Folha de S. Paulo


Leia o início do conto inédito "Ossos de Eco", de Samuel Beckett

SOBRE O TEXTO Este fragmento é o início de "Ossos de Eco". Escrito por Beckett em 1933 para complementar seu primeiro volume de contos, foi rejeitado pelo editor que o encomendara e ficou inédito até sair em inglês no ano passado. O conto chega ao Brasil em novembro, pela Biblioteca Azul. Leia texto introdutório de Mark Nixon, responsável pela edição agora traduzida.

Foto Edouard Fraipont

Os mortos morrem mal, são invasores do além, têm de aceitar aquilo como está, os poços e bueiros que retornam à lama, até o momento em que o senhor de terras incorra via longa aquiescência num gesto de obrigatório cuidado a respeito deles. Então se veem livres entre os mortos o quanto podem, então encerram-se os problemas, seus problemas naturais. Mas a dívida da natureza, aquele escandaloso pós-óbito cobrado contra nossas próprias posses, pode ser eliminada pelo mero fato de esticar as canelas tanto quanto se pode realizar no mesmo rio uma descida duas vezes. Eis um ditado verdadeiro.

Pelo menos pode-se em verdade dizê-lo de Belacqua que ora se via alerta e ativo no pó do mundo, de volta a seus velhos joguinhos no ponto negro, em tantas ocasiões diferentes que ele às vezes pensava se acaso sua condição desprovida de vida não era toda um sonho e se de todo não estaria ele um bom tanto mais morto antes que depois de sua partida formal, digamos assim, de entre os vivos. Ninguém estava mais disposto que ele a admitir que essa existência individual definida tinha de certa forma curiosa sido uma injustiça e que esse tedioso processo de extinção, suas prolongadas falhas de antigos erros, era a redenção imposta a cada arrivista no mundo do espírito animal, tudo a seu tempo. Mas isso não deixava as coisas mais agradáveis ou mais fáceis de aguentar. Ocorreu a ele um dia ali sentado dobrado ao meio numa cerca tal qual um casse- poitrine em deliciosos devaneios e tragando lá seu Romeu e Julieta que talvez se tivesse sido cremado em vez de enterrado diretamente teria menos probabilidade de revisitar o vômito. Mas para a felicidade geral de todos nós essa ideia era egrégia demais para detê-lo por muito tempo. Tentou tudo que sabia, sem trocar de posição no entanto, para conceber suas exúvias preservadas numa urna ou em outro receptáculo no sanctum de algum homem bom ou errando ao vento qual nuvem de lúbrico pólen, mas de alguma maneira não conseguia realizar direito esse simples voo insignificante. Seria possível que sua imaginação tivesse perecido na câmara de tortura, aquele compartimento onde era proibido fumar? Isso haveria de fato de ser algo a se levar em conta, seria o que um premiado Madden, com olhos antenados como os de um caranguejo-sentinela de tanto zelo e tanta empolgação, chamaria de um passo na direção correta.

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Por declarar então às claras logo tudo de uma vez, Belacqua é um humano, defunto e inumado, restaurado à selva, sim de fato restaurado à selva, completamente exausto, consciente de seus defeitos, sentado em sua cerca, dia após dia, tendo lá sua palpitação, cutucando o nariz entre os charutos, sofrendo muito exposto aos elementos. Ei-lo então e a posição de onde se lança, à qual corre até o risco de retorno depois do fiasco, em que se instala para cada dose de expiação de grande vigor, de onde é catado a cada vez um nonada melhor, mais seco, menos esnobe nato. Tais predicados não o cobrem, quantidade alguma poderia. Se como denso tecido de corpóreos herdanços – rá! – era despredicado, quem dirá quanto mais assim fantasmo? Mas cobrir elas cobrem o menor, o menos apresentável dos aspectos dessa cruel reversão, da qual ousamos apresentar três cenas, a primeira, a central e a final, como material provável desta labutaria, deste mínimo tríptico.

Por começar então pelo começo, ele se sentiu entorpecer entre os grises cardumes de anjos, seus cofalecidos, que lotavam o sepultútero, distintamente se sentiu escorregar de uma beata lassidão que era infinitamente mais lisa que o óleo e mais mole que abóboras, viu-se lutando em vão contra o hediondo torpor e a areia e o clarão das pálpebras sobre os globos de há tanto envoltos em melancolia, e quando se deu conta era arrastado por assim dizer por ser disciplinado com vontade sobre a cerca conforme supra, dobrando os sinos nos campanários todos, com bolsos plenos de charutos. Tirou a fita de um só deles, acendeu, olhou no fundo do coração e exclamou:

"Minh'alma começa a ser indolentemente aguilhoada e atormentada, retornam todas as dores e mágoas das tralhas da alma!"

Mal havia tal ideia irrompido de seu cérebro como um fosfato renal quando uma mulher saltou da moita e se pôs a sua frente, serena mas não relaxadamente alegre. E ali ficou, abertamente provocando que viesse e sem dúvida, estendendo num abraço suas sacras mãos pululáveis de milhões de bons exemplos. Nada mesmo havia nela de viúva séria ou virgem anil, nada nem remotamente estéril em sua aparência. Ela seria, se já não fosse, frutífera mãe de filhos de prazeres.

"Me chamam Zaborovna", afetou.

"Eu não estou te ouvindo", disse Belacqua. "Fale mais alto, por favor."

Ora se deve deixar bem entendido que não havia porneias lá de onde vinha Belacqua, nem porneias nem necessidade de porneias. Mas aqui no pó com a noite se preparando para cair a coisa era bem diferente. Belacqua sentia que estava morto havia muito tempo, quarenta dias pelo menos.

"Você é Belacqua", ela disse, "que nós demos por morto, ou sou eu um holandês."

"Sou", disse Belacqua, "devolvido temporariamente por obra de miseráveis fados às porcas e barafundas e pardais fusos da baixa estatura da animação. Mas quem sou nós e quem são tu?"

"Eu te disse", ela falou, "Zaborovna, à sua disposição; e nós, ora nosinho é só um uso impessoal, o reflexivo toscano assim sem mais."

SAMUEL BECKETT (1906-89) escritor irlandês, poeta e dramaturgo, ganhou o Nobel de Literatura em 1969.

CAETANO W. GALINDO, 42, é tradutor e professor da UFPR.

ROGERIO W. GALINDO, 39, é repórter e tradutor.

MARCIUS GALAN, 43, é artista plástico e expõe na galeria Luisa Strina até 14/11.


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