Folha de S. Paulo


Pai fundador, Alexander Hamilton chega à Broadway ao som de hip-hop

O gênero do musical da Broadway pode parecer tão antiquado quanto os "founding fathers" -os fundadores dos Estados Unidos. Mas um musical hip-hop audacioso que relata a vida do primeiro secretário do Tesouro do país chega à Broadway na segunda-feira preparado para tornar-se um fenômeno teatral raro: não apenas um sucesso, mas um momento de virada para o gênero musical e um tópico de discussão cultural.

"Hamilton" chega movido por um alento poderoso. Com mais de 200 mil ingressos vendidos antecipadamente -um número enorme para a Broadway, uma das maiores vendas da história antes da abertura de um show-, o espetáculo já arrecadou US$27,6 milhões. Uma produção do musical (baseado na figura histórica de Alexander Hamilton) encenada este ano no Public Theater foi sucesso de crítica e teve 119 apresentações com lotação esgotada, atraindo um "quem é quem" de personalidades culturais e políticas e colecionando troféus diversos. E o criador do musical, o nova-iorquino de 35 anos Lin-Manuel Miranda, já ganhou um Tony e um Grammy por um espetáculo anterior que começou a apresentar quando ainda estava na faculdade.

Sara Krulwich/The New York Times
O ator Lin-Manuel Miranda durante ensaio de
O ator Lin-Manuel Miranda durante ensaio de "Hamilton" no teatro Richard Rodgers

"Hamilton" foi visto por relativamente poucas pessoas até agora: um total de 34.132 lugares foram disponibilizados ao longo de 15 semanas no Public Theater, menos que o público de uma partida típica do New York Yankees. E ainda há incerteza em relação à recepção que o musical terá entre o público mais amplo, com o tempo.

"A pergunta que precisamos responder é: 'O boca a boca será tão bom ou melhor na Broadway? Vamos estar à altura das expectativas?'", comentou o produtor principal do espetáculo, Jeffrey Seller, premiado com o Tony pelos musicais inovadores "Rent" (aluguel) e "Avenue Q" e também pelo trabalho de estreia de Miranda, "In the Heights" (nas alturas).

A atração de "Hamilton" para os nova-iorquinos descolados é evidente; o desafio agora é torná-lo igualmente interessante para turistas de todo o país e do mundo, aqueles que dominam as plateias da Broadway e são essenciais para a longevidade de um musical. Os indicativos iniciais são positivos.
"O interesse é enorme e bem distribuído", disse Scott Mallalieu, presidente da empresa de marketing e vendas para grupos GreatWhiteWay.com. "A notícia já está se espalhando: 'Hamilton' é um espetáculo que muda as regras do jogo do teatro musical."

É claro que a Broadway é um mercado brutal: três em cada quatro produções fracassam. E "Hamilton" não possui os ingredientes de um sucesso típico: não tem atores conhecidos do cinema, não tem efeitos especiais, não tem sapateado. E não tem o tipo de merchandising familiar, ligado a filmes, que garantiu o sucesso de outros musicais de apelo familiar, como "The Lion King" (rei leão) e "Aladdin".

Existem também alguns precedentes cautelares: "Bloody Andrew Jackson", irônico musical rock de 2010 sobre o sétimo presidente dos EUA, também estreou no Public Theater, mas não fez sucesso financeiro, apesar de ser elogiado pela crítica. E o musical de hip-hop visto mais recentemente na Broadway, "Holler If Ya Hear Me" (grite se você me escuta), da temporada passada, com música e letras de Tupac Shakur, fracassou rapidamente.

Os antecedentes de "Hamilton" são convincentes. Quando estava em um aeroporto, a caminho do México para passar férias com sua mulher, Miranda comprou uma cópia da biografia "Alexander Hamilton" (2004), de Ron Chernow. Quando chegou ao segundo capítulo, ele achou que a história era feita para ser narrada com hip-hop: Alexander Hamilton, imigrante órfão, exerceu papel fundamental tanto na Guerra de Independência dos EUA quanto nos anos de fundação do país, mas caiu devido a um escândalo sexual e morreu em um duelo. Miranda disse que a infância de Hamilton o fez pensar na infância de Jay Z no conjunto habitacional Marcy Houses, no Brooklyn, e na de Eminem, em Detroit.

Alexander Hamilton, Thomas Jefferson e George Washington, entre outros personagens, são representados no musical por atores negros e latinos, permitindo aos criadores do musical fazer comentários sobre o presente dividido do país por meio de seu passado, e vice-versa. "Nosso elenco parece a população americana de hoje, e isso é intencional", diz Miranda, que faz o papel-título. "É uma maneira de chamar você para dentro da história e ajudá-lo a deixar de fora qualquer bagagem cultural que você possa carregar relativa aos fundadores do país."

Essa dinâmica agrada especialmente a educadores. O Instituto Gilder Lehrman de História Americana está trabalhando com produtores para levar grande número de escolares de Nova York para assistir ao musical.

