Folha de S. Paulo


Barthes, Godard e a nouvelle vague

RESUMO Professora de filosofia da USP analisa livro de semiologista que traça relações entre o pensamento de Roland Barthes e a obra do cineasta Jean-Luc Godard. Sobretudo a partir do conceito de "punctum", estabelece-se também o vínculo entre o diretor de "Acossado" e outros nomes da nouvelle vague, como Truffaut.

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Roland Barthes, em 1938
Roland Barthes, em 1938

"Barthes em Godard", de Leda Tenório da Motta, se constrói associando literatura, imagem e morte. Fosse apenas isso, o livro [Iluminuras, 216 págs., R$47] traria erudição fílmica, literária, histórica, filosófica e das artes visuais no âmbito da nouvelle vague; seria uma narrativa crítica e preciosa do ideário que compreende o cinema como escritura, a escritura como pintura, a pintura como cinema às voltas com as derivas do político.

De maneira mais essencial, porém, o que organiza esse livro é a questão propriamente metafísica, a da relação de essência da arte com a vida e com a morte, no que tudo isso tem, simultaneamente, de cotidiano e de perturbador.

A autora nos mostra de que maneira as imagens são " lugares" de memória que envolvem rastros de uma presença, cuja expressão é um trauma. Nas revistas de crônicas policiais, tão presentes no cinema noir admirado no círculo dos "Cahiers du Cinéma", de Claude Chabrol a François Truffaut, também a inspiração de Jean-Luc Godard:

"Em 'Bande à Part', [Godard] põe os dois jovens outsiders que compõem o trio dos protagonistas do filme para lerem em alta voz, num prado bucólico ao lado da casa que estão para roubar, alguns trechos sangrentos da crônica policial do jornal 'France Soir' [...], o que não pode não nos levar à expertise de Barthes sobre as manchetes de jornal [que] proporcionam, ao mesmo tempo, uma cobertura da vida diária, regular e banal, e o espetáculo de sua brusca ruptura. No limite, são flertes com a sobrenaturalidade."

Fotografia, poesia e cinema se conjugam na constelação dos "Cahiers du Cinéma" dos anos 1950 e 1960, em particular nos laços entre Godard e Barthes mas também Truffaut. Em todos, a preponderância do rosto, quer dizer, do "close-up", do "gros-plan", da máscara. Catherine Deneuve, em "A Sereia do Mississipi" de Truffaut, Anna Karina em "Viver a Vida" de Godard, Greta Garbo nas "Mitologias" de Barthes são, há um só tempo, "thauma" e trauma, a testemunhar que a arte não nasce só do "maravilhamento" mas de um páthos, já que o espanto encantado golpeia e atinge.

Nesse sentido, observa a autora: "A perturbação desses rostos justifica que nos aprofundemos, doravante, na visualidade das imagéticas de Barthes e Godard, quando fixadas no terrível".

BORBOLETA

Dentre suas diferentes significações lexicais e históricas, a máscara se impôs, na palavra latina "larva" como "espectro, fantasma", também evocando a delicada borboleta, antes de sua metamorfose, primeiro rudimento de algo que desapareceu.

Máscaras são vazias, neutras, figuras sem consistência, mas na expectativa de um destino, de um destinatário, quer dizer, postas entre a vida e a morte: "Em 'As Unidades Traumáticas do Cinema'[...] as imagens traumáticas são aquelas que não falam, ou falam muito pouco, não nos deixam responder completamente à pergunta: 'o que isto quer dizer?'. Não é que não haja significação. Se o sentido não se revela prestamente, apela".

O sentido se esquiva, diferido, contrariando a exigência de um cinema da coerência e do acabamento, aquele cuja construção é sem intermitência nem vazios, como a palavra da "completude lógica" que ignora o acaso.

Analogamente a aforismos, as imagens são incompletas, são como as formas breves na literatura e as máximas morais, não determinadas por aquilo que as precede, havendo sempre algo de imprevisibilidade, de reversibilidade em todos os discursos.

