

Sua irmã Olwyn (que se tornaria sua agente literária) –a primeira e talvez a mais ferozmente possessiva das mulheres de sua vida– transmitiu a Hughes a crença em astrologia que se tornou parte de seu cotidiano.

O xamanismo, para ele, era tão real em Swindon quanto na África Central. Coincidências eram entrelaçadas como pérolas de sabedoria daquele Outro Lugar que escapa à razão e desconsidera o iluminismo. Ele buscava linhas de Ley que alinhavam pensamentos e sentimentos de eras ancestrais.

Encontrou boa parte do que buscava nas crianças, e uma das buscas persistentes de sua vida foi encorajar crianças a escrever e aprender poesia. Escreveu livros para elas. Persuadiu jornais nacionais a organizar concursos de poesia para crianças. A poesia, para ele, era uma conexão vital para com uma vida mais profunda.

Ted despertava grande amor da parte de muitos de seus admiradores, e especialmente de seus amigos. Convivi com ele e sua segunda mulher, Carol, em muitas ocasiões, e os encontros sempre foram momentos de conversação intensa, muita risada e alguma bebida. Ele sempre apoiou vigorosamente os muitos escritores que conhecia, entre os quais me incluo, e me lembro de ocasiões em companhia de Ted e de Seamus Heaney em que o profundo calor da amizade que existia entre eles era palpável.

Ele escrevia copiosamente. Não só poesia mas prosa, milhares de cartas que foram comparadas às de Keats, dezenas de cadernos de anotações –tudo tinha de ser registrado na rigorosa caligrafia aprendida nas escolas dos anos 40. A despeito da ampla e reluzente seleção de fontes empregadas para a biografia, ainda resta imenso volume de escritos de Hughes a avaliar e publicar.

Ted chegou à cena literária como um meteoro. Seu segundo livro, "Lupercal", foi incluído entre as grandes obras do gênero pelo crítico que definia as avaliações de poesia da época, Al Alvarez, aqui no "Observer". Mas não demorou para que o aspecto mais exposto de sua vida, o casamento e o fim do casamento com Sylvia Plath, e todo aquele sexo nômade subsequente, interferissem com sua reputação, da mesma forma que um primeiro plano exagerado pode obscurecer a qualidade real de uma pintura.

A biografia não autorizada de Jonathan Bate não contou com autorização para incluir mais que algumas linhas dos poemas de Hughes e de outros materiais que estão sob o controle de seu espólio literário. É uma vergonha, mas Bate decidiu encarar o fato como libertação. Ele acompanha a trajetória de Hughes da classe média baixa em Yorkshire às viagens de pesca com a Rainha Mãe, de poeta insolvente a poeta laureado, das perdas insuportáveis a uma vida que a alguns poderia parecer a de um predatório lobo solitário, até que ele encontrasse o lastro que buscava em Carol Orchard, a parceira dedicada, inteligente e forte que se tornou sua segunda mulher, e o prazer profundo de descobrir em seu filho Nick um grande amor pela natureza e especialmente pela pesca.

É uma biografia, forte, esclarecedora, aprofundada e convincente. Bate não tenta evitar o lado feroz de Hughes, a ponta de loucura que ele revelava, a mesquinha distribuição de seus dias e horas, os esquemas lunáticos para viver na China ou para ganhar dinheiro ("o dinheiro é meu inimigo"). Ted muito frequentemente ficava perto da falência, depois de decidir que viveria só de sua poesia. O departamento de programação infantil das rádios da BBC na verdade o subsidiava. Era fácil zombar dele, mas pode-se dizer o mesmo sobre Wordsworth, um de seus heróis. O que importa é aquilo de bom que deixaram, e no caso dos dois há muito de bom.

Como Wordsworth, ele avançou de uma escola pública do norte da Inglaterra para Cambridge, e foi lá que conheceu Sylvia Plath, bela poeta e estudiosa norte-americana que havia lido os poemas que ele publicou na universidade e partiu para a conquista de Ted desde o momento em que o conheceu. Isso aconteceu em uma festa na qual eles dançaram e Ted beijou o pescoço de Sylvia, que em retribuição o mordeu na bochecha com tanta força que ele saiu sangrando. Sylvia disse que Ted era o único homem "imenso" o suficiente para ela. Ela ignorou completamente a menina que o poeta havia levado à festa. O casamento fiel de seis anos, em uma aldeia remota no West Country, lhes deu dois filhos, Frieda e Nick, e ajudou Plath a encontrar sua grandeza como poeta e Hughes a aprofundar seus transes de pensamento. Os dois escreviam sobre os trabalhos um do outro. Plath evoluiu de estudante brilhante a estrela literária comparada a Emily Dickinson. Depois de seis anos, ele a deixou. Pouco mais tarde, ela voltou a Londres. O suicídio a tirou de Ted, mas ele jamais se deixou afastar dela, pelo resto da vida. É um uso justificado do clichê dizer que ela o acompanhou para sempre, como uma assombração.

