Folha de S. Paulo


crítica

Saga sobre a Jamaica que levou o Booker é boa, mas superpopulosa

RESUMO Livro de Marlon James, vencedor do Man Booker Prize, é uma longa saga sobre seu país. Trata-se de um romance documental cuja trama transcorre entre os anos 1950 e 1990. Com momentos luminosos (e o episódio marcante do atentado sofrido por Bob Marley), a obra peca pelo excesso de vozes, dos 70 personagens.

Echoes/Redferns
Banda The Wailers, de Bob Marley (ao microfone), no show One Love Peace, em 1978; à esq., o premiê jamaicano Michael Manley e seu oponente Edward Seaga (3º da esq. para dir.)
Banda The Wailers, de Bob Marley (ao microfone), no show One Love Peace, em 1978; à esq., o premiê jamaicano Michael Manley e seu oponente Edward Seaga (3º da esq. para dir.)

Comecemos pelo título. "A Brief History of Seven Killings" [Riverhead Books, 704 págs., R$ 66,93; R$ 27,69, e-book Kindle na Amazon; R$ 54,12, livro eletrônico em formato e-pub na Livraria Cultura] não é uma breve história de sete assassinatos. O livro com que Marlon James venceu o Man Booker Prize na última terça-feira (13), um romance documental sobre as dores políticas da Jamaica, é uma exegese emocionante (e às vezes cansativa) da história da ilha. É um épico, mas contado numa sucessão de pequenas frases musicais, vozes explodindo contra o torvelinho da história, sempre desejosa de narrativas organizadas.

Aqui, a trama não é narrada pelos vencedores, mas pelos vencidos. Entre os mais de 70 personagens do livro, há prisioneiros, sequestradores, mães, policiais, traficantes, bandidos gays, capangas com nomes como Funky Chicken ou Bam-Bam, um detetive da CIA, crianças abandonadas, os ferrados, os maus. Parece muita gente? "Que tipo de jornalista você é se não sabe o pano de fundo?", pergunta um prisioneiro ao homem que o visita na cadeia da ilha de Rikers.

Baseado tanto em reportagens recentes como em pesquisa própria, o romance parece propor ao leitor pergunta semelhante. James desce ao nível das ruas para apresentar a Jamaica às vésperas da independência, num desenho que se desenrola a partir das vozes de dezenas de narradores.

Indo da Kingston dos anos 1950 até a Nova York dos anos 1990, o livro retrata, entre outras coisas, guerras de gangues, a política militarizada da ilha e o envolvimento da CIA nela, o corrosivo tráfico de drogas para Miami e Nova York e a dolorosa confusão racial vigente na Jamaica. E, no centro dessa órbita possante, a tentativa de assassinato de Bob Marley, em 1976.

Enquanto o Cantor, como ele é chamado ao longo do livro, se preparava para lançar seu grande álbum "Exodus" (1977), sua ilha se desfazia. Reinavam a escassez de alimentos e a violência das armas. Na sequência da saída dos senhores britânicos, a infraestrutura havia se deteriorado. Como em tantos Estados antes dominados por potências coloniais, partidos políticos –no caso, o Partido Nacional Popular (PNP), que se inclinava para Cuba, e o conservador Partido Trabalhista da Jamaica (JLP), sustentado pela CIA– preencheram o vazio do poder com suas milícias.

Ao passo que ascendia no exterior, Marley se viu presa desses dois partidos e de seus cada vez mais violentos seguidores.

James poderia facilmente ter optado por narrar só essa trama –a história de um homem lidando com essa responsabilidade, vendo sua vida ameaçada e seu sonho desmoronando. Há, de fato, cenas que cumprem com esse efeito. Mas o autor se dedicou a algo bem mais interessante: saltando de uma voz para outra, ele elucida por que um cantor como Marley tinha de existir e o que fez sua existência e suas canções tão perigosas.

Ao fazê-lo, James escreveu um livro perigoso, cheio de sabedoria, burburinho e história. Em algum lugar, um agente da CIA está lendo esse livro com lupa.

