No começo do mês, a chanceler alemã Angela Merkel tirou uma curta folga das tortuosas negociações da zona do euro para resolver os problemas financeiros da Grécia e viajou aos Bálcãs com a missão de reforçar os elos entre a Alemanha e a região. Sua primeira parada foi a Albânia, onde o primeiro-ministro do país, Edi Rama, a recebeu com a habitual fanfarra diplomática (era a primeira visita de Merkel a Tirana) -e uma surpresa.
No caminho para a entrevista coletiva que seria realizada no saguão de entrada do palácio do governo, um edifício imponente no centro da capital Tirana, Rama levou Merkel a uma salinha onde ela foi apresentada a alguns dos mais importantes artistas europeus contemporâneos.
Lá estavam o francês Philippe Parreno, mais conhecido pelo filme que fez com Douglas Gordon sobre o futebolista francês Zinedine Zidane; Carsten Höller, um artista de Estocolmo que no momento tem mostra individual em cartaz na Hayward Gallery de Londres; o albanês Anri Sala; o artista conceitual britânico Liam Gillick; e o alemão Thomas Demand. O encontro, os artistas disseram mais tarde, foi constrangedor e um pouco "surreal", de acordo com um deles.
Durante a entrevista coletiva, os dois líderes discursaram diante de uma foto gigantesca intitulada "Sign" (sinal), um trabalho de Demand que mostra um modelo de aperto de mão baseado em uma placa usada na Feira Mundial de Nova York em 1939. Aquele evento simbolizava o otimismo de um mundo que confiava no futuro. Mas a placa está incompleta, na foto; há dois baldes de tinta visíveis dos dois lados dela. O aperto de mão é uma obra em progresso. Construir um mundo melhor para o amanhã, sugere a foto de Demand, não é um trabalho simples.
Qani Ata/Xinhua | ||
Angela Merkel e o primeiro-ministro da Albânia, Edi Rama, dão entrevista coletiva à frente de obra do artista contemporâneo alemão Thomas Demand |
Do lado de fora do edifício, havia um par de mensagens mais nuançadas para a distinta convidada de Rama -a primeira uma das famosas esculturas de cogumelos de Höller, "Giant Triple Mushroom" (cogumelo triplo gigante), uma colagem tridimensional de três fungos diferentes: um comestível, um venenoso e um alucinógeno. A escultura, de acordo com um panfleto oficial, "pode ser percebida como comentário sobre a política albanesa".
Na entrada, um letreiro branco brilhante, com luzes cintilantes, criado por Parreno, recebia os visitantes com um toque inconfundível de glamour. Sinalizava nova vida para o edifício que durante muitos anos abrigou a sufocada e sinistra sede dos comunistas linha dura que governavam a Albânia. Mas no dia da visita, o espaço estava sendo reinaugurado como o novo Centro de Abertura e Diálogo de Tirana. E Rama, artista tornado político, estava mostrando a uma das mais poderosas líderes do planeta que, em sua opinião, nada pode mudar o mundo tanto quanto a arte.
No dia seguinte, fui conduzido ao escritório privado de Rama. O papel de parede consiste de manchas coloridas abstratas sobre um fundo branco. "São meus rabiscos", ele explicou. Antes de se voltar à política, Rama, 51, era artista, formado pela Academia de Artes de Tirana, e viveu e trabalhou com artes plásticas em Paris por diversos anos.
E, de fato, o escritório é diferente da sala de qualquer político que eu já visitei. Há caixas de crayons em praticamente todas as superfícies desocupadas, e nossa conversa foi acompanhada o tempo todo por um fundo de música orquestral ligeira. Em um dos cantos, havia uma bola de basquete e um cabide de chapéu -Rama, que tem 1,98 metro de altura, também foi jogador da seleção albanesa de basquete. Ele estava usando um terno alinhado e seu cabelo estava cortado bem rente ao crânio, acompanhando a elegante barba por fazer grisalha que ele ostenta.
Rama está claramente orgulhoso do novo centro; ele diz que a instituição atrairá pessoas que talvez queiram participar de oficinas sobre temas como, por exemplo, a liderança. "Mas a arte estará lá. E estou certo de que, da próxima vez, algumas dessas pessoas voltarão para ver a arte -'quero ver o que está acontecendo por lá'. É uma interação, que tornará o espaço muito mais vívido e humano".
A arte vem em primeiro lugar, diz Rama. "Na minha opinião, primeiro acontece a arte e depois acontece a conversa sobre a arte. Carsten Höller claramente não precisava da política albanesa para criar seu cogumelo. Ele inventou o cogumelo, e depois [este foi aplicado] à política albanesa". O centro, especifica o primeiro-ministro, "não é um centro cultural; é um espaço público no qual cultura, política e arte podem acontecer, todos juntos".
Dentro do novo pavilhão, que é aberto ao público, há outras surpresas. Uma pequena sala abriga coleções aparentemente aleatórias de artefatos dos anos comunistas da Albânia. Eles vêm de armazéns repletos de estoques não usados, e variam de pequenos objetos caseiros a ferramentas agrícolas. Uma pilha desordenada de foices jaz em uma prateleira. "Tão logo as vi, me fizeram pensar na velha bandeira", disse Edit Pula, outra artista e curadora da sala. Ela deseja que a sala crie "um diálogo" entre o passado e o futuro da Albânia.
Outra conversação acontece na sala ao lado: milhares de imagens datando do final da Segunda Guerra Mundial, recentemente digitalizadas e projetadas em duas paredes. Um projetor mostra cenas da vida cotidiana e o outro tem por foco os eventos oficiais. As audiências das duas sequências ficam de costas umas para as outras. A vida privada e a pública são mantidas separadas, como no passado.
Trata-se de um projeto ambicioso, eu digo a Rama: ele está usando a linguagem exploratória e experimental da arte contemporânea para lançar luz sobre a história e política da Albânia. "As linguagens são diferentes", ele diz, pausadamente. "E fingir que a política deveria falar o idioma da arte pode ser enganoso. Mas, ao mesmo tempo, creio que a arte possa exercer influência, sem que isso realmente pareça ser uma influência direta".
Ele começa a me contar uma longa história sobre sua avó. Ela se orgulhava muito de sua cozinha, na qual estava exposto um quadro do cunhado dela, um famoso pintor albanês que trabalhava em "estilo muito clássico, realista". Um dia, o pai de Rama chegou em casa levando um quadro de um amigo, em estilo muito diferente, "como uma combinação entre Cézanne e Georges Bracque".
"Ele trocou o quadro da cozinha e minha avó ficou indignada", recorda Rama. "Ela disse que, para nós todos, a cozinha era só relativamente importante, mas que para ela, a cozinha era tudo, que ela se levantava e ia para a cozinha, passava o dia lá. E reclamou que era totalmente injusto que interferíssemos assim no único espaço que ela tinha".
Mesmo assim, o novo quadro tomou o lugar do antigo. "Depois, alguns anos mais tarde, meu pai trocou o quadro de novo", conta Rama. "Dessa vez por uma natureza morta, com flores. Minha avó se revoltou outra vez. Meu pai se queixou, dizendo que ela não gostava de pintura moderna. E ela respondeu que sim, não gostava, mas que tinha aprendido a viver com o quadro, ela em seu lugar e o quadro no lugar dele".
Rama acredita que seja esse o poder mágico da arte. Ela é capaz de mudar as pessoas mesmo que estas não percebam. "O que não é o caso com a arte de propaganda, que permite que você saiba que ela deseja influenciar. A arte livre nos influencia sem permitir que saibamos que estamos sendo influenciados", ele afirma.
Rama chegou ao poder em 2013, quando seu partido socialista derrotou esmagadoramente o antigo primeiro-ministro Sali Berisha, cujo Partido Democrata, de centro-direita, havia governado o país por oito anos. Nos anos que se seguiram à queda da ditadura comunista albanesa, no começo dos anos 90, Rama inicialmente manteve sua carreira como artista em Paris e mais tarde voltou à sua terra onde foi nomeado ministro da Cultura em 1998.
Em 2000, ele se tornou prefeito de Tirana, e seus pensamentos sobre o poder transformador da arte foram logo colocados em teste, quando uma série de edifícios em um dos bairros da cidade precisavam ser pintados. Rama decidiu que, em lugar de emular a uniformidade cinzenta que os comunistas impunham, ele ordenaria que os edifícios fossem pintados em cores brilhantes.
No primeiro dia do trabalho, ele recebeu um telefonema do encarregado do trabalho. "Senhor prefeito, por favor me ajude, é um desastre, há 200 pessoas do lado de fora, algumas protestando, outras reclamando, outras rindo". Rama foi ao local. Envolveu-se em uma discussão com um representante da Comissão Europeia, que não aprovava seus planos.
Rama imita o burocrata irritado: "Vou bloquear o projeto! Jamais gastamos dinheiro dos contribuintes europeus com tinta brilhante para edifícios!" Rama respondeu que concederia sua primeira entrevista coletiva como prefeito comparando as leis de conformidade europeias aos ditames do comunismo. "O funcionário então sugeriu um compromisso. Mas eu disse que todo compromisso é cinzento, mesmo que aproxime cores primárias". Rama encena a conversa com entusiasmo, e considerável talento dramático.
"Por fim a coisa foi aprovada. E se tornou algo de muito, muito importante. Por dois ou três meses, a principal questão discutida nesta cidade, neste país, foi a cor. E esse se tornou o primeiro debate público de interesse real que não se relacionava à política". Os índices de aprovação de Rama dispararam. "As cores me tornaram muito popular", ele diz, com humor seco.
