Folha de S. Paulo


Lar da contracultura, San Francisco se vê às voltas com a gentrificação

RESUMO A cidade de San Francisco, no Estado da Califórnia, tem o aluguel médio mais caro dos Estados Unidos, ultrapassando Nova York. Onde antes moravam hippies, os chamados "techies" do Vale do Silício ocupam imóveis cada vez mais raros e caros, já que novas construções não acompanham o crescimento da população.

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Mark Zuckerberg virou vizinho de Janis Joplin. A apenas cinco quadras da casa em que a rebelde cantora morava no final dos anos 60, no bairro de Noe Valley, em San Francisco, fica a futura residência do criador do Facebook.

No outrora bairro da contracultura, onde o grupo Grateful Dead gravou alguns de seus discos, o magnata digital comprou uma casa de 500 m² em 2013 por US$ 10 milhões (cerca de R$ 35 mi). Em uma reforma que já leva dois anos, na qual até o antigo sótão vai virar um quarto andar utilizável, Zuckerberg gastou quase US$ 2 milhões.

Há cinco anos, a mesma casa valia pouco mais de US$ 1 milhão, mas hoje supera uma cobertura no Leblon de frente para o mar.

San Francisco já tem o aluguel mais caro dos Estados Unidos. O valor médio mensal por um apartamento de um quarto é de US$ 3.800 (cerca de R$ 13.200), quase US$ 600 a mais que em Manhattan. No ano passado, o valor médio dos novos aluguéis subiu 13,5% na cidade –a inflação americana foi de 0,8%.

O coração extraoficial do Vale do Silício, que reúne a indústria mais poderosa do mundo, também se tornou a capital da gentrificação do país, o fenômeno em que um bairro antes barato ou maltratado se valoriza rapidamente com a chegada de novos (e mais afluentes) moradores. Não falta gente chegando na antiga central de hippies, beatniks e do movimento gay atrás de ótimos empregos.

A um raio de 50 minutos da cidade de 830 mil habitantes, mesma população de São Bernardo do Campo, no ABC paulista, ficam as gigantes do Vale do Silício: Apple, Google, Facebook, Cisco, Oracle e LinkedIn. Dentro da cidade, ficam as sedes de Twitter, SalesForce, Zynga, Uber, Airbnb, Dropbox e Soylent (Uber e Airbnb ali nasceram pela falta crônica de taxistas e quartos para alugar na cidade).

Todas essas empresas têm centenas –ou milhares– de executivos, engenheiros e programadores que recebem salários altos e cada vez mais querem morar na cidade mais charmosa da Califórnia. Em sua maioria, esses funcionários têm refeições e transporte bancados pelas companhias.

São jovens que não querem morar mais nos subúrbios –onde o estoque de residências disponíveis é igualmente reduzido por leis restritivas de construção.

MINHA CASA

A lei da oferta e da demanda fez o resto. Nos EUA, 66% das pessoas moram em casa própria. Em San Francisco, esse número cai para 37%. Quase 2/3 vivem de aluguel.

Os antigos proprietários até faturam com a venda ou o aluguel dos imóveis nos novos valores inflacionados, mas quem mora de aluguel acaba sendo despejado pela realidade dos preços reajustados.

Os magnatas da tecnologia despertam em muitos a raiva que os yuppies de Wall Street provocavam na Nova York dos anos 1980. As batalhas imobiliárias foram parar na rua.

No último ano, diversos ônibus fretados que levam os funcionários do Google para a sede da companhia, em Mountain View, foram vandalizados por manifestantes.

Robert Galbraith - 1º.abr.2014/Reuters
Manifestantes bloqueiam passagem de ônibus de funcionários do Google em Mountain View em abril de 2014
Manifestantes bloqueiam passagem de ônibus de funcionários do Google em Mountain View em abril de 2014

Um abaixo-assinado tenta obrigar a prefeitura a convocar em novembro, no mesmo dia da eleição para prefeito, um plebiscito que declare uma moratória de 18 meses na aprovação de qualquer construção de novos edifícios de apartamentos no bairro de Mission, uma antiga área de imigrantes latinos, oficinas mecânicas e becos inteiramente grafitados, que virou um dos sonhos de consumo da endinheirada elite "techie" –uma Vila Madalena menos verticalizada, mas com muito mais mistura de classes sociais que o bairro paulistano.

Nas urnas, outro plebiscito já convocado para novembro quer obrigar que todo terreno público vendido para um empreendimento imobiliário tenha pelo menos 33% de suas unidades destinadas à moradia econômica. Dos 11 vereadores –um para cada distrito da cidade–, 4 apoiam a medida.

Mas a tensão de San Francisco não pode ser debitada à ausência de planejamento e fiscalização ou à conivência do poder público com o mercado imobiliário. "Nenhuma cidade lutou tanto para preservar seu caráter e os direitos de seus moradores nos EUA", diz o crítico de arquitetura do jornal "San Francisco Chronicle", John King.

Reputada como a cidade mais esquerdista dos EUA –em uma disputa acirrada pelo título com a vizinha Oakland–, foi "pioneira em gerar movimentos igualmente poderosos de ambientalistas, conservacionistas, defensores dos sem-teto e dos direitos às vistas magníficas da baía, por décadas um pesadelo para qualquer construtora", reforça o crítico.

MEU SOL

Entre 1959 e 1965, San Francisco protestou contra (e proibiu) a construção de dois elevados, no pior estilo do Minhocão paulistano, dentro da cidade. Em 1986, os eleitores aprovaram em referendo um teto anual para a construção de edifícios comerciais no centro –a campanha contra edifícios combatia a descaracterização da cidade e a perda de luz do sol nas calçadas. Boa parte de San Francisco tem apenas sobrados de até três andares.

