Folha de S. Paulo


De novo, a panaceia parlamentarista

RESUMO No dia 15 de julho foi lançada no Congresso Nacional a Frente Parlamentarista, formada por 225 deputados de vários partidos, entre os quais 10 do PT. O movimento ressuscitou a proposta de aprovação da PEC 20/95, apresentada há duas décadas. O sistema já foi rejeitado duas vezes em consulta popular no país.

Eder Chiodetto - 19.abr.93/Folhapress
Urnas usadas para o plebiscito de 21 de abril de 1993
Urnas usadas para o plebiscito de 21 de abril de 1993

No momento em que a crise econômica soma-se à fragilidade política, com parlamentares à deriva votando pautas-bomba, ressurgem no Congresso propostas de implantação do parlamentarismo. Submetida ao voto popular em 1963 e em 1993, tal emenda constitucional foi largamente derrotada nas urnas nas duas ocasiões. Para entender a iniciativa dos parlamentaristas do novo século, vale a pena recapitular os dois precedentes escrutínios.

Em 1961, o parlamentarismo foi imposto a toque de caixa militar num Congresso encurralado pelas Forças Armadas e pela cúpula da UDN. Aprovado o remendo, João Goulart foi autorizado a tomar posse em Brasília.

Mas logo em seguida, Jango, seus ministros, os governadores presidenciáveis aliados (Brizola), adversários (Magalhães Pinto) e, sobretudo, Juscelino Kubitschek, candidatíssimo ao Planalto, deslancharam a campanha para a volta do presidencialismo. Veio o plebiscito de janeiro de 1963, e o presidencialismo foi restabelecido com 77% dos votos. Catorze meses depois, os golpistas deram o troco e remataram o projeto ditatorial que duraria duas décadas.

Bem diferente foi o contexto do plebiscito de 1993. A consulta popular sobre "forma e sistema de governo" fora decidida na Constituinte, depois da derrota da proposta parlamentarista no plenário.

Na sequência, constituintes peemedebistas minoritários na direção partidária de seus respectivos Estados fundaram o PSDB com um programa parlamentarista. Houve, assim, uma longa reflexão sobre a viabilidade do parlamentarismo no Brasil. Do início da campanha para a Constituinte, em 1986, até o plebiscito de abril de 1993, o tema foi discutido no Congresso, nos sindicatos, nas associações patronais, nas universidades e na mídia.

No meio-tempo, o impeachment de Collor forneceu novos argumentos aos críticos do presidencialismo. Porém, fechadas as urnas, constatou-se que somente 25% dos eleitores haviam escolhido o parlamentarismo. O que se passou?

Dois problemas desqualificaram a mudança constitucional submetida ao plebiscito de 1993. O primeiro foi a propaganda monarquista. Sem representatividade nem substrato político, o projeto monarquista comprometeu a campanha dos parlamentaristas, seus aliados envergonhados.

O segundo problema foi bem mais grave. Malgrado sete anos seguidos de debates, os parlamentaristas não lograram explicar aos eleitores uma questão fundamental: como introduzir o parlamentarismo nas três esferas governamentais corporificadas por Executivos municipais, estaduais e federal escolhidos pelo voto direto?

Todos os países semipresidencialistas, caracterizados por um regime dualista que partilha o Executivo entre um governo formado pela maioria parlamentar e um presidente eleito pelo voto direto, seguiram caminho inverso ao que se projeta experimentar no Brasil.

Tratava-se de países de tradição parlamentarista "monista", dotados de distritos eleitorais bem demarcados, com o sufrágio popular representado unicamente no Parlamento, nos quais se inseriu a eleição presidencial direta. Houve apenas a divisão do Executivo nacional entre um presidente e um primeiro-ministro, enquanto as instâncias municipais e regionais continuaram a ser regidas pelo parlamentarismo monista.

Tal mudança constitucional é bem mais simples do que a proposta intentada em nosso país, onde se pretende enxertar um ramo parlamentarista num regime arraigadamente presidencialista. Após a derrota de 1993, os monarquistas escafederam-se e o parlamentarismo saiu do debate. Eleito em 1994, Fernando Henrique Cardoso esqueceu o programa parlamentarista do PSDB e praticou um presidencialismo imperial, reforçado por duas centenas de medidas provisórias reeditadas mais de 5.000 vezes e pela atroante emenda da reeleição.

Em 2001, quando as sondagens indicavam a possível vitória de Lula em 2002, o PSDB desencavou uma proposta parlamentarista, a PEC 20/95. Mas a iniciativa gorou.

No último dia 15 de julho, surgiu uma Frente Parlamentarista, formada por 225 deputados de vários partidos, incluindo 10 do PT, que relançou a proposta de aprovação da PEC 20/95 formulada há duas décadas. Adeptos da iniciativa, deputados e senadores apregoam a bula genérica da panaceia: no parlamentarismo, quando há crise política, basta mudar o primeiro-ministro e tudo entra nos eixos.

Nenhuma explicação é dada sobre os impasses discutidos no plebiscito de 1993: o funcionamento do sistema implica a extensão do regime aos Executivos estaduais e municipais, ou na supressão das eleições diretas para presidente, governadores e prefeitos.

FRANÇA E RÚSSIA

Sem uma dessas medidas, haverá uma reativação da dinâmica presidencialista pelos governadores presidenciáveis, avessos a um futuro compartilhamento do Planalto com um primeiro-ministro escolhido pelo Congresso. Constante na esfera federal, esse movimento desestabilizador se reproduzirá nos Estados. Formados na tradição presidencialista, prefeitos, deputados ou senadores candidatos a governador dificilmente aceitarão dividir o Executivo com um "primeiro-ministro" indicado pela Assembleia.

A mesma causa produzirá o mesmo efeito na esfera municipal, alastrando a instabilidade institucional pelo país. Ambas as medidas são difíceis de pôr em prática. A ampliação do regime dualista aos Estados e municípios encontraria oposição cerrada nas unidades federativas do país inteiro. A eliminação das eleições diretas reduziria grandemente o apoio ao parlamentarismo.

Como em 1993, os parlamentaristas evocam o exemplo paradigmático do semipresidencialismo francês. Todavia Putin veio ilustrar problemas do semipresidencialismo russo, revezando-se no posto de presidente e primeiro-ministro com seu acólito Medvedev, para manter-se no poder desde 1999.

O Brasil não se parece com a autocracia russa. Mas também tem pouco a ver com a França, país centralizado, habituado ao parlamentarismo e sem tradição federalista. Repetindo ainda a campanha de 1993, os parlamentaristas omitem os desdobramentos institucionais de sua proposta, limitando-se a expor generalidades sobre os alegados benefícios do sistema. Se falarem mais, expõem suas discordâncias, abrindo caminho para a terceira derrota em plebiscito. Resta-lhes abafar o debate nacional para votar, a seu talante, a emenda parlamentarista no Congresso.

As eleições presidenciais com dois turnos, completadas pela instituto da reeleição, deram estabilidade ao país, assegurando o mais longo período democrático de nossa história. Decerto, o presidencialismo e o sistema político partidário devem ser aperfeiçoados para se adaptarem às mudanças que atravessam a sociedade.

Mas é inaceitável que o Congresso, arrostando o sufrágio popular afirmado em 63 e reiterado em 93, elabore uma pauta-bomba para instaurar o parlamentarismo por meio de um golpe parlamentar.

LUIZ FELIPE DE ALENCASTRO, 69, é professor da Escola de Economia da FGV-SP e professor emérito da Universidade Paris-Sorbonne.


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