Folha de S. Paulo


Quem traduz o quê? O caso de um conto de Tolstói

Tradução é uma atividade bem mais presente em nosso cotidiano do que supomos. Não me parece exagero tratá-la como uma faculdade inerente à experiência de comunicar-se e viver em sociedade. Tudo o que queremos dizer ou exprimir é objeto de um processo de tradução: na origem, traduzimos uma experiência não verbal para a linguagem verbal organizada. Mas tudo o que lemos ou ouvimos é, também, traduzido em nossos próprios termos, verbais ou não. E não adianta: no terreno das relações de linguagem, não existe pureza nem forma final e positiva.

São afirmações categóricas, mas elas têm uma história. Como tradutor, estritamente falando, segundo a nomenclatura das profissões reconhecidas, ou seja, como um trabalhador meio braçal e meio intelectual que transpõe textos de outro idioma para o português, deparei muitas vezes com situações que punham em questão a noção de tradução que guiava meu pensamento, na sombra, à maneira de um piloto automático. Entre tais situações, uma das mais marcantes se apresentou diante de mim na forma de um título de conto de Liev Tolstói.

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O escritor russo Liev Tolstói
O escritor russo Liev Tolstói

Não era um conto desconhecido, longe disso. A rigor, um relato que figura há décadas em antologias pelo mundo afora. Em russo, "Khoziain i Rabótnik", que em outras línguas vinha como "Master and Man", "Maître et Serviteur", "Herr und Knecht", "Senhor e Servo". Ou seja, nem sombra de polêmica. Mas as traduções que eu já fizera de Tolstói me haviam ensinado a desconfiar de soluções largamente repetidas, cujo efeito, em regra, é a diluição do teor crítico do autor, direcionado, sobretudo, para as várias formas de desigualdade.

No caso, a desigualdade se materializava, ou se traduzia, desde o início, na estrutura do título. Mas, afinal, qual era o problema para o tradutor? As traduções consagradas e, digamos assim, consensuais recorriam a palavras que se referiam a um padrão muito antigo de relação de trabalho. Em inglês, a palavra "man" era usada no sentido de serviçal doméstico em fazendas da nobreza da Inglaterra. Não muito diferente do francês "serviteur" ou de "servo", em português. Em alemão, o recuo histórico é mais impressionante ainda, pois "Herr und Knecht" é exatamente a expressão que Hegel, no século 18, adotou para denominar a sua célebre dialética do senhor e do escravo. O mesmo valia para as formas "Master", "Maître" e "Senhor", que remetiam também a figuras sociais desaparecidas havia muito tempo.

Tolstói escreveu seu conto em 1895, às portas do século 20. A servidão na Rússia tinha terminado havia mais de trinta anos. Acima de tudo, as palavras russas do título eram integralmente atuais no tempo de Tolstói, como são ainda hoje: nelas, não há o menor traço de arcaísmo linguístico, tampouco qualquer menção a formas de relações sociais antigas e extintas.

Como tradutor, fiquei curioso e experimentei inverter a posição das línguas. Verifiquei que a tradução para o russo da dialética do senhor e do escravo de Hegel não usa as palavras do título do conto de Tolstói, mas sim "gospodin i rab", senhor e escravo –estas, sim, palavras com nítido teor arcaico. Ora, é como se todas aquelas traduções a que me referi estivessem nos dizendo: o título correto, em russo, do conto de Tolstói deveria ser "Gospodin i rab". Tolstói, mais uma vez –é o que nos dizem essas traduções–, usou sua mão pesada de conde mujique e temos de corrigir esse gesto bárbaro.

Adotei, então, o título "O Patrão e o Trabalhador", mas confesso que relutei. Veio a sensação estranha de que estava falando o que não devia e de que poderia ser punido. De que forma? Das muitas formas sutis e impessoais que, hoje em dia, se traduzem, por exemplo, na preferência nos departamentos de RH das empresas pela palavra colaborador, para denominar o trabalhador (é melhor falar baixo), o qual, desse modo, entende não ter alternativa, a não ser colaborar ou ser alijado. Talvez, um dia, alguém traduza o título do conto de Tolstói como "O Empreendedor e o Colaborador", cujo efeito atenuante não é tão distinto do recuo para o passado remoto, e historicamente nulo, contido em formas como "Senhor e Servo". Pois nas ruas, na tevê, nos jornais, é o patrão quem traduz o trabalhador.


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