Folha de S. Paulo


A vida acelerada do capitalismo digital

RESUMO A professora Judy Wajcman, da área de sociologia da London School of Economics and Political Science, fala, em entrevista, sobre seu novo livro, que discute a influência da tecnologia no ritmo da vida contemporânea. Com base em pesquisa, a obra da australiana evita demonizar ou idolatrar as facilidades digitais.

*

"Não há nada de bom ou mau sem o pensamento que o faz assim." A frase dita pelo príncipe da Dinamarca em "Hamlet" pode muito bem ser aplicada ao entendimento que a professora australiana Judy Wajcman, do departamento de sociologia da London School of Economics and Political Science (LSE), apresenta em seu novo livro sobre tecnologias digitais na vida contemporânea.

"Pressed for Time: The Acceleration of Life in Digital Capitalism" (pressionados por tempo: a aceleração da vida no capitalismo digital) [R$ 38,41 em versão digital na Amazon brasileira] foge ao maniqueísmo que se consolidou no debate sobre o impacto de ferramentas como o e-mail e o smarthphone nas relações pessoais e profissionais. Está tão longe de demonizá-las e propor uma dieta tecnológica quanto de idolatrá-las e aceitar a versão edulcorada dos anúncios de grandes companhias.

Wajcman prefere basear seus argumentos em pesquisa empírica –e critica pensadores como Zygmunt Bauman e Manuel Castells pela falta de contato com as pessoas. Desse modo, descobriu que apenas 3% das ligações feitas entre as 19h e as 24h para o grupo de australianos que acompanhou se referiam a assuntos profissionais. Mais de 90% das mensagens de texto registradas eram destinadas a familiares e amigos.

Além disso, a socióloga reconhece que nem todas as pessoas experimentam da mesma forma a suposta aceleração da vida provocada pela digitalização. Diferenças de classes sociais e de gênero são determinantes nessa percepção, e mulheres que trabalham –dentro e fora de casa– sofrem mais do que os homens.

Leia abaixo os principais trechos da entrevista que a professora concedeu à Folha em sua sala na universidade londrina.

Folha - Como a senhora responde à questão central do livro: por que as pessoas procuram os aparelhos digitais para aliviar a pressão do tempo, mas ao mesmo tempo culpam essas mesmas tecnologias por se sentirem mais pressionadas?

Judy Wajcman - Esse é o paradoxo. E acho que é realmente verdade. Em todas as pesquisas que você conduz, particularmente em empregos gerenciais, mas entre todo mundo, as pessoas sentem que a vida é muito ocupada e acreditam completamente que parte da solução é usar mais o e-mail e ter mais "gadgets", de forma a aproveitar o tempo livre.

Creio que as tecnologias sejam muito contraditórias em seus efeitos. Não quero dizer que as pessoas têm uma falsa consciência, porque elas têm consciência. Acho que seres humanos são muito capazes de manter visões e experiências contraditórias, e para mim as tecnologias expressam isso. As pessoas vivenciam as tecnologias como algo que toma muito tempo, reclamam da quantidade de e-mails que têm de responder e se queixam das ligações para o celular, mas estão o tempo todo escrevendo e-mails e fazendo ligações.

Também penso que, numa perspectiva de longo prazo, essas tecnologias são ainda muito novas e precisamos levar isso em consideração. Quando comecei a me dedicar às tecnologias, eu trabalhava com a parte industrial, nas fábricas, e alguém me perguntou sobre o telefone fixo –e eu nunca nem tinha pensado sobre isso. Eu dava a existência do telefone como um fato, era parte da vida cotidiana, e nunca poderia teorizar sobre ele, não pensava que fosse um objeto para a sociologia.

Acho que e-mails e celulares –têm o quê, 15 anos de idade?– são coisas incrivelmente novas. Se tivéssemos essa conversa daqui a outros 15 anos, provavelmente teríamos uma outra percepção. Acho que a novidade é parte da dificuldade para analisá-los.

Seu trabalho argumenta que as pressões temporais não são sentidas da mesma forma na sociedade, e que há elementos de desigualdade social e de gênero nessas diferenças. Pode explicar?

Há um elemento enorme de desigualdade. Para as duas coisas. Há uma incrível desigualdade social. Boa parte do debate é um tanto classe média, debates de profissões gerenciais nas quais as pessoas que trabalham precisam estar à disposição o tempo todo, muito computadorizadas e focadas em conhecimento. Simultaneamente temos um grande número de desempregados que têm tempo em demasia.

