Folha de S. Paulo


O resgate de uma joia de Villa-Lobos

A Osesp está dando ao maestro Isaac Karabtchevsky a chance de consolidar seu legado fonográfico. Aos 80 anos de idade, o regente paulista comanda o projeto de gravação integral da parte menos conhecida da produção orquestral de Villa-Lobos: as sinfonias.

Não deixa de ser irônico que Karabtchevsky o esteja fazendo com a orquestra que Eleazar de Carvalho turbinou, na década de 1970, para combatê-lo quando ele chefiava a Orquestra Sinfônica Brasileira, no Rio. A rivalidade entre as batutas era tão acirrada que os solistas brasileiros sabiam que, ao tocar com um dos regentes, estavam automaticamente excluídos da lista de convidados do outro.

Carvalho morreu em 1996, virou estátua na Sala São Paulo e, hoje, embora não possua nenhum título oficial, Karabtchevsky funciona como uma espécie de principal regente convidado da Osesp, desfrutando de uma relação próspera e produtiva com a sinfônica.

A Osesp vem dedicando especial atenção à produção de nosso maior compositor. Após gravar uma premiadíssima integral dos "Choros" de Villa-Lobos com John Neschling e fazer também o registro das "Bachianas Brasileiras" com Roberto Minczuk, chegou a hora de abordar as sinfonias –11 ao todo, mas com numeração que vai até o 12 (a quinta, caso tenha sido composta, teve sua partitura extraviada, e jamais estreou).

Iniciado em 2011, o projeto inclui, além da gravação para o selo Naxos, uma revisão musicológica das obras pela editora Criadores do Brasil, que pertence à Osesp –iniciativa para lá de bem-vinda e necessária, dado o estado notoriamente precário do material musical de Villa-Lobos, com uma quantidade de erros que pode chegar facilmente às centenas em cada obra.

O primeiro registro total das sinfonias do compositor foi realizado para o selo germânico CPO, no final dos anos 90, com a Orquestra Sinfônica da Rádio do Sudoeste da Alemanha, de Stuttgart, sob a direção do texano Carl St. Clair. Grandes obras musicais devem comportar mais de uma interpretação, e essa leitura é bastante sólida.

A orquestra alemã tem uma excelência técnica e um equilíbrio com os quais a Osesp nem sempre consegue rivalizar, e muitas das obras, escritas na década de 1950 para célebres sinfônicas dos EUA, estão vazadas em um idioma musical que se pretende "universal" e se distancia do nacionalismo militante que foi marca do compositor.

É o caso da "Sinfonia nº 12", destaque desse quarto volume da série ainda em andamento. Escrita em Nova York, em 1957, estreou com a Orquestra Nacional de Washington, e traz o tipo de linguagem orquestral luxuriante e cinematográfica que se convencionou chamar de romantismo tardio. Karabtchevsky, cujo principal mérito ao longo do ciclo tem sido buscar clareza nas texturas e diferenciar os planos sonoros das peças, realiza aqui uma leitura mais espaçada que a de St. Clair, com tempos mais lentos.

O grande diferencial do CD, porém, reside nas obras que o complementam. Karabtchevsky faz uma leitura também espaçada do mais gravado dos bailados de Villa-Lobos, "Uirapuru", e resgata uma peça empolgante e, até agora, ausente em disco: "Mandu-Çarará".

É quando entra o Coro da Osesp, cuja maneira de cantar idiomática já fora responsável pelo êxito daquela que, até agora, foi a sinfonia mais bem recebida internacionalmente do ciclo, a de nº 10. Misturando vozes adultas e infantis, na língua indígena nheengatu, baseia-se em lendas do rio Solimões para fazer uma apoteose lúdica do deus da dança que dá nome à peça.

Com o mesmo tipo de exuberância dos "Choros nº 10" e um uso extrovertido dos instrumentos de percussão, "Mandu-Çarará" bem estava a merecer um registro vibrante, que ressaltasse suas qualidades intrínsecas e caráter nacional. Talvez uma gravação com essa qualidade fosse o que estava faltando para dar à obra-prima de Villa-Lobos sua merecida notoriedade.

IRINEU FRANCO PERPETUO, 44, é jornalista e tradutor, autor de "Alma Brasileira" (Livro Falante)


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