Folha de S. Paulo


O nariz de palhaço, de Bernard Kudlak

O objeto sobre o qual eu gostaria de lhes falar é tão particular que sua presença qualifica este que o carrega e, por este adereço, o conhecemos perfeitamente.

Esse personagem poderia não carregar esse objeto e nós ainda o veríamos.

Esse objeto tão importante, tão particular, que mesmo em sua ausência ele existe.

A ausência real do objeto não o destrói.

Esse objeto particular

Uma máscara.

Ele é a menor máscara do mundo.

Às vezes moldada diretamente no rosto por um abuso de vinho suave em resposta à vida dura

Um simples planeta iluminado pelo adormecer de um sol escarlate.

Escarlate? Deslumbrante cereja luminosa sobre o bolo branco de uma outra máscara.

A máscara da brincadeira dos antigos bancos do teatro de variedades que desceram de seus palcos.

Uma máscara que se carrega no nariz.

Um nariz que o palhaço carrega na alma.

Um nariz.

De palhaço.

O nariz de palhaço.

Arquivo pessoal
Pintura de Bernard Kudlak
Pintura de Bernard Kudlak

Ele é a boia salva-vidas daquele condenado aos risos, aos golpes, às vaias e à maldade natural dos diretores de circo, das crianças, de seus pais, dos poderosos e dos desagradáveis. Essa pequena máscara é tão importante, tão protetora, que mesmo quando o palhaço não a carrega, ela continua a existir, esse nariz, essa alma, por causa dos maldosos, dos poderosos e dos desagradáveis. Charlie Chaplin é o mais belo exemplo. De palhaço.

O palhaço (clown). Do inglês "clod", que significa "camponês", "colono" e por extensão "cafajeste". Fantasia eterna de um bobo específico, camponês assustado, incapaz e chorão. Inventado pelos mambembes, os ciganos, os viajantes e os marginais para zombar, se vingar.

Vagabundo terrestre se tornou vagabundo celeste. Assim decidiu a poesia viva em todo o mundo.

Ele é nariz, esse nariz de um pobre servo, cocheiro, alfaiate do exército inglês que tropeçava a cada paço na areia, na serragem dessa arena militar onde, no fim do século 18, pouco antes da Revolução Francesa, em Paris, um suboficial inglês, Philip Astley, acompanhado de alguns militares reformados ansiosos por batalha, fazia saltos perigosos sobre seus cavalos preparados para o desfile.

O primeiro palhaço se chamava Billy Saunders.

E essa nova forma de espetáculo, "o circo moderno". Era 1774.

O grande cineasta Federico Fellini dizia que o palhaço era a sombra do homem. Ele dizia "Quando o sol do homem está baixo no horizonte, o palhaço está grande. Quando ele estará no zênite, os palhaços terão desaparecido."

Em 1984, na França e no Québec, ocorre uma revolução nas artes do circo.

O Cirque Plume e algumas outras companhias reinventam outras formas de circo.

O nosso, o Cirque Plume, procura a poesia, a fragilidade, o encontro.

Nós atuamos com a luz, com as sombras.

Num dia de ensaio, um malabarista da companhia, desajeitado, cansado de sempre deixar cair sua bola decidiu fazer malabares com uma bola invisível.

A luz era tanta que a sombra desse malabarista se projetava sobre um lençol branco ao fundo.
O malabarista não tinha objetos na mão.

O malabarista segurava apenas uma ausência. Isso lhe permitiu se abaixar com menor frequência.

Sobre o lençol atrás dele, na sua mão, sua sombra segurava uma pequena bola vermelha.

Ele deixou atuar sua sombra.

Ele deixou atuar sua alma.

30 anos mais tarde, julho de 2015, o Cirque Plume está em São Paulo, no Brasil.

A sombra de todos os palhaços sempre nos acompanhará.

Este que vocês encontrarão nesta ocasião carrega uma bela ausência de nariz vermelho e uma grande presença desse.

Continuará talvez o encontro entre a alegria do palhaço e de sua sombra?

Sombra da sombra do homem.

Na dança da presença ausência da pequena máscara tão bonita que iluminou nossas infâncias.

BERNARD KUDLAK, 60, é diretor artístico da companhia francesa Cirque Plume e escreveu esse ensaio a convite da "Ilustríssima".

Tradução de PHILIPPE SCERB


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