Então há um grande componente de classe na questão do acesso ao tempo. Mas também acho que existe um forte componente de gênero. Há duas coisas nesse sentido: a primeira é que há muito trabalho doméstico que é invisível e não remunerado e que ainda cabe predominantemente às mulheres. Eu entrei nessa discussão a partir de questionamentos sobre o aspirador de pó e a máquina de lavar, se essas tecnologias libertariam as mulheres, se de alguma forma você teria todas essas ferramentas e não haveria mais trabalho a fazer.

O que descobrimos há 30 anos é que, enquanto coisas como as máquinas de lavar tornam o trabalho mais fácil fisicamente, as pessoas passaram a fazer lavanderia com muito mais frequência e o padrão foi elevado. O segundo ponto que precisa ser considerado são as atividades de trabalho emocionais e de cuidado. Há um monte de coisas que nós fazemos que eu não acho que a tecnologia consiga acelerar. Falo sobre a ideia de colocar robôs para cuidar das pessoas. Acho que a ideia de automatizar esse tipo de trabalho é muito perturbadora.

Que tipo de cultura é essa em que a gente acha que pode simplesmente deixar todo tipo de trabalho nas mãos de robôs? Isso é desvalorizar o cuidado, o carinho, e valorizar somente outros aspectos da vida que, na verdade, a gente pode achar que não sejam tão importantes no final.

Família, a senhora comenta, é cada vez menos um substantivo e mais um verbo. A tecnologia seria um verbo auxiliar, nesse caso?

Há uma série de livros dizendo que estamos perdendo tempo em família por conta da tecnologia. Você tem essas imagens de pessoas que estão o tempo todo em seus celulares, a família sentada na mesma sala mas cada um olhando para sua própria tela, sem falar com os outros. E há outra parcela de livros dizendo, com razão, que as tecnologias do tipo 24 horas por dia, sete dias por semana quebram as fronteiras tradicionais de tempo e espaço.

Então você costumava pensar que família era algo que se faz em casa, enquanto trabalho se faz no trabalho. Mas, com essas tecnologias, você agora trabalha de casa e entra em contato com seus assuntos pessoais no trabalho. Há uma fusão muito maior dessas coisas.

Parece bobo dizer, mas acho que isso é bom e ruim. Há alguma verdade no perigo de que o trabalho domine sua vida inteira, porque você pode responder e-mails à noite e durante finais de semana, e suas expectativas sobre o trabalho se tornam maiores. Mas também acho que poder fazer aquilo que é sarcasticamente chamado de "mãe à distância" é muito bom.

As pessoas ironizam, mas poder falar pelo Skype com sua família ou estar em contato com seus filhos durante o dia quando você está no trabalho ou a caminho de algum lugar são coisas fantasticamente importantes e valiosas, e todos nós gostamos muito de fazê-las.

Se pensarmos que família não é algo restrito ao espaço de casa, e sim um processo de comunicação, então faz sentido para mim que as tecnologias sejam parte desse processo de intimidade, de criar intimidade e de vivermos mais perto.

A senhora conclui que, em vez de estarmos pressionados pelo tempo, talvez estejamos confusos sobre os tempos que vivemos. Qual é a sua visão sobre nosso tempo?

Eu recentemente fui entrevistada ao lado do escritor de ficção científica William Gibson e ele me falou que "estou muito ocupado" é o jeito contemporâneo de dizer que você é rico. Achei isso ótimo. De algum modo nossas ideias de boa vida são ideias de vidas incrivelmente cheias e ocupadas.

Há movimentos pelo "slow time", pela "slow food" e meditação, mas me parecem parte da mesma coisa: você está aceitando que há o rápido e então precisa achar espaço para o devagar; em vez de repensar o que é a velocidade, onde está o valor de estar ocupado. Por que esse foco no trabalho acima de tudo?

Pensei que já havíamos criticado essa ideia do trabalho como centro de todo o valor e a ética protestante segundo a qual seremos recompensados depois por trabalhar tão duro nessa vida, mas aparentemente voltamos a isso. Houve uma desvalorização de uma série de outras atividades, algumas das quais são mais lentas e levam tempo.

RODRIGO RUSSO, 29, é jornalista.


Endereço da página: