Folha de S. Paulo


A história do conto de Beckett que ficou inédito por 80 anos

No dia 25 de setembro de 1933, a editora londrina Chatto & Windus aceitou para publicação a coleção de contos "More Pricks Than Kicks". Escrevendo para Beckett, o editor Charles Prentice, da Chatto, perguntavase o autor não acrescentaria mais um conto, que iria "ajudar o livro" ao dar volume ao conteúdo. Beckett concordou, e começou a escrever o que ele chamava de um "conto recessional" intitulado "Ossos de Eco", que deveria fechar o livro. Três dias depois de receber o conto, no entanto, Prentice, no dia 13 de novembro de 1933, recusou-o, argumentando que o conto era um "pesadelo" e "afetaria tremendamente as vendas". "More Pricks Than Kicks" foi publicado no dia 24 de maio de 1934 como Beckett tinha originalmente organizado o livro, com dez e não onze contos. Agora, mais de oitenta anos depois de ter sido escrito, o enigmático "Ossos de Eco" faz sua primeira aparição pública.

O fracasso de "Ossos de Eco" em ver a luz do dia em 1934 precisa ser considerado no contexto da desesperada luta de um jovem escritor para conseguir ser publicado no começo dos anos 1930. Em muitos sentidos a história de "Ossos de Eco" começa com a primeira obra mais alentada de ficção que Beckett escreveu, o romance "Dream of Fair to Middling Women", escrito entre maio de 1931 e julho de 1932. Encorajado pela publicação, pela Chatto, de seu livro sobre Marcel Proust ("Proust", 1931), Beckett ofereceu o romance aos editores.

Ao receber o livro em 1932, contudo, Prentice educadamente o chamou de "uma coisa estranha", elogiou os trechos em que a prosa vinha "direto de Joyce", e aí nada surpreendentemente recusou a obra (5 de julho de 1932). Como Prentice contou ao escritor Richard Aldington, rejeitar o primeiro romance de Beckett foi "talvez um equívoco; mas teria sido uma coisa quase impossível de controlar; nós mesmos não entendíamos nem metade" (5 de setembro de 1932).

Durante os nove meses seguintes, o livro continuou a desorientar e afastar editores. Com cartas de recusa que se acumulavam à sua volta, e sem uma fonte de renda estável depois de pedir demissão do cargo de professor no Trinity College de Dublin, Beckett, em meados de 1933, deve ter percebido que "Dream" nunca seria publicado (ele só apareceu postumamente, em 1992), e assim dedicou sua atenção ao processo de reunir um conjunto de contos, alguns deles escritos já em 1931.

Com "Dream" sem editor, e sem um número suficiente de contos para formar uma coleção sólida que pudesse interessar a um editor (ou "convidar um editor a usá-la para limpar a bunda", nas suas palavras), Beckett começou a reciclar material do romance, recuperando as seções que podiam facilmente ser integradas ou adaptadas a uma forma literária mais breve. Assim, por exemplo, o conto "A Wet Night", como aparece em "More Pricks Than Kicks" sai "ipsis litteris" do romance "Dream of Fair to Middling Women". Beckett também saqueou material do seu caderno para o "Dream", notas de leitura coligidas para a escrita do romance. Essa abordagem pragmática também tinha, na cabeça do autor, precedentes intelectuais.Ele tinha defendido no seu ensaio sobre Proust "o mais necessário, saudável e monótono dos plágios – o plágio de si próprio" (1933).

"CONTINHO A MAIS"

Em setembro de 1933, Beckett tinha reunido dez contos que chegavam a cerca de 60 mil palavras. Depois de seu fracasso em conseguir um editor para seus textos, ele não estava nada confiante de que essa reunião de contos fosse despertar atenção positiva, apesar de dizer ao seu amigo Thomas MacGreevy, em carta de 7 de setembro de 1933, referindo-se ao primeiro conto de "More Pricks Than Kicks", que "se as pessoas conseguem ler Saki elas conseguem ler qualquer coisa, até "Dante and the Lobster"* [primeiro conto de "More Pricks Than Kicks"]. Prentice deve ter concordado com essa avaliação. Em sua carta de aceitação datada de 25 de setembro de 1933, ele perguntava se Beckett podia providenciar um "título mais animado" para substituir "Draff" [resíduo úmido de cervejaria] (nome do último conto de "More Pricks Than Kicks"), acrescentando "E vivas também se você der um jeito de escrever aquele continho a mais", o que sugere que Beckett pode ter levantado a ideia de escrever um outro conto caso o editor sentisse que o livro estava um tanto curto. Agradecendo a Beckett pelo texto revisado, "More Pricks Than Kicks", Prentice reiterava sua crença de que "outras 10.000 palavras, ou até 5.000, na verdade, iriam, tenho certeza, ajudar o livro" (29 de setembro de 1933). Beckett, por vários motivos, achou difícil atender ao pedido. Como ele disse a MacGreevy, parte do problema vinha do fato de ele ter matado o protagonista da coleção no penúltimo conto, "Yellow":