Por outro lado, essa quantidade de camadas torna complicado seguir tantos personagens, mesmo se uma relação das "dramatis personae" ocupa quatro páginas do livro. Parte significativa deles se sobrepõe de tal forma que acaba atrasando o passo desse romance de proporções mastodônticas. Ao mostrar que ama seu elenco de forma equânime, James impede o pleno desenvolvimento dos personagens mais palpáveis –os que funcionam bem têm vozes realmente incríveis.

ENERGIA

Embora Marlon James, nascido em Kingston, em 1970, tenha escrito dois romances densamente imaginativos ambientados na Jamaica, nenhum dos livros anteriores –"The Book of Night Women" (O livro das mulheres da noite, 2009) e "John Crow's Devil" (O demônio de John Crow, 2010)– prepara o leitor para a força e a energia deste "A History of Seven Killings".

Os capítulos breves e líricos eclodem na página em uma miríade de registros, indo do fluxo de consciência profano e carregado de patoá ao ramerrão profissional dos políticos. As melhores vozes são tão vívidas que parecem ter sido gravadas –o que um jornalista de fato faz na trama.

Boa parte da carga dramática de "A Brief History of Seven Killings" advém das lutas de poder. Num nível macro, há a CIA tentando derrubar o primeiro-ministro jamaicano Michael Manley, cevando a ilha com armas para desestabilizar o quadro. No âmbito da sociedade local, há os chefões das gangues, homens como Papa-Lo, que ascendeu até dominar Copenhagen City, um bairro que afunda em meio à violência política.

Ele, por sua vez, está na mira de outro gângster, Josey Wales, e outros passarão a estar, à medida que a ação se desloca para a guerra das drogas em Miami e Nova York.

James nos conduz de forma elegante por entre essas batalhas sangrentas, mas seus personagens mais memoráveis são aqueles que provavelmente passariam despercebidos pela história. O melhor exemplo é Bam-Bam, que vê seus pais serem mortos de forma hedionda. Papa-Lo o acolhe e lhe dá uma arma. O registro de voz do personagem vai da dor mais poética à bravata sincopada, numa dolorosa música. Acreditamos que um garoto que se faz homem dessa maneira, ao olhar para um astro como Marley só pode dizer: "A única luz que se vê está no palco, e eu, perdido na escuridão". "Você não tem que olhar pra mim, como Deus não olha pros homens."

Duas forças propelem esse grande livro. Por um lado a história, que evolui em seus mistérios inexoráveis. O atentado contra Marley é planejado e fracassa; as consequências são feias. Ao mesmo tempo, há o esforço por entender esses eventos, representado pela figura de Alex Pierce, um jornalista enviado pela revista "Rolling Stone" para fazer uma reportagem na ilha. Ele, contudo, também se perde na trama. "Quanto mais eu dava bebida pro cara", diz ele numa entrevista, "mais ele falava, e quanto mais sóbrio ele ficava, menos a história fechava".

Sensação semelhante desconcerta o leitor à medida que essa portentosa saga se contorce na reta final. O que chamamos verdade é, afinal, impossível de apreender.

James bebe de teorias acerca de quem fez o quê e por que, e narra a jornada de Marley no ritmo de um thriller. O que ele consegue, no entanto, é muito mais do que trazer à luz esse episódio na vida do grande músico. Ele ilumina as ruas, seu povo, em especial os mais desesperados, os jamaicanos aos quais, em "Exodus" Marley conclamava a abrir os olhos e ver se, no fundo, era possível se satisfazer: "Open your eyes and look within:/ Are you satisfied with the life you're living?".

JOHN FREEMAN, 40, é escritor e editor. Autor de "Como Ler um Escritor" (Objetiva), ele acaba de lançar uma nova publicação semestral dedicada à literatura, "Freeman's".

FRANCESCA ANGIOLILLO, 43, é editora-adjunta da "Ilustríssima".


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