Folha de S. Paulo


Leia texto inédito em livro de João do Rio sobre a moléstia do ciúme

SOBRE O TEXTO Publicado originalmente no jornal "O Paiz", em 31 de março de 1918, este texto, inédito em livro, estará no volume "Crônica" da Coleção João do Rio. Uma caixa contendo ainda os volumes "Teatro" e "Folhetim" sai pela Carambaia no final de outubro.

Bel Falleiros

Para não falhar a um velho hábito, fui, ontem pela manhã, visitar o meu ilustre amigo, o célebre alienista que assombra a cidade pelos seus processos de tratamento da loucura e sua variada intuição das literaturas doentias e das psicologias mórbidas. Era de manhã, fazia um lindo dia de sol, escandalosamente azul, e o alienista, moço, bem-disposto, elegante, acabava de fazer a sua visita à enfermaria sob sua guarda no Hospício Nacional.

– Há quanto tempo!

– É verdade, há tempos que não venho aprender com o mestre...

– Tens andado ocupado?

– Ocupadíssimo. O mestre, que compreende as moléstias da sociedade, deve imaginar quão grave ocupação é a gente livrar-se da filofobia nacional...

Complacentemente o alienista sorriu, mandou vir café, biscoitos de araruta –porque é louco por biscoitos como o senador Lopes Gonçalves o é por charutos de 100 réis e a rainha da Holanda por doce de ameixas– e indagou:

– Que desejas tu?

– Uma consulta sobre a semana. Deve ter lido os jornais. A cidade atravessa a crise do ciúme. Por toda a parte Otelos, por toda a parte um novo desespero de novas Desdêmonas...

– É verdade; a semana é a semana do ciúme.

– Veja o mestre a paixão triunfante, o amor mostrando o seu hórrido reverso; os grandes sentimentos abrindo fogueiras...

– Os grandes sentimentos? Mas, meu amigo, o ciúme é uma moléstia.

– Moléstia! É impossível! Tudo menos catalogar os grandes sentimentos que dignificam o homem, em um compêndio de psicopatia. O mestre teria contra si os românticos, a cidade inteira, se o afirmasse em público!

– Oh! sim, como acontece sempre que anexamos uma doença até então sentimento normal ou desregramento humano. Quando da bebedeira fizemos a dipsomania, grande barulho; quando dos sem-vergonha criamos os erotômanos, escândalo; quando da paixão de Phedra se inventou a histeria, parecia que o mundo vinha abaixo. Havemos de ter as mesmas cóleras quando anexarmos o ciúme. O barulho acaba e a conquista continua.

– A conquista?

– Ah! sim, a nossa conquista só parará quando tiver purgado a terra de todos os males terríveis que se adoram sob o pseudônimo de grandes paixões, no dia em que a humanidade voltar aos sentimentos médios, afáveis e higiênicos, sem os quais não há nem saúde, nem duração possíveis...

– É uma novidade?

– É uma ideia de Fernando Vauderém que eu reproduzo textualmente. Anexar o ciúme era arriscado. Há muito que a medicina pensava no caso, sem coragem. E não imaginas como nós rimos quando os poetas e os literatos definem a doença –o ciúme é isto, o ciúme nasce daquilo...

É da gente se torcer. O ciúme é simplesmente uma doença mental, e só o receio de um escândalo forçava a medicina a não o declarar. Hoje os tribunais já dão como razão para absolver os assassinos, o ciúme, e, firmados nos dois luminares da literatura dramática, pode-se provar as coisas. Conhece Shakespeare, conhece Molière? Pois esses dois homens têm duas peças típicas, o "Otelo" e o "Misantropo", duas monografias excelentes sobre o ciúme.

É claro que para Shakespeare, Otelo é um doido, e para Molière, o Alceste também é maluco. Em Shakespeare há todos os sintomas de demência: espuma nos lábios, congestões, ataques epileptiformes... Em Alceste, simplesmente bizarrias, furores, perturbações verbais; mas, para quem conhece, a doença é clara, salta aos olhos. A questão está agora em tomar os casos da moléstia do ciúme aqui, sob a influência do meio, e fazer o trabalho capaz de salvar para todo o sempre os homens normais de um bando de malucos e malucos que os poetas acham extraordinários.

– Mas é admirável!

– Com efeito, é admirável porque verdadeira.