"Eu tenho que fazer mais um conto para o 'More Pricks', 'Belacqua Redivivus', e estou mais empacado que jumento" (9 de outubro de 1933). O fato de que Belacqua teria que ser ressuscitado para o conto final foi reconhecido por Prentice: "Estou encantado com a ideia de que Belacqua Lázaro logo estará andando novamente" (4 de outubro de 1933). Em princípios de novembro, Beckett confessou a McGreevy que estava "espremendo os últimos ganidos possíveis para C. & W." mas estava "sofrendo demais" com aquilo (1º de novembro de 1933). E no entanto ele deve ter conseguido escrever o conto bem rápido depois disso, já que Prentice registra o recebimento do texto no dia 10 de novembro, enquanto também registrava sua surpresa diante de seu comprimento de 13.500 palavras ("que grandão!"). Mais importante, o conto como um todo deixou-o totalmente desorientado, e numa carta longa, redigida em tom de desculpas, mas com firmeza, Prentice informou a Beckett no dia 13 de novembro que "Ossos de Eco" não podia ser publicado; a carta vale a citação integral.
"É um pesadelo. Terrível e simplesmente persuasivo demais. Me deu tremeliques. As mesmas horríveis e imediatas mudanças de foco e a mesma louca e insondável energia da população. Há pedaços com os quais eu não me conecto. Lamento muito me sentir assim. Talvez sejam só os detalhes, e eu posso ter uma intuição correta da impressão geral. Lamento, pois odeio ser burro, mas espero não ser totalmente insensível. 'Ossos de Eco' certamente me atingiu como um soco.

Você se importa se nós o deixarmos fora do livro – isto é, publicarmos 'More Pricks Than Kicks' na forma original em que você nos mandou? Embora fique meio curto, ainda poderemos pôr o preço de 7 xelins e 6 centavos. 'Ossos de Eco', tenho certeza, faria com que o livro perdesse muitos leitores. As pessoas vão ter arrepios e ficar desorientadas e confusas; e elas não vão morrer de vontade de analisar os arrepios. Tenho certeza de que 'Ossos de Eco' reduziria as vendas de maneira bastante considerável.

Odeio ter de dizer isso, e ainda me decepcionar também, e espero que você me perdoe até onde for possível. Por favor, tente fazer concessões; o futuro do livro também afeta você.
Isso é um desastre terrível – da minha parte, não da sua, Deus me livre! Mas eu preciso confessar. Uma falha, um ponto cego, chame do que quiser. No entanto o único pedido de misericórdia que eu posso fazer é dizer que o toque gelado daqueles dedos redivivos foi demais para mim. Estou sentado no chão, e há cinzas sobre minha cabeça."
A resposta de Beckett a essa carta impressionante parece ter sido temperada pela aquiescência, embora uma reação possivelmente mais honesta seja encontrada numa carta a MacGreevy escrita logo depois: "Eu não estou fazendo nada. O Charles ter 'foutado à la porte' [expulsado] o meu 'Ossos de Eco', o útimo conto, em que eu coloquei tudo que eu sabia e, melhor ainda, muito do que eu tinha consciência, causou-me profundo desânimo [...] Mas sem dúvida ele tinha razão. Eu digo isso a ele, portanto tudo isso é 'entre nous'" (6 e dezembro de 1933). De fato, o fracasso do conto levou Beckett a escrever um poema com o mesmo nome, e ele acabou sando o título de novo para o seu primeiro livro de poemas, "Echo's Bones and Other Precipitates" (1935). E, apesar de certamente ser difícil para ele pensar de qualquer outra maneira na época, escrever o conto não foi um esforço totalmente baldado, já que ele transferiu material de "Ossos de Eco" para um final revisado de "Draff", e assim para o todo de "More Pricks Than Kicks"; Prentice (no dia 11 de dezembro de 1933) elogiava "o trecho novo no final", referindo-se a ele como "definitivamente melhor".

