Folha de S. Paulo


Zaha Hadid, uma visionária cujas ideias nem sempre fazem sentido

Para admirar o esplendor do caríssimo Centro Aquático construído para a Olimpíada de 2012 em Londres, é preciso perdoar suas falhas. A estrutura do telhado necessitou de dez vezes mais aço que o velódromo, que torpedeou as alegações de sustentabilidade dos organizadores.

Durante os Jogos, a necessidade de milhares de assentos temporários adicionais –algo que sempre foi uma parte básica dos requisitos do projeto– foi atendida com muito incômodo, o que significou que qualquer coisa positiva que pudesse haver no projeto de Zaha Hadid só pôde ser plenamente apreciado quando as multidões olímpicas já tinham ido embora. Houve queixas sobre vistas que, apesar de se enquadrarem com as especificações oficiais, cortavam a visão do topo do trampolim para quem estava nas fileiras superiores, de uma maneira que parecia gratuita. Em seu estado atual, há alguma confusão: o que a arquitetura da obra sugere é que a entrada, sob um pórtico que se projeta com ousadia, não é de fato a entrada principal, e os visitantes são obrigados a procurar uma entrada lateral, menos evidente. O enorme paredão de vidro do prédio hoje está coberto de uma faixa feia de plástico azul. A explicação oficial disso, dada pela London Legacy Development Corporation, é que a medida visa "permitir controle maior da luz".

No caríssimo Museu Riverside dos Transportes, em Glasgow, outro projeto de Hadid, as mostras ficam penduradas no espaço de uma maneira que, embora seja espetacular, significa que os aficionados não conseguem ver os objetos de perto. Aas paredes inclinadas e os espaços cavernosos interrompidos por rampas salientes da também muito dispendiosa galeria de arte Maxxi, em Roma, representam um desafio excepcional para quem quer expor no local. O prodigiosamente caro (sim, o custo é um tema recorrente) Estádio Olímpico de Tóquio, cuja construção foi cancelada não obstante protestos acirrados de Hadid e defensores dela como Richard Rogers, foi criticado por arquitetos japoneses conceituados devido a seu impacto sobre o espaço verde e construções históricas.

Nesses casos, a responsabilidade pelas falhas orçamentárias e técnicas tende a ser uma questão complexa e contenciosa, que envolve várias partes. Quando os custos do Centro Aquático subiram muito, foram atribuídos a mudanças nas exigências originais e à incorporação de uma nova ponte no projeto. Com o estádio de Tóquio, o escritório de Hadid disse que os clientes não levaram em conta a inflação dos custos de construção.

Pode-se considerar que houve um elemento subjetivo em algumas dessas questões, como os modos de exposição de carros e aviões em Glasgow ou de expor arte em Roma. Mas não há dúvida de que a abordagem seguida por Hadid ao projetar construções dificulta e encarece a construção das obras e aumenta a probabilidade de concessões à funcionalidade. Um dos maiores fãs de Hadid, o arquiteto Piers Gough, disse isso num perfil da arquiteta produzido pelo programa "Imagine", da BBC. Uma curva simples, ele explicou, exige dinheiro para ser construída; curvas complexas, que seguem em várias direções ao mesmo tempo e têm geometrias irregulares, custam muito dinheiro. Os projetos de Hadid empregam muitas curvas desse tipo, além de ambiciosas vigas em balanço, vãos livres amplos, vidro sem moldura e outros elementos que elevam os orçamentos. No design à moda de Hadid, a forma vem em primeiro lugar; os meios de chegar a ela, em segundo.

Sei disso por minhas experiências próprias de trabalho com Hadid e seu escritório entre 2004 e 2008, na nova sede, nunca concluída, da Architecture Foundation. O orçamento se multiplicou a perder de vista. Teria sido preciso demitir um profissional de uma organização então pequena apenas para pagar as contas de lavagem de suas fachadas envidraçadas amplas e difíceis de alcançar. Ao mesmo tempo, os espaços administrativos não ganharam vista externa alguma. Teria sido impossível manter o café aquecido durante o inverno.

Mais uma vez, as razões desses problemas eram complexas, e muitas partes interessadas fizeram avaliações questionáveis, mas os problemas também tiveram alguma ligação com a atitude dos arquitetos. Tudo isso poderia levar o observador casual a se perguntar por que o escritório de Zaha Hadid continua a atrair encomendas de obras de importância imensa e por que ela foi agraciada com a Medalha de Ouro Real de arquitetura.

Com certeza, reza o argumento razoável, cabe ao arquiteto criar uma construção que funcione, que atenda aos requisitos iniciais propostos, que seja erguida dentro do prazo e do orçamento propostos. É difícil achar argumentos contra isso, mas esse raciocínio teria sufocado no nascedouro muitas das obras arquitetônicas maiores e mais apreciadas do mundo: o palácio de Westminster, a estação de St. Pancras, a Casa de Ópera de Sydney, o Centro Pompidou, Fallingwater, de Frank Lloyd Wright, a maior parte dos trabalhos de Antoni Gaudí.

A bela igreja de Il Redentore, de Andrea Palladio, em Veneza, custou sete vezes seu orçamento previsto e tinha uma acústica péssima. Catedrais góticas desabavam corriqueiramente. E Hadid não é a única de seus pares a ter esse problema. Arquitetos famosos como Santiago Calatrava, Richard Rogers, Norman Foster e Rem Koolhaas já assinaram projetos que superaram seus orçamentos e apresentaram falhar técnicas, em alguns casos falhas enormes, como é o caso de Thomas Heatherwick, que não é um arquiteto, na realidade, mas cada vez mais vem trabalhando em escala arquitetônica.

