Folha de S. Paulo


Arquivo Aberto - Veludo vermelho e congada mineira no Municipal

Eram vermelhos sobre outros vermelhos. A plateia do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, onde predominam os veludos carmim, se levantava, surpresa, ao ver entrar pelos corredores uma procissão alegre, ritmada, com seus figurinos de fitas, seus cajados, babados, toucas, coroas. Cantavam alto –a música religiosa da congada mineira, chocalhos nos pés, tambores nas mãos. Veludos, dourados e afrescos pareciam bater palmas com Maurício Tizumba e a Guarda de Moçambique do Divino. Eram 26 congadeiros, com idades entre cinco e os 80 anos, e o público explodiu em aplausos enquanto eles seguiam para o palco, entoando o Canto da Chegada e o Canto para Nossa Senhora do Rosário, dançando como nas manifestações de rua.

Paulo Jabur/Arquivo Pessoal
Guarda de Moçambique, Wagner Tiso e Tizumba no palco do Theatro Municipal do Rio em dezembro de 2005
Guarda de Moçambique, Wagner Tiso e Tizumba no palco do Theatro Municipal do Rio em dezembro de 2005

Eu já esperava me emocionar com a tradição da congada, que remonta ao século 18, ocupando o Municipal, símbolo maior da sofisticação cultural que recebemos da Europa, entregue em 1909. Mas a energia gerada por aquela entrada, em dezembro de 2005, foi muito além do que eu imaginava. O público aderiu às palmas dos congadeiros, batia os pés e sorria; foram minutos mágicos, entre a entrada dos integrantes da congada e a subida ao palco, onde encontraram Wagner Tiso, que celebrava os 60 anos, com seu acordeão, instrumento da infância na fazenda de Três Pontas. Cantaram "Chico Rei" (Tiso/ Fernando Brant). Da coxia, eu via que muitos deles davam seus passos e de repente paravam, deslumbrados, olhando de boca aberta os afrescos de Visconti, as grandes cortinas, enquanto os tambores rugiam.

Lembrei da primeira vez em que o samba subiu ao palco do solene teatro de ópera. Eu estava na plateia. Era agosto de 1983 e o então Secretário de Cultura do Estado, Darcy Ribeiro, decidiu fazer uma homenagem a Clementina de Jesus, chamando para honrar a rainha Quelé desde nomes consagrados como Paulinho da Viola, Elizeth Cardoso, Gilberto Gil, João Nogueira e Beth Carvalho até as veteranas tias dos morros cariocas, das alas baianas das diversas escolas. O escândalo foi grande. Choveram críticas indignadas –puristas se levantaram contra o uso do palco "nobre" para tal homenagem. Eu só tinha achado aquilo absolutamente divino.

A congada no Theatro, com suas melodias rascantes e vozes roucas, era fruto da resistência cultural dos escravos em Minas Gerais. Penso no jongo, nos reisados, manifestações musicais e rítmicas, variações que deram origem à nossa música popular, a que hoje conhecemos, nossa música de forte raiz africana. Penso na longa e dolorosa diáspora africana, que no Brasil produziu essa música de lamento eivada de alegria e energia.

Ali estava acontecendo uma representação simbólica da queda de fronteiras, de barreiras, a dissolução de uma divisão que alguns dos maiores da música no país já exercitavam: Pixinguinha, Villa-Lobos, Tom Jobim bailaram alegremente sobre a falsa cerca que dividia a cultura de elite da tradição popular. Tinha que ser no Rio de Janeiro, onde a corte portuguesa se estabeleceu, capital do Império e da República, lugar onde o rádio fez a glória das orquestras na música popular nos dourados anos 1930 e 1940.

Foi uma noite de luz, a da congada mineira no palco mais nobre da antiga capital do Brasil, no palco das óperas, dos balés clássicos e dos concertos. Vermelhos de veludo sobre o vermelho das fitas, e as palmas das mãos de todos vermelhas de tanto aplaudir.

GISELLE GOLDONI TISO, 59, é produtora artística e curadora.


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