PERSONAGENS BIZARROS

Numa primeira leitura de "Ossos de Eco", não se pode evitar certa empatia com a decisão de Prentice de rejeitar o conto. Como um dos primeiros críticos, Rubin Rabinovitz, resumiu: "A ambientação é irreal, a trama é improvável, os personagens são bizarros" (1955). "Ossos de Eco" é um conto difícil, por vezes obscuro, de tom e atmosfera irregulares e evasivo ao declarar seus temas. Ele está eriçado de tensões que surgem de sua natureza fragmentária, de seus incessantes empréstimos intertextuais, de como ele muda de estilos literários e é alusivo, de sua linguagem ousada, características que em nada ajudam o conto a fundir-se num todo uno, nem mesmo do tipo "involuntário" que caracterizava "Dream of Fair to Middling Women". Mas, se o conto é louco e indisciplinado, também o é de maneira brilhante, especialmente ao exibir e ao mesmo tempo conter a revelação de seus "mistérios esfarrapados" ("Draff"). Seu ludismo imaginativo mistura estilos e fontes, todos eles acenando para Joyce mas no fim estabelecendo algo muito mais distintamente beckettiano.

Beckett obviamente sofreu para escrever o conto. Sua correspondência com MacGreevy dá mostras do fato de que seu coração não estava de fato no livro como um todo ("Mas é tudo quebra-cabeça e eu não estou interessado") considerando "More Pricks Than Kicks" uma concessão ao mercado, e em termos de mérito literário uma obra inferior ao que ele tinha tentado fazer com o romance "Dream". Mais ainda, as impressões de Beckett a respeito de sua atividade criativa devem ter sido complicadas pela morte do seu pai poucos meses antes (26 de junho de 1933), que pode ter contribuído para sua decisão de abandonar o tipo de escrita alusiva, fragmentária e no limite joyceana que podia até satisfazer seus próprios critérios artísticos mas não seria uma fonte de renda. Como resultado, a luta de Beckett para escrever o conto fica evidente em toda a superfície do texto. Os próprios personagens estão aparentemente tentando manter uma história andando enquanto ela tenta a cada momento sabotar essas tentativas. Mais de uma vez, por exemplo, o texto se obstrui, como quando Lord Gall "não conseguiu continuar com o que dizia".

Naturalmente, o maior desafio para Beckett ao escrever essa "labutaria", como o próprio conto se chama, era como garantir sua consistência com o livro como um todo. Ele deve ter decidido que era mais fácil fazer Belacqua ressurgir dos mortos e acrescentar um conto no fim do livro do que alterar a unidade, se é que ela existe, de "More Pricks Than Kicks" inserindo um conto em um outro ponto. Durante todo o volume, Belacqua transita por um mundo de amor e morte, e em "Ossos de Eco" ele encara uma vida após a morte. Mesmo antes de seu precoce falecimento durante uma cirurgia no conto "Yellow", Belacqua foi descrito (em "Dream") como "uma horrenda criatura-limite", um estado ontológico reforçado em "Ossos de Eco" por sua posição na abertura, sentado numa cerca. Apesar de ser um fantasma, e não ter sombra, Belacqua é basicamente uma entidade corpórea, trazida de volta à vida para redimir-se de seu narcisismo, de seu solipsismo e de ser um "poltrão burguês indolente" nos contos anteriores, indolente como seu xará na "Divina Comédia" de Dante.

