Folha de S. Paulo


O outro Mário da arte brasileira

RESUMO Volume com ensaios de Mário Pedrosa sobre arte joga luz no crítico que, em certos aspectos, destoou de outro Mário consagrado, o modernista de Andrade. Cosmopolita, conheceu surrealistas e artistas como Alexander Calder, e foi, segundo Lorenzo Mammì, organizador da coletânea, o maior crítico do Brasil.

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No dia 7 de outubro de 1934 o largo da Sé, no centro de São Paulo, foi palco de uma batalha. A Ação Integralista Brasileira promovia naquele domingo um grande desfile para marcar os dois anos de sua fundação. Sob liderança de Plínio Salgado, os integralistas, como se sabe, eram uma contrafação tupiniquim dos movimentos fascistas europeus.

Naquele dia, os "galinhas-verdes", como eram apelidados por seus adversários, pela cor das camisas que vestiam, foram recebidos por uma frente ampla de manifestantes antifascistas –que congregava simpatizantes de diferentes colorações à esquerda, de comunistas a anarquistas. Entre eles estava o jornalista Mário Pedrosa (1900-81), ex-militante do Partido Comunista Brasileiro que se tornara, em 1930, um dos fundadores do trotskismo no Brasil.

Pedrosa –que foi alvejado por um tiro durante o confronto– relembrou a batalha num ensaio escrito em 1970: "O povo em massa dos bairros proletários acorreu ao largo da Sé armado de qualquer coisa (pau, faca, foice, espingarda, pistola) e dissolveu no peito (centenas de feridos, uma dezena de mortos dum lado e do outro, muitíssimas prisões) a parada dos galinhas-verdes, que nunca mais desfilaram pelas ruas de São Paulo".

Raul Mourão

O texto em que aparece essa breve rememoração não é um artigo sobre política, mas um ensaio ("A Bienal de Cá para Lá") sobre artes plásticas –tema que seria sua principal ocupação intelectual e profissional durante décadas.

"Mário Pedrosa foi o maior crítico de arte brasileiro da história", diz à Folha Lorenzo Mammì. O professor de filosofia medieval da USP –e também crítico e ensaísta– é o responsável pela organização do volume "Arte. Ensaios: Mário Pedrosa" (Cosac Naify, 624 págs., R$ 79,90), que reúne 31 textos do autor. O primeiro deles surgiu um ano antes da refrega do largo da Sé, em 1933, quando Pedrosa pronunciou uma conferência no Clube dos Artistas Modernos de São Paulo, intitulada "Käthe Kollwitz e o seu Modo Vermelho de Perceber a Vida" –posteriormente publicada no cotidiano "O Homem Livre".

A análise sobre o trabalho da desenhista e gravurista alemã (1867-1945), observa Mammì, "era ainda pobre do ponto de vista da metodologia crítica, privilegiava o conteúdo e exaltava o realismo social da artista, o oposto das posições que ele iria defender em sua fase madura".

Embora tivesse preservado as convicções ideológicas que o levaram a enfrentar os integralistas (e nunca renegasse o análise sobre a arte "proletária" de Kollwitz), o crítico desenvolveria nos anos seguintes uma concepção estética mais sofisticada, na qual a dimensão política e social apareceria de maneira menos dura e imediata do que nos primeiros escritos.

Pedrosa foi o entusiasmado crítico de uma época em que a arte brasileira abandona o cânone modernista, de cunho social e figurativo, para lançar-se, numa explosão de vanguarda, no abstracionismo e no construtivismo, com seus ricos desdobramentos. Destacou-se como um agente modernizador no pós-guerra, exercendo notável influência sobre a geração de artistas que emergiu no início da década de 1950 e levou a arte no país a patamares elevados.

Pode-se dizer que ele foi um outro Mário fundamental para a arte brasileira –contrastando, no entanto, em aspectos relevantes, com seu xará modernista, que defendera uma pintura com caráter nacional, figurativa e moderada.

