Folha de S. Paulo


Um catálogo de 1977 e a dúvida neoconcreta

RESUMO O relançamento do catálogo "O Projeto Construtivo Brasileiro" (1977) oferece oportunidade para reavaliar o discurso hegemônico acerca do neoconcretismo. Fixou-se aqui e no exterior versão duvidosa sobre o legado do grupo, que transforma obras de Lygia Clark e Hélio Oiticica em "imagens cívicas" do Brasil.

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"Movimento" (1951), de Waldemar Cordeiro, está no catálogo da mostra "O Projeto Construtivo Brasileiro"

Quando foi realizada a exposição "O Projeto Construtivo Brasileiro na Arte (1950-1962)", em 1977, primeiro na Pinacoteca do Estado de São Paulo e em seguida no MAM-RJ, a abstração geométrica andava em baixa no Brasil. O colecionismo e o mercado de arte não valorizavam os trabalhos, e os artistas e críticos mais proeminentes encontravam-se dispersos.

Foi decisiva, portanto, a iniciativa das curadoras Aracy Amaral e Lygia Pape de organizar uma exposição retrospectiva das vanguardas construtivas. Era o primeiro empenho de fôlego em sistematizar aquele conjunto de trabalhos, examinar as afinidades e dissonâncias entre os artistas (eram 44), reunir a produção crítica mais relevante do período e a ela somar uma reflexão nova e abrangente.

A mostra vinha acompanhada de um catálogo que fez história – e que a Pinacoteca relança agora em edição fac-similar [396 págs., R$ 45; à venda em pinacoteca.org.br]. O volume trazia os manifestos das principais vanguardas construtivas da Europa e América Latina, textos críticos da época áurea do concretismo e textos produzidos no fim dos anos 1970, os primeiros a propor um balanço daquela contribuição. Como lembra Ivo Mesquita no texto introdutório à nova edição, a publicação foi tão influente que instituiu uma leitura canônica na crítica de arte brasileira.

NEOCONCRETO

Um aspecto decisivo dessa leitura, no meu entender, é a ideia de que o ponto culminante do projeto construtivo foi o "neoconcretismo" –a cisão em relação ao grupo de artistas concretos de São Paulo liderada por Ferreira Gullar em 1959– à qual aderiram, entre outros, Lygia Clark, Amílcar de Castro e Hélio Oiticica (este, no entanto, não assina o manifesto).

O discurso hegemônico sobre o grupo neoconcreto, compartilhado por críticos de formações e extrações diversas, enfatiza aquilo que considera o caráter de ruptura e seu papel determinante para desprovincianizar a arte brasileira e inseri-la em linha de continuidade com as vanguardas construtivas europeias. Com raros pontos de dissonância e divergência, o neoconcretismo é tido como marco inaugural da arte contemporânea no Brasil. Seus integrantes, segundo essa interpretação, foram capazes de corrigir os supostos excessos racionalistas do concretismo, de forma a recuperar a dimensão da significação na obra de arte.

Ao mesmo tempo, respondem pelas pesquisas formais que culminaram na superação da tela como suporte, no rompimento do espaço tradicional e na possibilidade de estabelecer uma relação ativa entre trabalho artístico e espectador.

É também em parte ao neoconcretismo que se deve a projeção pública de Lygia Clark e Hélio Oiticica, ambos apontados como principais responsáveis por inaugurar no país um esforço de aproximação entre "arte e vida", uma generalidade entendida por segmento expressivo da crítica como traço definidor da arte contemporânea.

O ponto culminante da valorização dos dois artistas se dá a partir dos anos 1990, com uma série de exposições no exterior que ajuda a consolidá-los como principal imagem da arte brasileira fora do país e a conferir a seus trabalhos alto valor de mercado.

O catálogo da exposição de 1977 traz um excerto do ensaio do crítico Ronaldo Brito, talvez a fonte mais citada sobre o tema até hoje. Esse texto, publicado originalmente um ano antes na revista "Malasartes", considera o neoconcretismo o "vértice e a ruptura do projeto construtivo brasileiro".

Estariam ali, segundo sua formulação, os elementos mais sofisticados imputados à tradição construtiva no país. "O concretismo seria a fase dogmática, o neoconcretismo, a fase de ruptura; o concretismo, a fase de implantação, o neoconcretismo, os choques da adaptação local."