Pergunto se era isso que ele esperava. "Não, de forma alguma! Mas meu instinto me disse que aquilo era a coisa a fazer". Os instintos dele se provaram corretos em uma série de extraordinários desdobramentos, diz Rama. As pessoas que viviam no bairro começaram a derrubar as cercas e tirar as grades de segurança das janelas. "Perguntei o motivo, e me disseram que aquilo agora era seguro. Isso me mostrou como melhorar o espaço público pode reforçar a capacidade das pessoas para cooperarem umas com as outras, protegerem o que têm, manterem o que têm".
A mais interessante revelação ainda estava por vir, porém. A discussão sobre as cores levou Rama a conduzir uma pesquisa de opinião pública. Duas perguntas foram feitas aos moradores: se eles gostavam das cores e se desejavam que o projeto continuasse. Dos respondentes, 63% disseram que gostavam das cores, mas uma proporção maior, 85%, disse desejar que o projeto continuasse. "E essa é a conexão com a história sobre a minha avó", diz Rama, com um floreio. "Se você perguntasse a ela se gostava do quadro moderno, ela diria que não, mas se perguntasse se queria que ele fosse removido, ela também responderia que não, que preferiria que ficasse lá".
Rama diz que a experiência com a pintura dos edifícios lhe ensinou que a estética pode ter impacto considerável sobre questões sociais. "Angela Merkel me disse, depois de visitar o centro ontem, que uma das coisas mais horríveis sobre o comunismo era que, mesmo que por meio da arte, ele jamais promovia o bom gosto", ele afirma. "E se você promove o bom gosto, está promovendo uma qualidade de vida melhor, uma compreensão superior da cidadania e dos deveres do cidadão".
A cerca de meia hora do centro de Tirana, existe um bunker subterrâneo construído no começo dos anos 70 para proteger a liderança do país contra ataques nucleares ou químicos. É um espaço extraordinário com mais de 2,5 mil metros quadrados, consistindo de cinco pavimentos, 106 cômodos, paredes de concreto com um metro de espessura e até um teatro. Há também um pequeno apartamento reservado ao líder da Albânia, o notório Enver Hoxha. Ele jamais dormiu lá.
Rama, que abriu o bunker ao público, acredita que chegar a um entendimento com o passado é uma questão mais complicada para os albaneses do que simplesmente aprender sobre os incidentes desagradáveis da história recente do país. "Foi muito difícil para nós lidar com o passado de uma maneira livre dos mecanismos que o passado criou para que lidássemos com o passado", ele diz, sorrindo diante da ideia convoluta.
O bunker foi aberto, diz, "para dar às pessoas a possibilidade de experimentar o passado de modo físico, sem a mediação da política, da história ou da sociologia". Isso se aplica especialmente à geração mais jovem, acrescenta. "Conto ao meu filho coisas sobre o comunismo, mas tudo que posso lhe dizer não ensina tanto a ele quanto meia hora de visita ao bunker. Porque é uma experiência física. E depois de visitar o bunker, ele veio me pedir para contar mais sobre o passado".
A abordagem de Rama quanto à sinergia entre arte e política o tornou uma espécie de figura cult entre os artistas contemporâneos. Parreno e Höller, as duas grandes figuras do circuito de arte contemporânea, doaram obras ao novo centro e falam muito elogiosamente sobre a mente aberta do novo primeiro-ministro. Pergunto a Rama se ele acha que mais artistas deveriam entrar na política. "Não creio necessariamente que os artistas possam ser ótimos políticos", ele responde. "Mas estou absolutamente certo de que os políticos poderiam fazer melhor se eles prestassem mais atenção aos artistas e a pessoas dessa esfera de pensamento".
"Existe uma pergunta que precisa ser feita: por que as ditaduras eram tão obsessivas quanto a impedir que as pessoas criassem arte real? Por que elas precisavam controlá-la? E se as ditaduras são obsessivas quanto a controlá-la, é preciso perguntar quais seriam os benefícios de estimulá-la".
Ele deixa a pergunta sem resposta.
Em um jantar celebrando a inauguração do Novo Centro para a Abertura e Diálogo, em um pátio recentemente aberto que antes servia como estacionamento, me acomodo ao lado de Piro Misha, um editor local. Pergunto-lhe o que acha do centro. "É como o castelo de Kafka", ele responde.
"Precisa ser desconstruído para mostrar às pessoas que nada mais é proibido".
Rama está animado, fazendo piadas sobre as luzes púrpura e os tapetes. "Cores de festa", ele diz. "Sobraram de nossa campanha". E mais tarde ele presenteia a cada convidado com uma garrafa de raki, uma bebida fortíssima conhecida por sua capacidade de derrubar até mesmo o mais resistente dos bebedores, "para que todo mundo vá para casa de coração leve".
Tradução de PAULO MIGLIACCI