Foi justamente após a morte do poeta e crítico paulista, em 1945, que Mário Pedrosa (curiosamente ele também tinha um Andrade como sobrenome) assumiu uma atitude mais ativa, com atuação constante na imprensa. Depois de brigar, em 1948, com Portinari, o então pintor oficial, ele seguiria na defesa da arte abstrata e geométrica que começava, naquela época, a se desenhar no país.

INTERNACIONAL

Para Mammì, Pedrosa "se opõe à tradição sociológica que vem de Mário de Andrade", e torna-se uma espécie de matriz de outra vertente da crítica, associada ao projeto construtivista. Ele chama a atenção para o espírito cosmopolita do crítico e sua visão original do século 20. "Sua produção tem relevância internacional", diz Mammì. "Se for traduzido e lido fora do país será uma surpresa. Ele não tem nada de regional, nunca teve."

A crescente aproximação de Pedrosa do universo da arte foi estimulada por diversas situações, mas não há dúvida de que os exílios em Paris, em 1938, e posteriormente em Nova York, de 1939 a 1945, foram essenciais para alargar seu interesse e sua formação.

Em Paris, travou contato com os surrealistas, que, como ele, simpatizavam com Leon Trótski. Deportado, em litígio com o stalinismo, o ex-comandante do Exército Vermelho tinha posições culturais menos rígidas do que as do regime soviético –o que também ajuda a explicar o marxismo mais esclarecido e arejado do crítico brasileiro.

Acervo do MAR (Museu de Arte do Rio)
Desenho de Mario Pedrosa, nunca exposto ou publicado, feito por Geraldo de Barros em 1950
Desenho de Mario Pedrosa, nunca exposto ou publicado, feito por Geraldo de Barros em 1950

Na temporada francesa, Pedrosa conheceu André Breton, fez amizade com o poeta Benjamin Péret (que se tornaria seu concunhado) e foi colega do sociólogo e escritor Pierre Naville, dirigente, como ele, da Quarta Internacional, organização trotskista fundada na França naquele mesmo ano de 1938.

Foram encontros importantes, que contribuíram de modo considerável para suas ideias sobre a arte –entendida por ele não apenas como um fato histórico, mas como impulso vital, primitivo, que sobrevive na manifestação de crianças e doentes mentais.

Mas foi em Nova York que aconteceu o contato decisivo –com Alexander Calder. Em 1944, Pedrosa enviou duas resenhas ao "Correio da Manhã" nas quais tratava da mostra individual que o norte-americano inaugurara, um ano antes, no MoMA.

"Calder foi o estalo de Vieira", diz Mammì, que explica de maneira sintética, no prefácio da coletânea, o impacto causado pelo artista sobre o crítico:

"Calder parece encarnar o paradigma de artista que Pedrosa procurava confusamente até então: é o engenheiro que, utilizando os mesmos materiais e instrumentos do trabalho industrial, devolve à máquina a imprecisão e a imprevisibilidade criativa do homem; é também o artista que opera a síntese entre o rigor de Mondrian e a espontaneidade de Miró, os dois polos do abstracionismo; é, finalmente, o profeta da forma aberta, em processo, que pouco mais tarde Pedrosa incentivará em jovens artistas brasileiros, como Abraham Palatnik e Lygia Clark."

Com os surrealistas e posteriormente com a obra de Calder, Pedrosa já tem elementos para começar a fechar sua equação crítica, na qual a arte é entendida como resgate de um impulso vital e promessa (além de "exercício experimental") de liberdade. Não por acaso, ele atribuía papel relevante a Paul Gauguin (1848-1903), o artista "selvagem", primeiro a afirmar que arte é abstração.

Nesse contexto explicativo, o Brasil, por ter saltado do primitivo ao moderno, demonstraria vocação pouco usual para apropriar-se de propostas avançadas (seríamos, em sua célebre formulação, "condenados ao moderno").

Mammì vê nessas ideias –que teriam algo de "tropicalismo com rigor construtivo"– um ponto de contato com outro modernista, Oswald de Andrade: "A parábola renovadora iniciada por Gauguin desemboca (ou talvez renasça) em Hélio Oiticica", a quem Pedrosa chamou de "formidável antropófago de si mesmo, o mais brasileiro dos artistas brasileiros".