Essa ideia nasce nos textos de Mário Pedrosa, o mentor teórico de concretos e neoconcretos e dos primeiros a formular, num artigo ligeiro de jornal, ainda em 1957, a distinção entre "paulistas e cariocas", que se cristaliza no momento seguinte, no contexto de sistematização desse legado cujo melhor exemplo é o catálogo agora relançado. Tal dualidade orienta parte expressiva das leituras que começam a ganhar corpo a partir dos anos 1980 e 1990, na profusão de trabalhos sobre artistas individuais associados ao grupo, nas exposições dentro e fora do Brasil e até mesmo nas Bienais.

Está em jogo uma espécie de circularidade analítica, em que os pressupostos formulados no seio do próprio grupo e como programa de atuação voltam a ele, por vezes em chave mais contundente, sob a roupagem de análise das obras e comprovação da inflexão histórica que se tenta comprovar.

PROFÉTICOS

É um fenômeno semelhante ao que Raymond Williams apontou a respeito do grupo de Bloomsbury e seus congêneres ingleses. Os conceitos empregados para se referir a esses grupos, dizia Williams, pertencem às definições e perspectivas dos próprios grupos, de modo que qualquer análise subsequente tende a ser interna e circular. Não é incomum encontrar nos catálogos de exposições mundo afora transcrições do Manifesto Neoconcreto alçadas à condição de achados críticos, como se o texto fosse dotado de tons proféticos e anunciasse o que viria a ser produzido muitos anos depois por artistas já distantes daquele contexto.

No fim dos anos 1950, Lygia Clark estava às voltas com experimentos mais próximos da indústria e da arquitetura do que com a dissolução do objeto de arte pela qual se tornou célebre internacionalmente. Hélio Oiticica era pouco mais que um guri e, no auge de sua produção, a partir do fim dos anos 1960, estava em diálogo mais intenso com o concretista Haroldo de Campos do que com Ferreira Gullar. Todos os artistas associados ao "projeto construtivo" aparecem na cena brasilera num momento anterior, a "Exposição Nacional de Arte Concreta", em 1956, em São Paulo, e 1957, no Rio.

Como então essa versão que exalta o neoconcretismo encontrou meios de se consolidar? As circunstâncias envolvem a presença ubíqua de Mário Pedrosa, capaz de ocupar todos os espaços disponíveis para a atuação do crítico de arte e do administrador cultural; as cartas na manga do jovem e talentoso Gullar, para quem a crítica de arte se aliava à atividade como poeta e à busca de espaço de liderança em relação aos antípodas Haroldo e Augusto de Campos; a capacidade impressionante de Hélio Oiticica de formular as linhas de interpretação sobre o próprio trabalho; um contexto em que grande imprensa e museus no Rio de Janeiro atuam em uníssono em torno de uma causa comum.

É possível encontrar pistas na mesma direção em textos recentes dos críticos Rodrigo Naves, Sonia Salzstein e do próprio Ronaldo Brito. Todos chamam a atenção para o fato de que as obras produzidas no âmbito do grupo neoconcreto, especialmente as de Hélio Oiticica e Lygia Clark, têm sido frequentemente desapropriadas de suas especificidades poéticas e formais: são em geral apresentadas como a pedra inaugural da arte contemporânea no país e, ao mesmo tempo, como penhor de uma identidade cultural brasileira. Estão virando imagens cívicas e encarnando uma oficialidade à qual os artistas sempre se opuseram.

Nessa operação, o significado coletivo do grupo se torna maior do que as obras examinadas de forma isolada. Por um conjunto complexo de fatores, que envolve disputas intelectuais, personalismo, origem social, talentos individuais, particularidades institucionais do Rio e da política em sentido mais amplo, o grupo neoconcreto fez cristalizar uma versão sobre seu legado que é duradoura e maior do que a soma das obras produzidas por seus integrantes.

Há uma aura forjada a partir desse processo intricado, que encontrou guarida na bibliografia e embaça a decifração de suas particularidades mais significativas.

Em síntese, o que parece importante no debate atual sobre o "projeto construtivo", quase 40 anos após a exposição pioneira de 1977, é apontar questões capazes de situar o grupo neoconcreto no contexto mais amplo do construtivismo no país, assim como desvendar as condições que favoreceram a criação da imagem idealizada em processo de consolidação na crítica de arte no Brasil e, cada vez mais, no exterior.

FLÁVIO MOURA, 37, é jornalista e editor na Companhia das Letras. É doutor em sociologia pela USP com a tese "Obra em Construção: O Neoconcretismo e a Invenção da Arte Contemporânea no Brasil".


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