O conto, autorreferencialmente, se autodenomina como um "tríptico", e é de fato uma peça em três movimentos, cujos painéis, no entanto, mal chegam a gerar um todo. A primeira parte conta a história da ressurreição de Belacqua e do seu encontro com a prostituta Senhorita Zaborovna Privet. A segunda trata do gigante Lorde Gall d'Artemísia, que não consegue gerar um filho e vai perder suas terras para o fértil Barão Extravas caso morra sem deixar testamento. Lorde Gall, assim, pede que Belacqua o ajude a tornar-se pai; Belacqua consente, e Lady Moll Gall de fato dá à luz uma criança – uma menina, já que se trata de uma história da carochinha. O conto então passa em seu trecho final abruptamente para a imagem de Belacqua sentado em sua própria lápide, assistindo enquanto o zelador Doyle rouba seu túmulo. Apesar de Doyle já ter aparecido como um personagem menor e sem nome em "Draff", os outros personagens principais são novos no livro. Mas numa tentativa de estabelecer uma noção de continuidade entre "Ossos de Eco" e os outros contos de "More Pricks", Beckett reintroduz vários personagens mesmo tendo matado muitos deles (inclusive Belacqua) durante o livro, como consta do resumo na abertura de "Draff": "Aí logo depois disso eles de repente pareceram morrer, todos, Lucy, claro, há muito tempo, Rudy devidamente, Winnie por decência, Alba Perdue como consequência natural de ter sido vista em casa". Mesmo assim, em dois momentos de "Ossos de Eco" um cortejo de personagens passa pelo fundo da cena. Por exemplo os Parabimbi e Caleken Frica fazem uma aparição, assim como a (falecida) Alba, um dos interesses românticos de Belacqua, que emerge surrealmente num submarino que transporta as almas dos mortos. A reintrodução desses personagens, que nada acrescentam à trama, ou tramas, presumivelmente levou à referência de Prentice à "louca e insondável energia da população".

Quanto às "horríveis e imediatas mudanças de foco", praticamente não há sentença em "Ossos de Eco" que não seja emprestada de uma ou outra fonte, dando força à declaração do próprio Beckett: "Eu coloquei [no conto] tudo que eu sabia e melhor ainda muito do que eu tinha consciência". Essas referências vão do abstruso ao popular (Marlene Dietrich, canções francesas), e estão gravadas no texto tanto aberta quanto dissimuladamente. Em termos composicionais, "Ossos de Eco" serve-se principalmente do mencionado caderno de Dream; essencialmente Beckett usou as citações do caderno que ele ainda não tinha usado no romance de mesmo nome ou em "More Pricks Than Kicks". Ou Beckett estava catando o que estivesse à mão, em sua pressa de completar seu último conto para a Chatto & Windus, ou estava reencenando uma estratégia composicional que havia ficado marcada no jovem escritor graças ao exemplo de Joyce. "Ossos de Eco" é, sem sombra de dúvida, mais densamente alusivo, mais joyceano, que qualquer dos escritos de juventude de Beckett; tanto num nível verbal quanto estrutural, ele reúne vastas fontes, da ciência e da filosofia à religião e à literatura. Como sugere seu título, trata-se de um conto feito de ecos, de alusões a múltiplos contextos culturais. No entanto, como John Pilling comentou, em alguns momentos há "tantos ecos que eles parecem se multiplicar até o infinito, e no entanto são pouco mais que o esqueleto do material, e estão desprovidos de algum objetivo maior a que pudessem dar vida" (Pilling 2011, 104). Os saltos entre as três partes do conto, do mesmo modo que as referências tanto eruditas como contemporâneas, parecem aleatórios, o que só se vê realçado pelas mudanças de registro. O estilo se serve de diversos períodos literários, e a linguagem oscila entre o ornamentado ("Arquipélagos de troncos podados, polvilhados de clareiras") e o urbano (gírias de Dublin).

O conto é um paralelo estrutural e conceitual do vislumbre que Dante tem da vida após a morte na "Divina Comédia", e brinca com formas de redenção que correspondem às perversões reais do pecador. O tom purgatorial de todo o texto é ampliado por trechos tirados da Bíblia, da "Imitação de Cristo" de Tomás de Kempis e de "The Rule and Exercises of Holy Living and Holy Dying" (1650-51), este último um livro que Beckett estava lendo na época em que escrevia o conto. No entanto, e apesar das muitas citações das "Confissões" de Santo Agostinho, não se trata de uma história de castigos, conversão e salvação. A bem da verdade, qualquer possibilidade de salvação religiosa para Belacqua se vê minada pela enfiada de trocadilhos sexuais (eruditos ou infantis), piadas baixas e terminologia derivada da flagelação, infertilidade e homossexualismo, especialmente na segunda parte do conto. Os temas da impotência e da esterilidade são entretecidos no conto, cobertos de alusões literárias mas também sexuais. A ameaça do sexo reprodutivo, visível por toda a obra jovem de Beckett, aqui é comicamente desconsiderada, e a boca-suja generalizada deve muito ao marquês de Sade, cujo "120 dias de Sodoma" Beckett viria ainda a considerar traduzir para o inglês.