Hughes tomou conta das obras de Plath e as publicou meticulosamente. Como o resto do mundo literário, contemplou com admiração e incredulidade o imenso sucesso de "Ariel" e "The Bell Jar". Depois, assistiu horrorizado à ascensão de uma nova e brutal ala de um implacável movimento feminista que passou a descrevê-lo como assassino e estuprador, e destruiu o maior número possível de suas palestras, além de ter profanado o túmulo de Plath por o sobrenome de Hughes estar incluído na lápide. Ted terminou aprisionado na cela simplificada do homem que odeia as mulheres. Não importa que ela tivesse tentado o suicídio antes de conhecê-lo, e que tivesse encontrado outros amantes depois que ele a deixou, não importa que compreender a causa de um suicídio requeira conhecimento bem superior à capacidade daqueles que montam uma acusação baseada em algumas poucas circunstâncias externas e preconceitos mesquinhos. Ele foi condenado, e essa condenação persistiu. Mas nunca o impediu de escrever, e em segredo ele iniciou seu grande ato de contrição.

Hughes não só escondeu o fato mas encontrou maneira de intensificar as paixões que o propeliam. Mais escrita, mais mulheres, às vezes duas ou até três, não sabendo qual delas escolher ou por quê, sentindo, como Jonathan Swift, que era possível amar mais de uma mulher ao mesmo tempo. Sua parceria com Assia Wevill foi apaixonada, mas, como no caso de Sylvia, ela também se suicidou, levando consigo o filho de quatro anos do casal. Ou será que deveríamos dizer, mais corretamente, que ela assassinou a criança? Mas é claro que, para aqueles que odeiam Hughes, ele era o único culpado.

À luz desses terríveis acontecimentos é tosco, e para muita gente creio que inaceitável, dizer que o amor buscava Hughes tanto quanto ele o buscava. Vezes sem conta. E quando ele se casou com Carol Orchard, havia paixão, igualmente, mas também o alívio de saber que estava com alguém não competitivo, a exemplo de Valerie na vida de Eliot, alguém que tomaria conta dele não importa o que viesse. Os dois viviam em Devon. Hughes morreu de câncer em Londres, onde viveu boa parte de seus três anos finais com sua última Deusa, em Brixton. Mas Carol esteve com ele até o fim.

No entanto, nos anos pós-Plath, a força que alimentava o homem o conduziu a um trabalho complexo com Peter Brook, em uma peça a quatro mãos chamada "Orghast", e a um devastador julgamento nos Estados Unidos com o objetivo de defender a reputação de Plath, e permitiu que se mantivesse perto de sua família em Yorkshire e de seus dois filhos com Plath, Nick e Frieda, dos quais ele era excepcionalmente próximo. Nick se suicidou pouco depois da morte de Ted.

Enquanto isso, ele selecionou muitos dos mais importantes poetas europeus e os levou à Inglaterra, para traduções e leituras de poemas. Desenvolveu uma amizade complicada mas muito satisfatória com Seamus Heaney, que o procurou com respeito e admiração. Em pessoa, ele era sempre a presença dominante da sala, qualquer sala. Alternava entre uma rigorosa vida interior e uma grande risada, boas conversas e bebedeira –mas sem fofocas, sem papo furado. Seu ardor era sempre visível.

Em seus dias finais, ele passou a se dedicar ao gênio metamórfico de Ovídio, e conquistou a importante admiração de outro crítico chave, John Carey. Depois, veio a grande obra à qual ele tanto havia se dedicado ao longo dos anos, "Birthday Letters", que se tornou o livro de poesia de maior sucesso de vendas de todos os tempos. Pouco depois que o livro foi lançado, Carol Orchard e seu amigo Matthew Evans compilaram "Hughes at Faber", o que me propiciou a oportunidade de encontrar na Biblioteca Britânica o manuscrito de "Last Letter", um poema inédito de Ted, publicado pela revista "New Statesman". Trata-se do relato, quase insuportavelmente dolorido, de seu contato com os dias finais de Sylvia. Ele arrancou sua vergonha pela raiz e a expôs em público. Mostrou suas horrendas feridas, e deixou à vista a impossibilidade compactada da dor, amor e separação. Da mesma forma que Ted a ajudou em vida a desenvolver escritos que durarão enquanto a boa poesia sobreviver, ela deu a ele na morte as chaves do mesmo reino.

Quando estavam em Yorkshire, encantados com Emily Brontë, caminharam pelas charnecas até a fazenda que dizem ter servido como original para o "Morro dos Ventos Uivantes", ele como Heatchliff, ela como Cathy –estrelas gêmeas girando e brilhando juntas, mas singulares demais, ferozes demais, para se manter unidas

"Ted Hughes: The Unauthorised Life", de Jonathan Bate, editora William Collins (R$ 82,75 em e-book na Amazon).

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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