Eis por que Leda Tenório da Motta observa sobre Barthes: "[Em] 'O Óbvio e o Obtuso',[...] o 'sentido óbvio' é aquele que já vem engajado numa forma de expressão[...]. Barthes lembra o significado etimológico de 'obvie', que é 'o que vem antes' ('ob'= diante de, e 'via'= caminho). Pela força dos radicais, é 'óbvio' o sentido que pula na frente, ou salta à vista. Já o 'sentido obtuso' é aquele que vem 'a mais'[...]. Obtusus vem de obtundere, em que tundere é 'golpear' e significa 'arredondar', 'tornar liso'. Disso se poderia concluir que o sentido 'obtuso' é o que não se salienta [...]. Surpreendentemente, ao transferir as duas noções para o domínio imagético, Barthes vai desafetá-las semanticamente. O sentido 'óbvio' será para ele o fraco, o sentido 'obtuso' o forte[...]. Acrescente-se que a nouvelle vague perspectiva desde sempre esse mesmo efeito de surdina das imagens que, já não sendo mais imagens de linguagem, machucam."

Nesse sentido, a autora revela o "punctum" das imagens –poéticas, fotográficas, cinematográficas–, o pontiagudo que fere, punge e perfura, aquele "grau zero" da dor, na nudez desvestida do decorativo, dos ornamentos –estas configurações do "studium"– com suas intenções sem "sprezzatura".

"Punctum" é "movimento imóvel", é a dialética em suspensão benjaminiana em "estado de repouso". O "punctum" é o atrator que capta, captura por sua timidez e pudor: "Na verdade", escreve Leda Tenário da Motta, "a [nouvelle vague] o [obtém] desde quando Truffaut congela a cara de Antonie Doinel, no plano final de 'Les Quatre Cents Coups' ['Os Incompreendidos'], e quando Godard fixa a cara da personagem Patricia, no desenlace de 'À Bout de Souffle' ['Acossado']. Seria fazer pouco do nó na garganta que produzem esses quadros estáticos célebres pretender que o menino que nos encara no fecho do filme de Truffaut quer fazer de nós testemunhas de sua infância ferida, ou que, quando detém o gesto de Patricia de passar o polegar nos lábios, que ela copia do namorado, que o roubou de Humphrey Bogart, Godard a está castigando pela sua leviandade. Quando, nos dois casos, é principalmente do 'trauma' que se trata".

SURPRESA

Assim, Leda Tenório da Motta oferece a dimensão do "surpreendente", próprio aos moralistas antigos, no ponto de encontro do estético e do político, na reedição da "querela dos antigos e dos modernos", um Truffaut matissiano do discreto –aquele que passa ao largo das guerras do tempo como tantos desvarios, indicando que do político a arte deve extrair o estético, como, da catástrofe de Hiroshima, inventou-se o butô; e um Godard brechtiano, "engajado" que não deve, no entanto, nos induzir a enganos.

Por isso a autora não deixa de notar o descompasso de declarações de princípios de Godard e sua poética, o desencontro entre as palavras e as coisas. Com efeito, lê-se: "'À Bout de Souffle' confirma esse malditismo [o interesse dos malditos franceses pelo cinema pró-Hollywood] quando evoca William Faulkner. Patricia, a 'femme fatale' do filme, a horas tantas cita o epílogo do romance de Faulkner 'The Wild Palms' ['Palmeiras selvagens', 1939]: 'Entre a dor e o nada eu fico com o nada porque a dor é já uma forma de compromisso'".

Delineia-se assim o sentido do neutro, a reunir os inventores da "crítica artista", a de Truffaut, Godard e Barthes, em particular o sublime por subtração, sem o páthos do épico; o sublime, não o do absoluto, mas o da falta. O que faz Godard subitamente aproximar-se de Truffaut pela mediação de Barthes e sua utopia do viver junto: "O cinema me fez descobrir a vida, a vida me fez descobrir um outro cinema".

Exegese do paradoxo de um neutro que é "punctum", a "indiferença" é intensidade afetiva, o "punctum" é o "eidos" das palavras, do tempo e do espaço, avocando uma "mathesis singularis" como método e crítica. O "punctum" é a assinatura das coisas e o que embaralha a ordem do mundo. Por isso, conclui a autora: "O cinema de Godard, montagem sempre a desmontar e remontar, apela eternamente ao sentido, como, em Barthes, o ' trauma'".

OLGÁRIA MATOS é professora titular do departamento de filosofia da USP.


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