MITO

A luta para definir o que está em jogo no conto é ainda mais árdua pelo emprego de recursos provindos de gêneros e narrativas fantásticos, não realistas. Uma dessas áreas é o mito; como o título já sugere, Beckett emprega a história de Narciso e Eco, das "Metamorfoses" de Ovídio, para emoldurar a jornada "pós-óbito" de Belacqua, de personagem vivo a eco vocal, até que apenas restem seus ossos no quadro que encerra o conto. Beckett também investe os fatos de uma atmosfera gótica, especialmente no trecho final que se passa num cemitério. Talvez mais surpreendente seja o uso do conto de fadas, uma forma que tem mais peso na obra jovem de Beckett do que normalmente se reconhece. Fundindo contos de fada, sonhos góticos e mitologia clássica, "Ossos de Eco" é em parte um conto fantástico repleto de gigantes, casas na árvore, mandrágoras, avestruzes e cogumelos, servindo-se de uma tradição folclórica como a que foi popularizada por exemplo por W. B. Yeats e os Irmãos Grimm.

Os experimentos de Beckett com a forma do conto de fadas, e a hilaridade geral do toma lá dá cá entre Belacqua e o Lorde Gall, obscurecem mas não chegam a obliterar a sensação de dor e de ausência que domina o conto. De fato, como indicam suas palavras de abertura, "os mortos morrem mal", e Beckett pode muito bem ter pensado na morte de sua prima e amante, Peggy Sinclair (em maio de 1933, de tuberculose), e do seu pai (em junho de 1933) quando estava escrevendo o conto. De fato, os vários aglomerados de temas – ressurreição, cemitérios, questões legais de propriedade e sucessão, e o fato de que Lorde Gall não tem filho, exatamente como Beckett não tem pai – sugerem uma preocupação incômoda demais para ser declarada mais diretamente. Enquanto no mundo literário de "Dream of Fair to Middling Women" era "impressionante como tudo se pode acabar como um conto de fadas", no mundo real isso simplesmente não era possível. Dessa maneira as palavras finais de "Ossos de Eco" (que ocorrem duas vezes no conto), tiradas dos irmãos Grimm, fundem o elemento de conto de fadas com um tom de resignação e aceitação: "É assim neste mundo". Como "Ossos de Eco" é um conto sobre pais e filhos ausentes, sobre a vida após a morte e sobre o estado deplorável do mundo, mal chega a ser uma surpresa que seu principal diálogo literário seja com o "Hamlet" de Shakespeare. Tanto no nível temático quanto no verbal, Hamlet literalmente assombra todo este "Ossos de Eco".

É claro que será impossível determinar se os primeiros leitores teriam "estremecido" de desorientação, como Prentice previu, quando lessem "Ossos de Eco" como parte de "More Pricks Than Kicks". Ou, para dizer de outra maneira, se o conto realmente "cabe" naquele livro. Seria possível argumentar que Beckett, sabendo ter um contrato para aquele livro, voltou ao modo de escrita que preferia na época, o estilo exuberante conquanto enigmático de "Dream of Fair to Middling Women". De qualquer maneira, ao mesmo tempo em que é interessante ler "Ossos de Eco" como parte de um livro que ele deveria fechar, o conto é autossuficiente. E não precisamos vê-lo nem como um passo na direção do adeus de Beckett ao estilo acumulativo de escrita de Joyce, ao liquidar seu estoque de citações, nem como um texto emocionalmente carregado que – como se descreve o livro de Walter Draffin no conto "What a Misfortune" de "More Pricks" – era simplesmente "uma lixeira para tudo de que ele não conseguia se livrar de maneira normal". O mérito literário de "Ossos de Eco" é evidente; mais ainda, trata se de um documento vital que representa o elo perdido no desenvolvimento de Beckett durante os anos 1930, e sugestivamente antecipa os textos do pós-Guerra, estabelecendo um impasse que será renunciado em Esperando Godot e outros textos: "Eles dão à luz escanchados sobre uma cova, a luz cintila um instante, depois é novamente noite". "Ossos de Eco" nos permite testemunhar um escritor jovem em paz e ao mesmo tempo em conflito com os contextos culturais do seu tempo, tentando forjar um caminho literário.

MARK NIXON, diretor da Fundação Internacional Beckett, foi responsável pela primeira edição de "Ossos de Eco", em 2014. Este texto integra a edição brasileira do conto, que a Biblioteca Azul lança em novembro.

CAETANO W. GALINDO, 42, é tradutor e professor da UFPR.

ROGERIO W. GALINDO, 39, é repórter e tradutor.


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