Folha de S. Paulo


A perspectiva da dor em Jean Cocteau

É um livro indispensável este "A Dificuldade de Ser" [trad. Wellington Júnio Costa, Autêntica, 208 págs., R$ 47], de Jean Cocteau (1889-1963).

Trata-se, de fato, de uma arte poética a partir do relato de 50 anos da vida do autor, desde a infância até o momento da finalização do texto, durante a Segunda Guerra –a obra foi editada na França em 1947.

Ao mesmo tempo, o livro possui um caráter de testemunho ativo, às vezes crítico, de um dos períodos mais ricos da cena europeia, então marcada pelos movimentos cubista, surrealista e construtivista.

Há, ainda, na obra, um viés de depoimento acerca de seus personagens maiores: o compositor Erik Satie (um dos mestres de Cocteau), Picasso, o poeta Guillaume Apollinaire, o bailarino e coreógrafo russo Nijinski, Charles Chaplin, o dramaturgo Jean Genet, entre tantos outros.

Cocteau, que começou a escrever aos dez anos e publicou seu primeiro volume de poemas, "La Lampe d'Aladin" (a lâmpada de Aladim) aos 19, foi, em essência, um poeta que escreveu romances, peças de teatro e crítica literária.

Foi igualmente um artista plástico inspirado, deixando sua marca em capelas de pescadores então abandonadas da Provence e da Côte d'Azur –ali viciou-se em ópio, o que o levou a várias internações.

Seu talento múltiplo, no entanto, não se diluiu em nenhuma das atividades; antes somou-se. Como ele mesmo define: "Explorei tantos caminhos para que minha semente se espalhasse por toda parte. Eu conheço mal o sopro que me habita, mas ele não é suave".

Aqui quero chamar a atenção para duas faces de sua obra: a de cineasta e a de dramaturgo.

Em 1917, Cocteau escreveu para Serguei Diaguilev, fundador da companhia Les Ballets Russes em Paris, o libreto de "Parade". O balé tinha cenário de Picasso e música de Satie. Apollinaire, comentando o espetáculo, o definiu como "surrealista", palavra que seria, pouco depois, apropriada por André Breton e se tornaria todo um movimento, sob o qual Cocteau foi então classificado.

Considerado introdutor do surrealismo no cinema nascente, Cocteau assina três filmes que costumam figurar nas listas dos cem melhores (para alguns críticos, dos dez melhores) de todos os tempos: "Sangue de um Poeta" (1930), "A Bela e a Fera" (1946) e "Orfeu" (1950).

Cocteau anota que "Sangue de um Poeta" emprega o mecanismo do sonhar sem dormir –um meio de arrebentar o realismo industrial da vida. Denunciar a "artificialidade da realidade", aliás, era uma característica do "esteticismo" do artista francês, segundo Eduardo Peñuela Cañizal (1933-2014) –o professor espanhol, um dos fundadores da ECA-USP, teceu tal observação ao analisar a influência de Cocteau sobre Pedro Almodóvar.

No teatro, fez de seu "A Voz Humana" (1930) um marco.

Neste monólogo, temos apenas uma solitária atriz que fala ao telefone; em termos formais é de um minimalismo expressivo ímpar.

Na estreia, a atriz Berthe Bovy representava a mulher apaixonada por um homem, que, ao que tudo indica, a deixa por outra. Seu único meio de comunicação com o amado em fuga, na tentativa de persuadi-lo a voltar ou algo assim, é o aparelho, no qual fala por uma hora, duração do texto. A ligação é algumas vezes interrompida por ruídos e desespero.

O monólogo foi adaptado por Roberto Rossellini para um segmento de "L'Amore", de 1948, com Anna Magnani. A obra de Cocteau reverbera, desse modo, também em um dos mais importantes movimentos do cinema posterior a ele –o neorrealismo italiano, dos quais, ao lado de Rossellini, foram protagonistas Visconti e De Sica. É considerado um precursor da "nouvelle vague", que renovou o cinema francês a partir de 1958.

Neste momento, no qual a arte e a reflexão se rendem às "facilidades" do estar, evocar a obra duradoura de Jean Cocteau, é interessante trazer à tona o trecho do livro no qual esse artista múltiplo explica seu título.

Numa clínica, Cocteau ouviu outro paciente, indagado pelo médico sobre seu estado, responder: "Eu sinto uma dificuldade de ser".

Então, o autor de "A Voz Humana", entrando na conversa, disse: "Senhor Fontenelle, a sua é de última hora. A minha é desde sempre". E assim recoloca a arte em sua perspectiva real: a do sofrimento, a do difícil, distante do glamour vazio dos dias atuais.

RÉGIS BONVICINO, 60, é poeta, autor de "Estado Crítico" (Hedra) e "Até Agora" (Imesp), e diretor da revista eletrônica "Sibila".


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