Folha de S. Paulo


Por que não pensamos na África do Norte como parte da África

Quando um artigo do "Guardian" afirmou que Chigozie Obioma era "o único escritor africano" pré-selecionado para a disputa do Booker Prize 2015, seu autor claramente parecia ter esquecido de que há vida ao norte do Saara. Afortunadamente, a escritora Laila Lalami, nascida no Marrocos e um das pré-selecionadas para disputar o prêmio, não demorou a reavivar-lhe a memória, usando o Twitter para escrever "sou africana". "É uma identidade que muitas vezes me é negada mas na qual sempre insistirei."

Conheço bem a frustração de Lalami. A cada vez que declaro minha etnia, me vejo forçada a recordar que "africano negro" é aparentemente a única categoria de africano que existe. Por ser ao mesmo tempo argelina e britânica, constantemente me vejo tendo de explicar por que me identifico como europeia e africana – como se eu estivesse "escolhendo" ser africana, e não porque isso é simplesmente um fato.

Na política e na academia, os países norte-africanos são comumente agrupados com o Oriente Médio, sob o acrônimo Mena (Middle East North Africa, em inglês, ou Oriente Médio e Norte da África). Em conferências sobre "questões africanas" a que compareci, Marrocos, Argélia, Tunísia, Líbia e Egito muitas vezes tinham representação apenas simbólica, se tanto.

Mas a identidade não pode ser simplesmente reduzida à equação "os povos que falam árabe são povos árabes". Ainda existem comunidades espalhadas pelo Magreb que falam berbere ou "amazigh", e um dialeto chamado "darija", carregado de expressões espanholas e francesas. Além disso, ser árabe não é alternativa a ser africano, ou mesmo negro. Os mauritanos e os sudaneses podem se identificar como as três coisas ao mesmo tempo.

O argumento religioso também não é irrebatível. O islã é a religião dominante em porções do leste da África e no Sahel, com comunidades notavelmente grandes na Tanzânia, Quênia, Nigéria, Senegal, Etiópia e Eritreia. Talvez, então, tudo se resuma à cor. Será que ser africano é ser negro? E, se for, que tom de negro seria o correto? Os sudaneses do sul, com sua pigmentação escura, rica e bela, são mais africanos que seus vizinhos ao norte, de pele mais clara? É evidente que uma categorização baseada em raça é redutora demais e ignora a grande diversidade de nações, culturas e etnias do continente.

Isso nos deixa a questão da cultura. Em uma festa, um nigeriano me fez muitas perguntas sobre a Argélia: "É conservadora como a Arábia Saudita?", ele perguntou. "Não", respondi. "É conservadora como a Nigéria".

Quer seja no futebol, na música ou cinema, os argelinos têm mais em comum com os nigerianos do que com os sauditas. O Magic System, lenda do "coupé-decalé" marfinense, uniu forças a Cheb Khaled e 113, pesos pesados do rai, e a artistas menos conhecidos do Magreb. Durante a Copa das Nações Africanas, multidões se aglomeravam em torno dos televisores em todo o continente para assistir a suas seleções nacionais, em um evento que une todos os cantos da África.

A experiência da migração também unifica o continente. Nos "banlieues", os subúrbios pobres da França, imigrantes das antigas colônias africanas do país – ao norte e ao sul do Saara – compartilham da mesma superlotação e da mesma sensação de isolamento e discriminação. Os árabes que dirigem carros esporte ou fazem compras na avenidas dos Champs Elysées serão mais provavelmente dos países do Golfo Pérsico do que do Magreb.

Certamente é possível debater os esforços dos norte-africanos para se distanciarem da "África negra". Isso tem tanto a ver com fontes de influência e poder (depois da independência, países como o Egito e a Argélia buscaram no Oriente Médio seu modelo de nação islâmica, ou na Europa, ao norte, parceiros para alianças econômicas) quanto com o racismo que existe no Reino Unido como em toda parte do mundo.

Talvez a cola que mais conecte a África do Norte ao resto do continente seja a da história colonial. As tropas coloniais francesas incluíam soldados da Argélia, Senegal, Mali, Burkina Fasso, Benin, Chade, Guiné, Costa do Marfim, Níger e República do Congo. Esses africanos combateram lado a lado na Segunda Guerra Mundial, e traços dessa experiência continuam presentes nas memórias coletivas desses países. Os britânicos usaram soldados do Egito bem como muitos de outras antigas colônias, entre as quais a Nigéria, a África do Sul e o Quênia.

Em 1962, África do Sul e a África do Norte estavam ambas lutando contra o colonialismo e o apartheid quando Nelson Mandela foi ao Marrocos para receber treinamento militar da Frente Nacional de Libertação argelina. Em 1969, Argel sediou o Festival da Cultura Pan-Africana. Historicamente, as nações da África compartilharam as mesmas lutas.

É claro que a África do Norte se beneficia da conexão com o Oriente Médio, tanto em termos de negócios quanto de desenvolvimento. A Arábia Saudita é um dos cinco maiores parceiros de exportação e importação do Egito, mas esse relacionamento não deveria ser exclusivo. Marrocos, Argélia, Tunísia, Líbia e Egito compartilham, com o resto da África, não só um passado colonial mas um continente físico. Ainda que identidade seja em larga medida subjetiva, algumas coisas são irrefutáveis, e que a África do Norte é parte da África é uma delas.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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