Em todos os casos, a justificativa se liga a certo grau de genialidade; em termos de prestígio e relações públicas, essa genialidade às vezes supera os inconvenientes de contratar esses arquitetos. No caso de Hadid, ela conquistou sua posição com o poder de seu design e sua força de caráter.

OUSADIA

Hadid irrompeu no cenário arquitetônico no início da década de 1980 com projetos irrealizados de ousadia extraordinária, representados por pinturas quase abstratas de força e originalidade. Aquela foi uma época cautelosa e insossa da arquitetura, traumatizada pela perda de confiança no movimento modernista, mas isso não inibiu Hadid em nada. Ela expandiu as possibilidades da arquitetura de modos que ainda estão sendo explorados por outros arquitetos, incluindo por muitos que não apreciam seu trabalho.

Em termos pessoais, Hadid tem sido corajosa. Em termos de personalidade, estilo e autoapresentação, ela se recusou a adequar-se ao que se esperava de uma profissional mulher ou à atitude cuidadosamente controlada de muitos outros arquitetos. Hadid é direta, divertida, empolgada, por vezes generosa, às vezes furiosa.

Abandonar no meio uma entrevista ao programa "Today", como fez na semana passada, devido a uma linha de perguntas propositalmente mal-informada de Sarah Montague, é uma atitude inteiramente condizente com sua personalidade.

Hadid já teve motivos fortes para abatimento, e sobreviveu, como quando seu premiado projetos para a Casa de Ópera Cardiff Bay receberam uma facada pelas costas. Na época, meados dos anos 1990, não era evidente que ela algum dia teria mais que algumas construções modestas em seu nome.

Mesmo assim, o argumento da obra-prima –a ideia de que praticamente qualquer coisa pode ser desculpada graças ao talento e à personalidade– está deixando de ser convincente. Não seria melhor se arquitetos pudessem criar obras excepcionais sem causar dores de cabeça enormes para seus clientes? Há muitos que o fazem. E o modo como Hadid trabalha insere seus projetos em uma categoria especial –a do símbolo de status do tipo "dinheiro não é problema"–, voltada a indivíduos, empresas ou Estados, especialmente os que não precisam se preocupar muito com a opinião pública. São "datchas" criadas para oligarcas, edifícios residenciais em Miami, shopping centers em Pequim, o estádio da Copa do Mundo em Qatar, o Centro Heydar Aliyev, em Baku, Azerbaijão.

Essa tendência expõe a arquiteta a outra crítica importante: a de cumplicidade com os abusos cometidos por aqueles para os quais trabalha. Foi esse o argumento usado no ataque de Montague, infelizmente enfraquecido pela sugestão falsa de que 1.200 operários teriam morrido na construção do próprio estádio do Qatar.

Novamente, Hadid poderia observar que, quando se trata de lidar com déspotas, outros arquitetos também o fazem, sem falar no Comitê Olímpico Internacional, em empresas multinacionais, instituições culturais respeitadas, no prefeito de Londres e no ministro da Economia britânico. Mais uma vez, a desculpa de que todos o fazem só funciona até certo ponto. Ela não responde à pergunta fundamental. E se arquitetos como Hadid se pautassem mais por princípios na hora de escolher seus clientes? E se eles se unissem e formassem uma frente comum? Isso não poderia ser uma força para o bem?

Mesmo que seja demais pedir aos arquitetos que mudem a sociedade, a produção de troféus também enfraquece os valores arquitetônicos que eles deveriam representar. A teoria por trás da abordagem de Hadid é a de que um desenho revolucionário pode revolucionar e tornar mais livre o modo como as pessoas vivem nas cidades; que pode encorajar internações novas e dinâmicas entre cidadãos, o povo e a cultura.

Mas as construções que estão saindo do escritório de Hadid são obras conservadoras –estádios, palácios da cultura– vestidos de um estilo modernista. A despeito de todo o discurso de dinamismo congelado, são monumentos. A liberdade de suas formas não se traduz em liberdade para seus usuários, que, pelo contrário, tendem a ver suas opções limitadas pelos espaços exigentes.

Em algum momento dos últimos dez anos, Hadid e seu escritório poderiam ter aproveitado a fama e o status recém-conquistados de uma de duas maneiras. Poderiam ter reforçado seu ponto fraco, que é o alto grau de dificuldade envolvida na realização de suas obras, de maneira que pudessem realmente ter transformado a experiência cotidiana de viver em cidades. Ou poderiam ter empreendido a criação de ícones cada vez mais elaborados e desconexos. Foi isso, infelizmente, que eles optaram por fazer.

SAIBA MAIS SOBRE ZAHA HADID

Nasceu em Bagdá em 31 de outubro de 1950 com o nome Zaha Mohammad Hadid. Seu pai liderou o Partido Democrático Progressista iraquiano. Formou-se em matemática na Universidade Americana de Beirute e então estudou na Architectural Association School, em Londres.

Melhor momento: a semana passada, quando recebeu a real medalha de ouro 2016 de arquitetura do Real Instituto de Arquitetos Britânicos, tornando-se a primeira mulher a ser agraciada com o prêmio por sua própria obra.

Piores tempos: Hadid sofreu durante anos por ser conhecida por projetos que não eram realizados. Sua maior decepção foi provavelmente o fato de a Casa de Ópera de Cardiff Bay não ter sido construída.

O que ela diz: "Ninguém jamais vai me procurar e dizer 'não gosto de você' ou 'temos medo de você pelas razões x, y e z'. Já perguntei a muitas pessoas o que é que não gostam em mim, e elas não querem dizer. Acho que elas têm medo de não conseguir me controlar."

O que outros dizem: Hadid é "um planeta em sua própria órbita inimitável". Rem Koolhaas, arquiteto e mentor de Zaha Hadid.

Tradução de CLARA ALLAIN


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