Desde 1972, quando se inaugura o edifício piramidal Transamerica, o mais alto da cidade, de 48 andares e 260 metros de altura, nenhum arranha-céu foi erguido. Atualmente há um em construção, para sediar a empresa de tecnologia Salesforce, com 61 andares e 326 metros de altura, o dobro do paulistano Edifício Itália. Ficará pronto em 2018.

Em 1990, outro referendo impediu que a prefeitura colocasse dinheiro público em um novo estádio para o time de beisebol Giants.

O resultado é que pouco se construiu na cidade nas últimas quatro décadas. O charme ficou quase intacto, mas a um preço alto. A cidade cresce a uma taxa de 12.000 habitantes/ano, mas só 1.500 unidades residenciais novas chegam ao mercado no mesmo tempo.

Por razões diferentes, a oposição a qualquer construção continua forte. Em Mission, uma audiência pública obrigatória para a aprovação de um novo edifício de apartamentos terminou em gritaria em março passado.

Líderes comunitários, sindicalistas e imigrantes mexicanos e filipinos exigiam que 100% das unidades fossem econômicas ou subsidiadas. O incorporador dizia que os preços de construção ali são altíssimos e que o empreendimento não seria viável. Os vizinhos não aceitavam que apenas 20% dos apartamentos fossem subsidiados.

"Junto com esses prédios novos, com valor de mercado, chegam restaurantes, cafés e mercados que nunca poderemos frequentar", diz o ativista Roberto Hernandez. "Mission está mudando e não gostamos do que está se tornando."

No final dos anos 90, na primeira grande bolha dos investimentos em empresas na internet, que causou a inflação inicial dos preços no bairro, uma milícia anarquista fez sucesso ali. Chamada de Programa de Erradicação dos Yuppies, defendia riscar carros de luxo dos novos moradores ou entupir, de propósito, os vasos sanitários de restaurantes caros ali abertos.

Mission não parou de mudar nas últimas três décadas. O número de homicídios por ano caiu de 21 em 1993 para 7 em 2013, atraindo novos moradores. A população hispânica caiu de 54% para 39% no mesmo período. Hoje, 18% das 23 mil residências do bairro têm algum menor de idade. Em 1990, eram 31%. O aluguel médio no bairro pulou de US$ 2.800 para US$ 3.800 em quatro anos.

MEU QUINTAL

A alguns quilômetros dali, em uma área bem mais cara, a prefeitura fazia uma audiência pública para decidir o destino do Reservatório Balboa, uma estação desativada da companhia de saneamento local que virou um estacionamento improvisado, de 69 mil m², a duas quadras de uma estação de metrô.

O prefeito quer transformá-lo em um grande bairro residencial, com cerca de 3.500 novos apartamentos, 30% deles dedicado a habitação popular.

Os vizinhos, em sua maioria brancos e ricos, querem que o reservatório vire um parque, com um número limitado de casas (não edifícios). Os líderes que ali falaram disseram que o novo bairro traria trânsito, barulho e que depreciaria o valor dos imóveis na área.

"Todo mundo quer que se construa mais moradia, desde que não seja no seu bairro. Vamos construir onde, então?", pergunta o vereador Scott Wiener. "O movimento 'não no meu quintal' é forte demais aqui."

Urbanismo virou assunto tão mobilizador que até há concorridos debates entre especialistas com ingressos à venda e com filas.

A poucas quadras da audiência em Mission, 200 pessoas participavam de um evento chamado "Como Dar Casa a San Francisco?" na Associação de Pesquisa e Planejamento Urbano de San Francisco (Spur, da sigla em inglês), uma ONG com 4.000 sócios que tem suas origens na reconstrução da cidade após o terremoto de 1906.

O formato adotado era o "pecha-kucha" (bate papo, em japonês), a versão nipônica mais acelerada e visual das palestras TED, na qual cada apresentador precisa fazer sua exposição usando 20 imagens, gastando 20 segundos em cada.

Nesse karaokê visual, arquitetos, vereadores e incorporadores ocuparam o palco para apresentar suas propostas para produzir mais moradia para a classe média. A arquiteta Amanda Loper falou que falta "experimentação". Defendeu moradia em barcos que ficariam atracados na baía e mostrou um mapa das lanchonetes de fast food na cidade que ocupam imóveis térreos e poderiam ganhar dois ou três andares acima com apartamentos –uma miniverticalização no topo dos McDonald's.

Enquanto novas moradias não são aprovadas em grande escala, o prefeito Ed Lee tem tentado driblar os estritos regulamentos municipais. Nos últimos dois anos, sótãos e garagens de sobrados estão recebendo alvarás de habitação –assim, moradores podem transformar espaços ociosos de suas casas em novos apartamentos para locação.

"Mas tudo isso é paliativo, sou muito pessimista", diz o historiador Chris Carlsson, reconhecido ativista urbano local. Para ele, o sucesso de San Francisco está atraindo as mesmas elites globais que dominam cada metro quadrado das áreas centrais de Londres e Nova York. "Muito dinheiro chinês tem chegado a San Francisco, a cidade mais asiática dos EUA. Eles estão ficando com tudo."

Os preços continuam subindo. No ano passado, foi vendido outro sobradinho vitoriano onde Janis Joplin morou –antes de fazer sucesso– por US$ 1,7 milhão.

RAUL JUSTE LORES, 39, é repórter especial da Folha.


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