Sara Krulwich/The New York Times
Atores ouvem as orientações do diretor Thomas Kail durante ensaio do musical
Atores ouvem as orientações do diretor Thomas Kail durante ensaio do musical

"Foi sem dúvida alguma o impacto mais profundo ao qual já assisti em um órgão estudantil", disse Seth Andrew, fundador da organização Democracy Prep Public Schools, depois de levar 120 estudantes para ver a peça.

Com o destaque dado à música hip-hop, a produção quer atravessar a fronteira invisível que muitas vezes separa a Broadway da cultura mais ampla. Se conseguir, isso vai inevitavelmente influir sobre musicais futuros.

"'Hamilton' modifica as regras", disse Theodore S. Chapin, presidente de longa data da organização Rodgers & Hammerstein. "É uma produção histórica, mas moderna. [Miranda] é um sujeito que conhece o rap e conhece Stephen Sondheim. Ele deu um passo que ninguém tinha dado antes."

Os produtores de "Hamilton" correram um risco calculado por não levarem o show à Broadway na primavera americana, imediatamente após a temporada no Public Theater. Optaram, em vez disso, por levar alguns meses para enxugar a produção e aparar suas arestas, mesmo sabendo que espetáculos que estreiam durante o verão muitas vezes têm resultados fracos e podem parecer uma notícia já velha para os profissionais do teatro que distribuem os prêmios Tony na primavera seguinte.

Mas "Hamilton", que começou a fazer suas pré-estreias na noite de segunda no Richard Rodgers Theater, fará sua estreia oficial em 6 de agosto e parece estar em posição forte para superar os obstáculos. A temporada no Public Theater atraiu mais nomes famosos que uma festa da "Vanity Fair" (de Jon Bon Jovi a Busta Rhymes, passando por Michelle Obama e Madonna), incluindo vários intelectuais (Bernard-Henri Lévy), autores (Salman Rushdie), ativistas (Gloria Steinem), jornalistas (Ira Glass, Barbara Walters) e figuras políticas (Bill e Hillary Rodham Clinton, Dick e Lynne Cheney).

Chama a atenção especialmente o fato de "Hamilton" ter ganho a adesão de tantos conservadores, muitos dos quais admiram o personagem-título e consideram preocupante o rumo seguido pela cultura americana.

"Espetáculo fabuloso!", declarou Rupert Murdoch (proprietário de um jornal que foi fundado por Alexander Hamilton, "The New York Post"). Peggy Noonan, que foi redatora dos discursos do presidente Ronald Reagan e hoje é colunista do "Wall Street Journal", sugeriu que "todos os candidatos presidenciais republicanos assistam ao musical e o absorvam". Na revista "National Review", o comentarista conservador Richard Brookhiser (autor de uma biografia de Hamilton) recomendou a seus leitores comprar ingressos para o musical, dizendo: "É surpreendente e animador ver como 'Hamilton' é detalhado e fiel aos fatos".

O musical parece ter encontrado um terreno intermediário nas guerras culturais travadas em torno da história americana. "No mundo acadêmico, as biografias das grandes figuras do passado passaram a ser malvistas nos anos 1960, quando ocorreu um giro em favor da história social -a história dos que não tinham voz nem rosto", explicou H. W. Brands, professor de história na Universidade do Texas. "Mas o grande público nunca aderiu à ideia de que aqueles 'sujeitos brancos mortos' devessem ser relegados ao descaso."

Outro musical da Broadway, "1776", musicou a história do Congresso Continental e outros momentos na fundação do país; foi encenado 1.222 vezes e adaptado para o cinema em 1972. Mas esse espetáculo não reinventou as discussões do gabinete durante a administração de George Washington como batalhas de rap, em que Hamilton e Jefferson se enfrentam em torno da política da dívida e das relações exteriores.

Aproveitando o clima de patriotismo que acompanha o dia 4 de julho, "Hamilton" escolheu o feriado para iniciar uma campanha publicitária nas rádios com um spot em tom animado, com uma canção de som mais pop que hip-hop, saudando a Revolução Americana como tendo sido "bagunçada e milagrosa", descrevendo o som do musical como "o grito do amanhã" e citando seu casting contemporâneo, dizendo "é a história da América de então relatada pela América de agora".

Enquanto a noite de abertura se aproxima, o interesse do público pelo musical começa a aumentar. Shirley Haspel, 90 anos, de Dallas, assistiu a um clip na MNSBC e decidiu comemorar seu 91º aniversário assistindo à peça. Ela vai a Nova York no próximo mês, pela primeira vez em mais de dez anos.

"Sou viciada em política. O pouquinho que pude ver sobre o musical me encantou, então eu o incluí na minha lista de coisas que quero fazer antes de morrer", disse Haspel. Ela explicou que não é fã do hip-hop, mas disse: "Estou disposta a aprender".

Tradução de CLARA ALLAIN


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