Por um acaso feliz, a reedição dos ensaios sobre arte coincide, neste ano, com o lançamento de "Nise da Silveira: Caminhos de uma Psiquiatra Rebelde", de Luiz Carlos Mello (Automática Edições, 366 págs., R$ 60), uma valiosa fotobiografia da mulher que criou, em 1946, no Centro Psiquiátrico Nacional (Engenho de Dentro, no Rio) uma seção de terapia ocupacional que convidava os internos a pintar e modelar.

Pedrosa, juntamente com artistas como Almir Mavignier, Abraham Palatnik e Ivan Serpa, foi um entusiasta dessa experiência, que resultou na fundação, em 1952, do Museu de Imagens do Inconsciente (leia aqui texto sobre o museu).

A coleção de ensaios organizada por Mammì (e uma segunda, por sair, com críticas de exposições) pagam tributo ao esforço da professora da USP Otília Arantes, que reuniu os escritos do crítico e publicou uma seleção –em quatro volumes, entre 1995 e 2000.

A editora também lançou uma reunião de textos sobre arquitetura –a cargo de Guilherme Wisnik ("Arquitetura: Ensaios Críticos: Mário Pedrosa, 208 págs., R$ 49,90). Por fim, está previsto um volume sobre política. Mário Pedrosa, não é demais lembrar, foi um mentor da fundação do PT e assinou a ficha número um de filiados ao partido –que não viu chegar onde chegou.

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TRECHOS

Condenados ao moderno

"O nosso passado não é fatal, pois nós o refazemos todos os dias. E bem pouco preside ele ao nosso destino. Somos, pela fatalidade mesma de nossa formação, condenados ao moderno. A nossa 'modernidade' é tão radical que, coisa rara entre os Estados, temos a certidão do nosso batismo. Nascemos numa data precisa: 22 de abril de 1500. Antes disso, simplesmente não existíamos"

Mário Pedrosa, "Brasília, A Cidade Nova"

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Arte pop

"O maior desafio, para Pedrosa e para muitos críticos de sua geração, no entanto, foi o advento da arte pop. Se a arte moderna buscara uma nova visão do mundo por oposição ao senso comum, como lidar com uma poética que afirmava que o senso comum, na sociedade de consumo, já produzira essa nova visão pelos meios de comunicação de massa? Pedrosa não esconde a dificuldade. O crítico brasileiro teve o mérito, em primeiro lugar, de não tentar transformar a 'pop art' numa estratégia crítica na tradição do dadá, como fizeram muitos dos seus colegas europeus; e, sobretudo, de ter percebido que não se tratava de um desvio momentâneo, mas de uma mudança de época:a primeira arte 'pós-moderna', termo que talvez tenha inaugurado"

Lorenzo Mammì, prefácio à edição

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São Paulo

"Baseado nos fundamentos da estética do concretismo de Vantongerloo-Bill, logo se formou em São Paulo um grupo de artistas jovens e entusiastas em torno de Waldemar Cordeiro, cuja inquietação teórica fez dele um centro propulsor de ideias, por vezes incômodo ou estéril mas frequentemente estimulante; um Geraldo de Barros, de formação já diferente, pois participou com Mavignier, Palatnik, dos nossos entusiasmos pelos artistas de Engenho de Dentro e foi o primeiro a fazer da fotografia dita de arte não esse enlanguescimento pictórico do gosto convencional mas uma experiência viril de imagens instantâneas ou fixadas, simultâneas ou dissolvidas em signos da vida e do espaço urbanístico"

Mário Pedrosa, "A Bienal de Cá para Lá"

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Só no Rio

"Quando a partir da Mangueira, Oiticica descobre a 'Tropicália', de que são sede os jardins do Museu de Arte Moderna, estava visto que todo esse movimento novo era mais do que brasileiro, era essencialmente carioca. E só realmente o Rio podia ter-lhes oferecido a ambiência, e a extroversão, o nervo, o calor, a elegância, o pique e o amor de que careciam seus criadores"

Mário Pedrosa, "A Bienal de Cá para Lá"

MARCOS AUGUSTO GONÇALVES, 59, é editor da "Ilustríssima".

RAUL MOURÃO, 47, é artista plástico.


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