– Mais! É o restabelecimento da paz nos casais. Não haver mais ciúmes! Que delícia. O marido está ciumento, zás! para o hospícios; a esposa escuma de furor por ter encontrado uma carta indiscreta –manicômio com ela. Mas, mestre, o senhor é o salvador da humanidade!

– Não sou eu, é a ciência, a ciência que acaba com todos os males humanos.

– E com os humanos também.

– Oh! a ironia! tem um pouco de senso, reflete. O ciúme é uma doença mental do extremo aperfeiçoamento das raças, é como a neurastenia, a surmenagem, e tanto assim que os homens a sentiram primeiro que as mulheres. Estuda a história dos povos antigos e dos que nós chamamos de bárbaros de hoje: plena poligamia e plena poliandria. Não havia ciúme. Veio a ambição, veio o egoísmo, veio o "venha a nós". Um índio do Amazonas, um cafre do sul da África são ainda agora superiores ao mal, dão as mulheres com indiferença. Um sujeito morador em Catumby é capaz de matar toda a freguesia se descobrir que a esposa o engana.

– Conforme.

– Os que não matam são os normais do futuro. Agora, eu, em nome da ciência, agarro o assassino antes do crime, meto-o na minha enfermaria, emprego os processos de acalmação nêurica da Alemanha e fica ele livre de uma morte, o amante livre de morrer e ela livre para o que quiser... Uma vez a sociedade compenetrada de que realmente o ciúme é uma doença como a histeria, a erotomania, o alcoolismo –o terror da camisola de força contém e transforma os temperamentos. Desaparecem os maridos feras, as esposas ferozes, a instituição anacrônica da sogra, os amigos íntimos que vêm contar coisas, os assassinatos, as cenas de sangue, as notícias sensacionais e talvez as casas de armas desaparecessem, se não houvesse a guerra e o permanente perigo alemão...

– De modo que basta a anexação para extinguir o mal?

– Em 1950, meu caro, uma semana de crimes de amor, de suicídios e de assassinatos será tão rara, tão rara que os alienistas ficarão pasmos.

Mas é bom não julgar que a ciência fique restrita a essas anexações. Há outras doenças pelo mundo que precisam do tratamento regular do hospício –a nevrose da poesia, por exemplo, o mal de fazer versinhos; a inveja dos críticos que nunca fazem nada senão descompor os que trabalham; os jornalistas profissionais, doença perigosa que se alastra com aspectos de epidemia; a ânsia científica das senhoras... Ah! a ciência é o progresso! Caminhemos, anexemos! Quando todos esses sentimentos estiverem catalogados, tendo cada um o seu modo de cura, o mundo será o Éden.

A ciência é o progresso!

– Mas, mestre, é o regime do terror da camisola de força!

– Muito mais eficaz que o da Detenção.

– Isso obrigará cada cidadão a ler e estudar os códigos das moléstias nervosas.

– Não há dúvida.

– De modo que o número de alienistas será enorme.

– Ah! Isso não, isso nunca. A psicopatia não é para toda a gente. Nós somos ciosos da nossa profissão...

E como eu risse, do célebre doutor concluiu:

– O ciúme quando é da profissão, é respeito pela ciência.

E friamente despediu-me.

Saí do hospício desolado. Sim, no futuro, o progresso científico acabará com o ciúme à custa de duchas e banhos sedativos; no futuro, Otelo será um monstro, o assassinato por amor, o próprio horror; sim, no futuro, para a ciência, a semana de sangue, de incêndio, de paixão não ressurgirá. Mas, em compensação, outros sentimentos regulares, outros sentimentos denominados grandes estarão, talvez, mais trágicos, mais desesperadores, a estraçalhar a vida; os alienistas, fartos de achar doidos nas ruas, talvez se achem reciprocamente malucos. E assim irá o mundo, no esforço para o medíocre, para o mediano, sempre a arrebatar e a criar na terra a dor e os sentimentos intensos que fazem a vida, fazem o homem, são o reverso miserável desta enorme alegria de viver que todos nós sentimos.

E será esta decerto a "revanche" sentimental dos que se mataram durante a semana, contra os psicólogos frios tão cheios de censuras e de cálculos postiços que já consideram a dor de amar uma perturbação mental...

JOÃO DO RIO (1881-1921), pseudônimo de Paulo Barreto, jornalista, cronista e contista carioca.

BEL FALLEIROS, 32, é artista plástica.


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